CRÔNICA VÁLIDA POR TRÊS MESES

Milton Faro

     O meu tempo era da máquina de escrever e eu era obrigado a bater na tecla com violência até a oração ficar subordinada. Depois, quando tentava usar um aposto, acabava acontecendo o oposto e minha vontade era cortar fora a língua portuguesa para o papel ficar mudo e disponível apenas ao desenho. Quando empregava uma figura de linguagem e pensava estar inovando, alguém dizia “é hipérbole” e eu respondia “é a mãe” para o sujeito, que eu não sabia quem era porque, via de regra, - num idioma repleto delas -, estava oculto. Êta português difícil de dominar, mãe de Deus!
    
     E por falar em mães, a minha jurava que, mesmo assim, a primeira palavra desse seu caçula aqui foi escrita e não falada. Um exagero, eu asseguro! Mas tive, desde tenra idade, uma paixão incondicional por escrever. Foi lá pelos meus sete ou oito anos que arrisquei o primeiro romance nas páginas timbradas de um caderno velho que estava dando sopa e eu preparei ali uma sopa de letrinhas. Foram umas trinta por página, porque na época aprendera a escrever há pouco, a letrinha era letrona e a escrita garranchosa ocupava a folha inteira. O exagero me fez chegar rápido ao fim de treze capítulos. Dei nome e tudo, e até ilustrei. Chamava-se “Castelo mal-assombrado” e era repleto de fantasmas em todas as páginas. Foi bestseller em família, prêmio Nobel de literatura na casa da avó e, se por um lado, reforçou o gosto de escrever; por outro, os fantasmas eram tantos que me perseguem até hoje quando escrevo: “será que o texto está bom”, “será que todo mundo vai ler” e o pior deles “será que vão gostar”.
    
     Por prazer ou por vício, ou por um pouco de cada um dos dois motivos, aquele foi o primeiro de muitos textos que escrevi. Virei especialista na escola com redação “minhas férias”, em versão praia no verão e montanha no inverno. Ainda criança, fiz outra sobre o “Dia da Ave”, ganhei prêmio e voei para casa, feliz da vida, para contar a todo mundo. Mudei a temática na adolescência quando fiquei apaixonado por uma garota de olhos verdes, de quem nem sabia o nome, e ela virou a “Olhos Verdes”. Escrevi a ela cartas de amor que não entreguei e desabafei, num diário pessoal, a paixão não correspondida e o quanto o mundo é cruel e não escreve o destino como a gente quer. Mais tarde, me inscrevi na faculdade. Sai dela e escrevi o currículo ainda cru.

     Tive sorte e fui para a publicidade escrever anúncios, folhetos, comerciais de TV e até discursos para presidentes de empresa que não tinham essa paixão por escrever. Virei redator. E com o dinheiro que ganhava, passei a escrever cheques e comprar livros, porque quem escreve, gosta de ler. A escrita, algumas vezes, é trabalho. E, nem sempre faço com tanto gosto como quando escrevo uma crônica, porque raramente sou eu a mandar nas palavras. Somente assim, quando o texto é só meu, me dá um prazer enorme colocar frase por frase, linha por linha.

     Termino de escrever e corro em busca da opinião de um bom amigo. Precisa ser daqueles amigos bem amigos para quem eu contei sobre os fantasmas e se ele não gostar do texto, vai ser amigo o bastante para me falar, e mais amigo ainda, por falar com jeito. Dou a crônica em suas mãos e sigo seus olhos. Ele riu na altura da quinta linha: bom sinal. Fez cara de surpresa quando chegou ao meio do papel: ótimo. Respirou fundo e armou um sorriso próximo ao fim: perfeito. Ele me devolve e diz que gostou. Agradeço, mas ainda assim duvido. Sinto muito. É coisa de quem não deixou de acreditar em fantasmas, o que posso fazer?

     O que faço é ler o texto. Uma, duas, trinta, quarenta vezes, leio, até que ajeito daqui, corto dali e gosto dele um pouco mais. Chega a um ponto que para mim é final: fiz o melhor que pude. Se tivesse outra profissão, talvez um médico, chamaria o paciente em público e, ao fazê-lo mostrar a cicatriz, diria aos demais “olhe que apêndice bem tirado”. Se engenheiro de estradas, a fala orgulhosa seria “sinta esse asfalto, sinta”. Como açougueiro, apalparia a carne e diria “puro filé”, mesmo que a insegurança ainda me fizesse crer que não passava de um contra-filé. E, sem nenhuma pretensão, vejo que é hora de entregar o texto ao mundo. E me esqueço dele.

    Até que daqui a um mês, releio e não gosto tanto assim. Em sessenta dias, enumero os defeitos de tantos que encontro. Quando está perto dos três meses, então, a sensação é de horror! Se fosse o médico, o paciente baixaria as calças para mostrar ofensivo o traseiro; se engenheiro, da estrada restariam buracos; e da mão do açougueiro, o “mignon” viraria coxão duro. Como é que eu tive coragem de escrever isso aí? Pior ainda: como é que você teve coragem de ler até aqui? Por isso ouça, ou melhor, leia meu conselho. Aproveite esse texto agora que está fresquinho.

     Daqui a três meses, eu não garanto não!