MUDÃO

Milton Faro

   Ninguém do departamento de seleção soube explicar muito bem como aquele homenzarrão de quase dois metros de altura, uns cento e sessenta quilos, barba meio grisalha em razão dos seus cinqüenta e tantos anos e de nome Jacy Almeida de Matos Mudo, vulgo Mudão, foi contrato para preencher o cargo de secretária-executiva do Dr. Alberto, presidente da empresa.

   Nem o próprio Jacy, ou melhor, Mudão, já que não é um homem de muitas palavras como o apelido já diz e o sobrenome e o tamanho ajudam. Ele só sabia dizer que estava desempregado há mais de um ano e, de repente, depois de preencher uma ficha para o cargo de auxiliar de manutenção elétrica, recebeu o telefonema de Dona Mirtes, chefe da seleção, dizendo que comparecesse na manhã seguinte para já começar o trabalho. E ele foi.
   Quando Dona Mirtes viu que Jacy não era uma mulher e sim um homem, e que não tinha perfil de uma secretária, mas de umas vinte delas – pelo menos no tamanho - ficou branca como se tivesse visto um monstro. E o Mudão era quase isso. Nasceu com cerca de seis quilos, cresceu forte e a mãe dizia que o que sobrava de tamanho, faltava em conversa. Demorou uns quatro anos para falar a primeira palavra. O coração de ouro, mas um silêncio de prata, era como se desse às palavras um profundo valor ou total displicência, ninguém sabia dizer. E ele não falava.
   Quietinho, quietinho, casou-se aos dezesseis anos porque teve que casar. A menina estava grávida do primeiro dos doze filhos. Quando alguém tinha coragem de lhe fazer uma pergunta, ele se limitava a emitir uma “rã-rã”, com a boca ligeiramente aberta, quando queria dizer que sim e algo parecido com “rum-rum”, com boca fechada, quando queria dizer não. Só a mulher percebia a tênue diferença.
   Quando Dona Mirtes recuperou-se do susto e tentava apurar o porque da confusão, perguntou com voz fininha e medrosa “o senhor tem experiência como secretári...o?”. Mudão limitou-se a um “rã-rum” que ela não entendeu.
   Dr. Alberto, nessa altura, já havia ligado milhares de vezes querendo saber onde havia se metido a tal excelente profissional prometida para o trabalho naquele dia. Não tinha como fugir. A empresa passava por uma avaliação externa que a premiaria ou não como uma das melhores do setor e que imagem teriam se contratassem e depois descontratassem um homem que precisava tanto do trabalho.
   D. Mirtes entrou primeiro na sala do Dr. Alberto:
-  “A sua secretaria, Dr. Alberto...Bem...Huuum...Eu quero apresentar Jacy”, disse sem por artigo ao nome. Entrou o Mudão. Dr. Alberto ficou se perguntando quem era aquela ”parede”, esperando uma mulher que não entrou.
“- Esse é o Jacy”, disse D. Mirtes.
“- Mudão”, disse o Jacy estendendo a mão na qual cabiam duas do Dr. Alberto.
“- Um secretário... Que original!””, disse o consultor externo que D. Mirtes não havia percebido mas estava ali na sala em reunião.
“- Mudão”, ele repetiu e estendeu a mão ao consultor.
Dr. Alberto e Dr. Mirtes se entreolharam sem saber o que dizer. O consultor e Mudão aguardavam.
“- Mostre a mesa ao Jacy, Dona Mirtes”
   E o Mudão foi e sentou-se na mesinha. Tinha um arranjo de flores secas à altura do peito e um telefone ao alcance dos dedos. Dona Mirtes recomendou que ele ficasse ali, quietinho, coisa que sabia fazer muito bem. Mudão concordou com um “rã-rum”.
   Pouco tempo depois, o telefone começa a tocar. Mudão continuou ali: quietão. Tocou uma, duas, vinte vezes, e Mudão não agüentou e atendeu “rã?”. Era alguém tagarelando com louco . Mudão limitava-se a fazer “rã-rã” ou “rum-rum” que o outro nem percebia a diferença. Dr. Alberto saiu da sala e Mudão lhe entregou o telefone. Do outro lado, mil elogios para aquele, eficiente funcionário, que finalmente sabia atender. Era um sujeito importante e Dr. Alberto desligou, sorriu para o Mudão e disse “obrigado”. Mudão limitou-se ao seu “rã-rum”.
   Naquela tarde, a presença do Mudão intimidou três dos assessores mais chatos da empresa e impediu a aproximação de pelo menos nove puxa-sacos.. A amante do Dr. Alberto ligou, chorou, se esgoelou e depois desligou, feliz porque sabia que tinha agora um amigo na empresa: o Mudão, que ficou mudo o tempo todo. A esposa foi a próxima a ligar e reclamar da empregada, do filho, do chofer, do cirurgião-plástico e do terapeuta. Mudão ouviu em silêncio, interrompendo vez ou outra, com um “rã-rum” e a mulher adorou. Ligou direto para o celular do marido para dizer que finalmente tinham contratado alguém competente que sabia ouvir.
   E assim foi o primeiro dia, e o segundo, o terceiro, o mês, julho, agosto e o Dr. Alberto, satisfeito, porque ninguém o fazia perder tempo ou gastava seu ouvido com besteiras. O Mudão era tudo o que queria. E chegou setembro, dia da secretária, e ele não sabia o que fazer, mas acabou cedendo aos apelos da mídia. Comprou um buquê de flores e mandou entregar para o Jacy. O entregador veio até a mesa e perguntou pela secretária.
   O Mudão não disse nada, tirou as flores das mãos do menino, leu o cartão, deu um gorjeta ao garoto e o mandou embora como “rã-rum”.
   Ninguém viu, mas nessa hora, ele tinha lágrimas nos olhos.