O Suplício

I

Na hora em que o horizonte empalidece,
Em que a brisa do céu vem suspirosa
De úmidos beijos afagar as flores,
E um véu ligeiros de sutis vapores
Baixa indolente da montanha umbrosa;

II

Na hora em que as estrelas estremessem
Lágrimas de ouro no sidério manto,
E o grilo canta, e o ribeirão suspira,
E a flor mimosa que ao frescor transpira
Peja os desertos de suave encanto;

III

Na hora em que o riacho, a veiga, o inseto,
A serra, o taquaral, o brejo e a mata
Falam baixinho, a cochichar na sombra,
E as moles fêlpas da campestre alfombra
Molham-se em fios de fundida prata;

IV

Na hora em que se abala o santo bronze
Da igrejinha gentil no campanário,
Uma voz lacerada, enfraquecida,
Levantava-se amarga e dolorida
Da sombria morada de Lotário.

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Parte II

Eu vou morrer, meu Deus! já sinto as trevas,
As trevas de outro mundo que me cercam!
Já sinto o gelo correr nas veias,
E o coração calar-se pouco a pouco!

II

Eu vou morrer, meu Deus! minh´alma luta,
E em breve tempo deixará meu corpo...
Tudo em torno de mim foge... se afasta...
Já estas dores não me pungem tanto!

III

Não... meus sentidos se entorpecem. Belo
O meu anjo da guarda me contempla;
Meu seio bebe virações mais puras,
Creio que vou dormir... sim, tenho sono.

IV

Minha mãe!... meu irmão!... eu não os vejo!
Vinde abraçar-me, que padeço muito!
Mas debalde vos chamo... Adeus... adeus
Eu vou morrer... eu morro... tudo é findo...

V

E a voz debilitava-se, fugia,
Como o gemido febril de um rola
Nos complicados dédalos da selva,
Até que em breve se escutava apenas
O estalo do azorrague amolecido,
Sobre as feridas do coalhado sangue
Da pobre irmã do desditoso Mauro.

VI

- Basta! - bradou um dos algozes - basta!
Deixai-a agora descansar um pouco,
Repousemos também; meu braço é fraco,
Inunda-me o suor! logo... mais tarde
Logo? estais doudo? a criatura há muito
Que sacudiu as asas.
- Sim!... é pena.
- Apalpai-a e vereis.
- Com mil diabos!
Ide ao amo falar, - responde o outro,
Limpando na parede a mão molhada.

VII

Os que este ofício lúgubre cumpriam
Era um branco robusto, olhar sinistro,
Cabeça de pantera; o outro um negro
Possante e gigantesco; as costas nuas
Deixavam ver os músculos de bronze
Onde o suor corria gota a gota.

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VII

- Meu senhor...
- O que queres? fala e deixa-me.
Lotário respondeu voltando o rosto
Ao servo hercúleo que da porta, humilde,
Lhe vinha interromper nas tredas cismas.
- A mulata morreu.
- Pois bem, que a deixem
E enterrem-na manhã.
A esta resposta
Decisiva e lacônica, o africano
Retirou-se abuscar seu companheiro,
Deixando o potentado, que de novo
Mergulhou-se nas fundas reflexões.

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IX

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Ao vivo encanto de uma aurora esplêndida
Voltando o rosto a noite despeitada
Cedeu-lhe a criação, e foi ciosa
Esconder-se em seus antros. As florestas
Sacudiam a coma embalsamada,
Onde ao lado da flor o passarinho
Se desfazia em queixas amorosas.
Tudo era belo, radiante e puro,
Palpitante de vida; a natureza
Como noiva feliz, tinha trajado
As mais soberbas galas, e estendia
Os seus lábios de rosa ao rei dos astros,
Que ansioso tremia no oriente
Para libar-lhe seu primeiro beijo.

X

Mas através do manto vaporoso,
Que leve e tênue para o céu se eleva
Nas madrugadas festivais do estio,
Um grupo silencioso caminhava
Pela encosta do monte, conduzindo
Um fardo estranho e dúbio; era uma rede
Nodoada de sangue! um corpo longo,
Rijo, estendido, desenhava as formas
Sobre o sórdido estofo. A madrugada
Que tão linda ostentava-se no espaço,
Tristonha e temerosa, parecia
Das vestes alvas afastar a fímbria
Desta cena sinistra e ensangüentada!

XI

Chegando ao topo da montanha, os vultos
Pararam, descansando sobre a terra
O peso mortuário. A natureza
Que próvida lançara o encanto e a vida
Ao redor deste sítio, parecia
Ter-lhe Tudo negado. o solo ingrato
Revôlto, sêco nem sequer mostrava
Uma gota de orvalho; desde a relva
Macia e vigorosa até a urtiga
Nada crescia ali! Triste, solene,
Sobre um monte de pedras, levantava-se
Apenas uma cruz em cujos braços
Dous pássaros beijavam-se gemendo.

