Tuaregues


Pelos 725 quilômetros de uma das rotas comerciais mais antigas da história, que cruza o deserto do Norte da África, a vida parece a mesma há muitos séculos
Fotos: Brennan Linsley/AP


Hama Ould Ali, que posa para a foto ao lado da mulher, Fatima, bebe o tradicional chá preto. ‘‘Estamos cansados da vida nômade’’, conta o ex-pastor de camelos, que Hoje sustenta a família trabalhando numa carvoaria. na foto mais à esquerda, a alegria de encontrar nos oásis a fonte de vida: a água, levada como um tesouro nos cantis de couro


Taoudenni (Mali) — De longe, esta cidade de Mali é praticamente invisível. As cabanas ficam achatadas na linha do horizonte. Em meio à solidão do deserto do Saara, estacas sujas de terra e escombros de dúzias de minas cavadas manualmente estão perdidos. Os homens que moram aqui, vestidos com togas azuis, parecem fracos na luta contra o vento.
Somente as caravanas indicam que Taoudenni é um lugar com alguma importância. As longas linhas de camelos viajam por 15 dias, começando em Timbuktu, e seguem em direção ao coração do Saara.
O lugar da miséria é o coração de uma antiga, mas extinta cultura. O deserto atravessa uma área tão grande que poderia cobrir todas as nações européias e ainda haveria espaço com areia de sobra. No deserto do Saara mantém-se um dos últimos vestígios de um dos maiores caminhos de comércio da história da humanidade — a Rota do Sal.
Mais de mil anos depois que seus ancestrais cruzaram pela primeira vez o deserto do norte da África, os nômades do Saara — Tuaregues e Moors — estão lutando para manter viva o resto da vida no lugar. A briga deles perde força quando os filhos dos pastores de camelos e os líderes das caravanas são forçados a desistir pela seca, pelo longo caminho e pelos atrativos da vida urbana.
Para aqueles que ainda estão nessa parte do Saara — no nordeste de Mali e na Mauritânia, Argélia e Nigéria — o segredo para sobreviver é o sal de Taoudenni, considerado há séculos na África Ocidental como um tempero e conservante especial.
‘‘Se não existisse o sal, ninguém viria ao deserto’’, diz Mbaye Al-Djounnai, 73 anos, um minerador de mãos ásperas que passou a vida carregando blocos de sal de 36 quilos. ‘‘O que eles fariam aqui? Nada’’, acrescenta.
A produção industrial de sal acabou com a rota de Taoudenni, mas os 4,5 metros de profundidade das minas ainda geram uma pequena economia, poupando a minguada comunidade nômade de vender seus camelos. Um erudito em Timbuktu, Sidi Mohamed Ould Youbba, funcionário da principal biblioteca da cidade, estima que o comércio rende menos de US$ 750 mil por ano. Isso é menos que um quarto do que lucravam há 15 anos, mas ainda é o suficiente para sustentar milhares de nômades do deserto.
Pelos 725 quilômetros da Rota do Sal — que realmente não é um caminho definido, pode deixar os despreparados perdidos em poucos minutos — a vida parece a mesma como há muitos séculos. Os nômades ainda lideram caravanas de camelos de Timbuktu a Taoudenni, viajando dias sem passar por nenhuma cidade ou por uma árvore ou uma moita qualquer de vegetação. A única paisagem presente é de dunas de areia e de pedras que cortam o horizonte.
Os nômades chegam em Taoudenni para negociar com os mineradores em um antigo sistema comercial, o escambo.
Mas, recentemente, um novo som chegou ao deserto. E alguns o temem, pois pode quebrar o delicado sistema de pastores de camelos, líderes de caravanas e mineradores. É o som de enormes caminhões fazendo a Rota do Sal todas as semanas.
Caravanas de camelos levam um mês para percorrer o caminho. Já os caminhões fazem o mesmo percurso em uma semana. Um camelo consegue levar quatro barras de sal, enquanto um caminhão leva centenas. Todo ano, mais caminhões e menos camelos fazem a rota.
Resultado: ‘‘As pessoas estão com medo’’, disse Mohammed Ul Al-Mustaphe, um comerciante e minerador aposentado.

