Jovens deixam família,
amigos e amores para seguir, em nome de Deus, os votos de pobreza de São Francisco de
Assis. Muita gente conhece essa história, que teve origem na Itália, no ano de 1182. Mas
hoje, mais de 800 anos depois, o mesmo ideal de desapego a valores materiais seduz jovens
brasileiros em torno dos ensinamentos e da figura de São Francisco.
O que faz um garoto
abandonar tudo para morar em uma casa sem o mínimo conforto e passar os dias cuidando de
ex-moradores de rua doentes e abandonados? "A vontade de Deus", acreditam os
"toqueiros", grupo religioso que pratica a caridade segundo o carisma de
Francisco.
A Fraternidade Toca de
Assis foi fundada em 1994 pelo padre Roberto Lettieri, seminarista que levava comida,
cobertores e fazia curativos em pobres de rua na região de Campinas. Alguns jovens,
seduzidos pelo carisma franciscano e pela mensagem de amor a Deus, sentiram a
"vocação" (do latim vocare, chamar) e começaram a ajudar o padre, que
sensibilizou católicos de todo o País quando celebrava a fé na emissora de TV religiosa
Canção Nova. Hoje, sobrevivendo apenas de doações, a fraternidade tem 12 "casas
de aliança" espalhadas pelo Brasil e cuida de dezenas de homens e mulheres carentes.
Apesar do apoio de Dom
Emílio Pinglioli, bispo da Diocese de Campo Limpo, a fraternidade não tem o poder de
ordenar sacerdotes. Mas isso não quer dizer que o caminho até se tornar um
"irmão" é fácil. Depois de um período de três a seis meses, durante o qual
os irmãos avaliam se o jovem deve continuar a carreira religiosa, o vocacionado passa à
aspirante, por mais um ano. O próximo passo é o postulado, por dois anos. Após se
tornar um noviço, por mais um ano, o jovem é consagrado como "Irmão".
No Jardim Peri-Peri, zona
sul da cidade, funciona uma das duas casas de aliança da capital. Nela, 25 homens vivem
graças à bondade de oito jovens cujo único objetivo de vida é ajudar ao próximo e
servir a Deus, verdadeiro milagre nos dias de hoje. Coordenada pelo irmão Hariel do
Santíssimo Sacramento, de 25 anos (nascido Dimas Fabiano de Luca), a casa tem, além dos
25 hóspedes permanentes, outros 30 moradores de rua que aparecem para tomar banho,
almoçar e jantar.
Paulo Ricardo Mendes e
Marcos Silva, ambos aspirantes de 23 anos, vivem na casa há pouco mais de um ano. O
dia-a-dia é o mais simples possível e a vida, com exceção equipamentos como TV e
fogão, é muito semelhante à dos seguidores franciscanos do século 12. "Dormimos
no chão, em um colchonete. Acordamos às seis para as Laudes, orações da manhã. Daí
revezamos: uma parte dos irmãos vai para a missa e a outra fica para dar banho e preparar
o almoço, servido ao meio-dia. À tarde, lavamos roupas, cobertores e roupas de cama,
porque muitos deles não conseguem controlar suas necessidades. Às seis, novamente o
revezamento: vamos à missa ou preparamos o jantar. Às segundas e terças-feiras à
noite, realizamos as pastorais de rua".
Até os 21 anos, Paulo
vivia como a maioria dos garotos de sua idade: gostava de rock e futebol. Nascido em São
Lourenço da Serra e filho mais velho de uma família de sete irmãos, largou o emprego no
supermercado quando conheceu a mensagem da Toca de Assis. "Meu pai morreu quando eu
tinha 14 anos. Minha mãe é religiosa e entendeu minha opção. Ela ainda chora, mas é
de saudade". Para Paulo, que também chama os ex-moradores de rua de irmãos, não
dá trabalho cuidar de quem precisa, mas alegria. "A primeira vez que dei banho num
irmão me deixou emocionado. Ele não tinha as pernas e quase chorei por ver que ele
dependia totalmente da caridade da gente". Paulo, como os outros sete irmãos que
moram na casa, fez votos de pobreza, castidade e obediência (ao superior religioso).
"Meus únicos objetos pessoais são uma Bíblia, uma camisa do São Paulo F.C., o
terço e um par de chinelos. Tenho orgulho de viver na pobreza", afirma.
Marcos tem uma história
um pouco diferente. Depois de receber alta da clínica para dependentes de drogas, passou
a trabalhar com crianças carentes. "Minha família nunca foi muito religiosa, mas
hoje eles entendem". E a namorada, como encarou? "Entrei para a Toca uma semana
depois de terminar o namoro. Ela achou que eu tinha ficado louco, mas quem era ela para
impedir a vontade de Deus?"
Na tarde de segunda-feira,
a casa recebeu dois novos vocacionados, vindos de Montes Claros, interior do Estado.
"Estamos iniciando uma nova etapa de aprendizagem", diz João José, de 17 anos.
