Digressões no mundo próprio de mim mesma...

 

               Um meio mundo para falar de coisas que me cercam.

Quine e o reducionismo

Sobre o segundo dogma do empirismo... uma postagem para relembrar o endereço desse blog:

No artigo “Os dois dogmas do empirismo”, Quine considera a distinção analítico – sintético e o reducionismo como dois dogmas nos quais os empiristas do ciclo de Viena se apoiavam. São dogmas porque, segundo o autor, ambos são mal fundamentados, são pressupostos não justificados.

Para falarmos do segundo dogma é necessário antes esboçar a crítica ao primeiro, a distinção entre verdades analíticas e verdades sintéticas. Quine considera que essa distinção é duvidosa, a própria noção de analiticidade é problemática pois todas as definições de analítico incorrem em circularidade. Essa circularidade se dá porque só é possível reconhecer que um enunciado do tipo “Todo solteiro é não casado” pelas regras semânticas que tornam o termo “solteiro” como sinônimo de “não casado”, logo a analiticidade já deveria estar pressuposta.

O empirismo de Locke e Hume defendia que cada termo, ou palavra, tinha um significado que corresponderia a um único tipo de evento sensorial. Essa teoria é considerada por Quine como o reducionismo radical, pois reduz o significado de um termo a um conjunto de experiências de um objeto. Mas referir-se a objetos não é como referir a termo lógicos, uma mudança na experiência com um objeto mudaria o significado de outros termos que estão interligados a ele.

Para corrigir o problema no reducionismo radical, a partir de Bentham a unidade de significado passa a ser o enunciado ou frase. Mas esse é apenas um reducionismo atenuado, pois os enunciados sintéticos ainda não conseguem manter seu significado num conjunto definido de eventos sensoriais. Assim, por exemplo, “Gavagai” pode ser melhor entendido não como uma palavra que significa “coelho”, mas como um enunciado “coelhitude presente”, “partes não destacadas de coelho”, mas mesmo tratando como um enunciado não consegue reduzir o significado a um conjunto de eventos sensoriais, a um tipo de experiência, e que vários significados são possíveis, eles dependem de um contexto bem mais amplo. Um contexto que inclui informações colaterais e experiências recalcitrantes, no fim abarca toda o esquema conceitual. Esse é o holismo semântico: não é possível falar de significado de um termo ou enunciado sem apoiar-se em todo um esquema conceitual.

O dogma do reducionismo se apoia no dogma da distinção entre analítico e sintético porque, de acordo com a teoria verificacional do significado, existem enunciados que podem ser confirmados independente da experiência, os analíticos, enquanto os que dependem são sintéticos. Mas Quine demonstra que como a verdade de qualquer enunciado depende da linguagem, e que, tomando um enunciado particular, não é possível separar os componentes linguísticos e componentes factuais. Qualquer enunciado sintético pode ser transformado em analítico mudando-se as regras da linguagem.

Podemos imaginar um grande conjunto, o esquema conceitual, em que cada enunciado está relacionado ao outro, que é cercado nas extremidades pela experiência. E que a mudança numa experiência (descobre-se que elétrons podem estar em mais de um lugar ao mesmo tempo, por exemplo) causa uma reação em cadeia nos significados dentro do esquema conceitual, assim como a mudança na margem de um lago faz a água mudar sua posição como uma malha, da extremidade para o centro. Os enunciados lógicos estariam no centro dessa construção conceitual, o que não quer dizer que estariam isentos de mudanças. Isso porque uma experiência nova muda valores de enunciados. A reavaliação de um enunciado leva, por suas conexões lógicas, a reavaliação de outros.