MODERNIDADE
Taoudenni já foi uma parada de uma das maiores rotas comerciais, a Transaariana — que vai de Timbuktu à costa do Mediterrâneo, unindo o Mundo Árabe à África Negra. Séculos atrás, caravanas de mil camelos traziam roupas, livros e armas do norte da África, e escravos e ouro para o sul.
Os nômades negociavam e assaltavam no deserto, carregando bens, criando animais e escravizando negros (tuaregues e moors são descendentes de árabes e bárbaros e não se consideram africanos).
O comércio do deserto, no entanto, está decaindo há 300 anos, prejudicado pelas mudanças comerciais, pelo colonialismo e pelo crescimento dos estados modernos e das novas fronteiras. Hoje em dia, as caravanas do sal são o que resta nessa região.
‘‘Aqui, o sal é o único negócio, é a única coisa que se tem para fazer’’, conta Would Moulaye, um comerciante de sal de 40 anos, em Arouane. A cidade-oásis de algumas centenas de habitantes — a maioria delas de semi-nômades — está, aos poucos, sendo consumida pelo avanço do Saara. Em Arouane, quase todos estão ligados ao comércio da Rota do Sal — pastores de camelos, mineradores, líderes de caravanas e artesãos que fazem os suportes de fibra vegetal para o transporte do sal. ‘‘Em Mali, essas são as únicas riquezas que temos’’, conta Moulaye.
Para muitos nômades, os dias no deserto estão chegando ao fim. Eles viram seus animais morrer em massa na seca de 1973 e novamente quando uma seca começou em 1984. Eles fugiram de uma rebelião dos tuaregues no Saara que durou até a metade da década de 90.
‘‘Estamos cansados da vida nômade’’, conta Hama Ould Ali, que deixou o pastoreio de camelos em 1984. Hoje, o ex-pastor sustenta a família, trabalhando numa carvoaria. Ele encontrou um novo sonho, numa sala de aula em Timbuktu, onde suas crianças aprendem a ler e a escrever em árabe e francês.
Mas em pequenos campos dispersos no Saara, bandos de nômades resistem às mudanças do mundo. Perto de um oásis, conhecido como A Área ao Redor da Árvore, Sidi Mohammed Ould Al Hassan, cuja família passou gerações pastoreando camelos e carregando sal, reza pela chuva. Seus camelos, fracos devido à seca, não estão fortes o suficiente para chegar até Taoudenni.
‘‘Esta é a minha vida, era a vida do meu pai. Eu pertenço a este lugar’’, conta Al Hassan, agachado fora de sua cabana e dividindo sua comida com as visitas. ‘‘Mesmo se Deus me desse dinheiro, eu ficaria aqui.’’
Seus filhos, no entanto, querem algo diferente. Mas tudo o que têm é a pobreza. ‘‘Eles não podem se dar ao luxo de mudar, então são obrigados a ficar aqui’’, lamenta-se Al Hassan.

Esterco
Se a vida nômade está mudando rápido, Taoudenni lembra uma janela na própria história, onde o tempo parou. É uma vila sem mulheres, sem água para beber e sem combustível para cozinhar, a não ser esterco seco de camelo que os nômades usam para fazer fogo. Campos vazios são preenchidos com restos de ossos de camelos. Não há telefones, remédios, nem correios. A luz elétrica mais próxima fica a sete dias de caminhada pelo deserto.
Os mineradores são homens fortes. Pelo melhor pagamento, um dia de trabalho pode render US$ 3 — nada mal numa das nações mais pobres do mundo, e muito mais do que ganhariam para trabalhar como pastores. Para alguns, a mineração é uma semi-escravidão: seis dias trabalhando para seus credores, um dia trabalhando para seu próprio sal e um dia de folga. Então o ciclo recomeça.
O cansaço e a fome são tudo o que mantêm os homens na linha. ‘‘O trabalho aqui é uma luta’’, dise Al-Djounnai, um minerador de 73 anos. ‘‘Se quiser lutar, terá que brigar com a terra. Se quiser mostrar o quão forte você é, lute com o sal.’’
Aqui, sal é tudo. É usado para pagar os mineradores e construir suas choupanas. Está na água e na terra firme. Em peles sujas, robes e turbantes. Ele invade os menores cortes, deixando os homens com constante dor.
‘‘Não há nada aqui que não tenha sal’’, fala Sidi Hamed Ould Baya. Desesperado para alimentar sua família, passou duas estações em Taoudenni. Após séculos de vida nômade, mais cedo ou mais tarde nem os pobres farão o caminho até Taoudenni. E o deserto pode ser deixado de lado, apenas com a presença dos ossos de camelos.