É difícil se adaptar à castidade? "Já sigo os votos desde novembro de 1999. Quero
viver assim até morrer", afirma.
Nas noites de pastoral, os
toqueiros recebem ajuda dos leigos, simpatizantes que auxiliam na distribuição de
cobertores, alimentos e amor aos moradores de rua. "Eu venho ajudar porque os meninos
da Toca são muito bons, têm Deus no coração", diz Maria José Bezerra, 52 anos,
empregada doméstica, que ajuda na cozinha da casa. Segunda-feira, o cardápio era arroz,
feijão, carne e batata.
Os toqueiros saem por
volta das oito da noite e só voltam quando acabam os "marmitex", apelido das
refeições embrulhadas em papel alumínio. São distribuídas cerca de 80 por noite, em
regiões como Lapa e Pinheiros. Para os carros que passam indiferentes na rua, são loucos
abraçando mendigos. Para os moradores de rua, são anjos.
A Toca de Assis é a prova
da existência de Deus. Pelo menos, é isso o que pensa Nagib, de 48 anos, ex-morador de
rua. Depois de viver vagando por diversos bairros de São Paulo, Musineli Alves Martins, o
Nagib, mudou-se para a casa de aliança há cerca de um ano.
Sua história é parecida
com a da maioria dos ex-moradores de rua que vivem na casa. Trabalhava normalmente, tinha
mulher, filhos. Começou a beber e caiu em desgraça: perdeu o emprego e, na seqüência,
abandonou a família, para viver na rua. Pouco tempo depois, passou a injetar drogas e
remédios na veia, cheirar cocaína e fumar crack. A baixa resistência resultou em uma
infecção na medula que o impede de andar.
Na casa, o álcool é
totalmente proibido e só são permitidos três cigarros por dia, cedidos pelos próprios
irmãos: após o café da manhã, o almoço e o jantar. Os ex-dependentes de álcool
também não podem sair sozinhos à rua, porque acabam indo direto para os bares da
região.
"Muita gente não
gosta de vir para cá porque acha que perde a liberdade. Eu não sinto falta nenhuma da
bebida. Se não fosse pelos irmãos, já teria morrido faz tempo. Nunca fui religioso, mas
hoje rezo o terço e leio a Bíblia". Depois de morar na rua por 12 anos, Nagib
aceitou viver com os irmãos depois de tomar um tiro num acerto de contas com um
traficante, por causa de R$ 30,00. "O último degrau na vida de um homem é a
sarjeta", afirma ele, que hoje se sente recuperado do vício.
Apesar do esforço dos
irmãos, a morte também faz parte do dia-a-dia da Toca. Na semana passada, Luís, chileno
de 66 anos, faleceu em decorrência de diabetes. Três dias depois, a cama dele já era
ocupada por Abelardo Aureliano Guedes, de 53 anos. "Minha reza era 51 (pinga) e
cigarro. Hoje, agradeço a Deus por eles", afirma Abelardo, emocionado.
Os moradores da casa dizem
que preferem aquele local aos albergues. "Lá, eles nos recebem mal e forçam a gente
a trabalhar para comer. Não tem amor como aqui", conta Nagib. Graças a esse
carinho, alguns moradores se recuperam e acabam voltando para suas famílias.
Terezinha de Fátima
Fagundes, 32 anos, voltou a morar com a filha depois de passar um ano na casa.
"Melhorei e estou tocando a minha vida", diz ela, que visita a casa para rever
os toqueiros, hoje seus amigos.
Apesar da bondade dos
irmãos, a vizinhança não gosta da presença dos moradores de rua por perto. O carro da
Toca, um Escort caindo aos pedaços, foi atingido por uma lata de tinta, arremessada por
entre as grades do portão.
Mas não é fácil pagar
as contas e manter aberta a Toca de Assis: o custo mensal gira em torno de R$ 5.000,00 e
só o aluguel, cerca de R$ 1.200,00, é custeado pelo Hospital Santa Catarina. Os
pagamentos estão sempre atrasados e a burocracia impede a fraternidade de receber ajuda
governamental.
"Estamos precisando
urgentemente de uma máquina de lavar industrial. A nossa, pelo grande número de
cobertores, trabalha dobrado e sempre quebra no inverno. A conta de água daqui chega a R$
1.000,00. Já tentamos obter pelo menos um desconto, mas até agora nada", reclama
Maria do Carmo, secretária-voluntária da Toca. "Mas nada vai impedir a gente de
ajudar quem precisa", promete.
Para ajudar
financeiramente a Toca de Assis, basta deixar as suas doações nas seguintes contas
bancárias:
Banco do Brasil (Agência
2447-3) C/C 30.000-4
Banco Itaú (Agência
009) C/C 24.920-2
Casa Bem-Aventurado Padre Pio
R. Carlos Gomes, 457 - Gradim - São
Gonçalo/RJ
Tel.: 7123200