Assim, não há conteúdos empíricos de cada enunciado particular, em especial dos enunciados que estão no centro do campo do esquema conceitual. A experiência delimita o campo, e assim apenas os enunciados de periferia estão em maior contato com a experiência, e mesmo assim não é de forma a conte-los como seu conteúdo empírico próprio, e logo a distinção entre analítico e sintético cai. Mesmo um enunciado periférico pode ser considerado analítico se ajustamos outros enunciados para cada experiência recalcitrante. Ex. se eu digo “todos os corvos são pretos”, e tenho experiência de um corvo não preto, eu posso manter meu enunciado classificando o pássaro com outro nome, que não corvo. Assim como se diz: todos os políticos são ladrões, na presença de um político honesto eu digo: mas esse não é realmente um político, ele se comporta como um para todos os eventos sensoriais. O campo semântico é determinado pelo contorno da experiência, e nenhum enunciado é imune a revisão, ou seja, é analítico por si mesmo, mas sim em função do conjunto. A partir do momento em que Quine derruba a distinção analítico – sintético, o reducionismo também cai. Só há reducionismo se houver um casos limites onde um enunciado poderá sempre ser confirmado:

“Mais diretamente, um dogma claramente suporta o outro neste sentido: enquanto se considera significante em geral falar de confirmação ou infirmação de um enunciado, parecerá igualmente significante falar de um tipo limite de enunciado que é confirmado vacuamente ipso facto, aconteça o que acontecer; e tal enunciado é analítico. (...) Minha proposta atual diz que é um disparate e origem de muitos outros disparates, falar de um componente linguístico e de um componente fatual da verdade de qualquer enunciado particular.” (Quine, 1989 )

A crítica de Davidson em “The very idea of a conceptual schem” é exatamente um ataque ao holismo semântico de Quine, dizendo que não se pode ter um conceito de esquema conceitual sem outro esquema conceitual para comparação, e não se pode conhecer nada além do seu próprio esquema conceitual, o esquema conceitual não pode conter outro dentro dele, logo não se pode conhecer outro esquema conceitual. A maneira com que nosso esquema conceitual se ajusta frente a uma experiência recalcitrante não está determinada meramente pela experiência, uma vez que a maneira como essa experiência será recebida no sistema também depende do sistema. Isto é, a reavaliação de um enunciado está ao mesmo tempo determinada pelo esquema conceitual e determinante da nova forma do esquema conceitual.

No artigo “Epistemologia Naturalizada”, Quine defende que as sentenças observacionais são as únicas que têm conteúdos empíricos, elas forma os agregados verificáveis mínimos do corpo científico, e ao mesmo tempo elas só se formam como tais numa linguagem específica, não são equiparáveis de uma língua para outra. Ou seja, fica claro que há um holismo e que esse holismo é semântico. É possível ainda ampliar esse holismo observando quais características da linguagem e da percepção foram selecionadas pela evolução do homem, tornando-se mais comuns e construindo os limites do corpo científico.

Outras formas de reducionismo também vêm sendo criticadas na filosofia. É o caso da teoria de “Gestalt”, a partir da qual é traçada uma critica ao reducionismo da percepção aos conteúdos sensoriais. A gestalt critica a concepção atomista da percepção, onde a percepção da realidade corresponde a elementos sensoriais unidos por associação. O que há na percepção segundo essa teoria, é uma organização perceptual, uma relação entre diferentes fatores. Essa organização perceptual sustenta um holismo, uma sensibilidade aos diferentes fatores e elementos do contexto, onde a disposição desses fatores é que vai determinar o significado de um objeto.

Segunda-feira, 4 de Agosto de 2008

 


Citação:

QUINE, W. V. O. Relatividade ontológica e outros ensaios. 4a ed. São Paulo: Nova Cultural, 1989. (Col. Os pensadores)


Imagem: Copiei do windows media player enquanto tocava The Smiths: Please, Please, Please, Let Me Get What I Want

 

 

Quem eu penso que sou

Elaine Cristina

um organismo vivo que gosta de espreitar coisas a respeito da vida e da natureza. Um ser indiviso do mundo, dos corpos e da experiência. Gosto de minhas percepções, do que tem para ler, do que tem para olhar. Penso que o antropocentrismo e o asceticismo são os dois maiores e mais prejudiciais dogmas de nossa cultura. Não gosto de dicotomias, não acredito que a razão esteja separada do corpo, não gosto de moralidades e não acredito que o mundo é ruim.

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