XII

- Pega na enxada e cava; disse o homem
Que presidia ao bárbaro suplício
Da pobre irmã de Mauro - abre uma cova
Aqui neste lugar, e bem depressa,
Oito palmos de fundo e três de largo,
Atira dentro o corpo da mulata,
Cobre de terra e calca. Estas palavras
Foram ditas ao negro gigantesco
Que à vespera sorria-se, rasgando
As carnes da infeliz. Depois voltando-se
Aos outros desgraçados: - venham todos,
São horas dos trabalhos! e partiram.

XII

Em breve tempo os golpes compassados
De uma enxada pesada, começaram
A cair sobre a terra, lentamente
Abrindo o último leito da inditosa.
O feroz africano prosseguia
No seu lúgubre ofício sem ao menos
Levantar a cabeça. Alguns minutos
Já tinham decorrido quando em frente
Uma voz retumbante levantou-se
Fazendo ouvir-lhe o nome, o brônzeo monstro
Parou, volveu em tôrno o olhar selvagem,
E murmurou estremecendo: - Mauro!...

XIV

Sim, era Mauro, e quão mudado estava!
Dias sem luzes, noites sem descanso,
Tinham dez anos lhe roubado a vida!
Naquela fronte cismadora e doce,
Onde luziu resignação outrora,
Passavam nuvens de fatal vingança,
De planos infernais! Naqueles olhos
Donde incessante vislumbrava o gênio,
O gênio que o Senhor prefere às vezes
Sobre a choça lançar do que nos paços,
O gênio que alimenta-se de dores
E vive de amargor, naqueles olhos
Raios de sangue se cruzavam, rápidos!
A face descarnara-se, os cabelos,
Os cabelos, oh! Deus, negros, luzentes,
Em poucos dias alvejaram! Mauro
Era uma sombra apenas e uma idéia:
Sombra de dor, idéia de vingança!

XV

Não era o seu trajar o de um escravo,
Nem também de um senhor. Sombria capa,
Grosseira, embora, lhe cobria os ombros
E deixava entrever pendente à cinta
Uma faca ou punhal; largo chapéu
De retorcidas abas inclinava-se
Mostrando a vasta fronte; uma espingarda
Trazia à mão direita. Onde encontrara
O escravo estes recursos? Não se sabe.
Dera-lhe alguém, ou os roubara? Mauro
Era nobre de mais: desde criança
Bebera as leis de Deus dos santos lábios
Do velho missionário, e aprendera
A decifrá-las nos sagrados livros,
Embora a furto, a medo, que ao cativo
É crime levantar-se além dos brutos.

XVI

- Mauro!... de novo estupefato, trêmulo,
Ao aspecto do trânsfuga sinistro
O negro murmurou:
- Oh! sim, é Mauro!
Bradou aquele adiantando-se; abre
Esta rede depressa, quero vê-la,
Vê-la ainda uma vez, depois... vingá-la!
- É tua irmã...
- Bem sei. Abre essa rede,
Abre essa rede, digo-te!
- O africano
Deixou a enxada e foi abri-la. Oh! Deus!
Não era um corpo humano, era um composto
De carnes laceradas, roxas, fétidas,
Inundadas de sangue! Massa informe
De músculos polutos, negro emblema
De quanto há de feroz, bárbaro e tétrico,
Cruentamente horrível! O cativo
Exalou da garganta um som pungente,
Tigrino, e tão selvagem, que o africano
Sentiu um calefrio; ergueu os olhos
Abrasados ao céu, depois sem forças
De joelhos caiu junto ao cadáver
E se desfez em lágrimas ardentes,
Em soluços doridos. Impassível,
Frio como as estátuas indianas,
O negro contemplava este espetáculo
Que abalaria de piedade as pedras,
E susteria as rábidas torrentes
Nas rochas encarpadas!
- Bem; é tempo,
Basta de inútil pranto! disse Mauro
Erguendo-se do chão; - e tu agora,
- Falou fitando o túrbido coveiro -
Cumpre teu dever!... De novo os olhos
Encheram-se de lágrimas. - Adeus!
Adeus! mísera irmã, tu és ditosa!
Deus te deu a coroa do martírio
Para entrares no céu; a côrte angélica
Espera-te sorrindo... e eu inda fico,
E tenho de esgotar até às fezes
A taça envenenada da existência!

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Parte III

Tu passaste na terra como as flores
Que a geada hibernal derriba e mata;
Foram teus dias elos de teus ferros,
E teus prazeres lágrimas!

II

Negou-te a primavera um riso ao menos;
Dos sonhos na estação, nenhum tiveste;
A aurora que de luz inunda os orbes
Te abandonou nas trevas!

III

Alma suave a transpirar virtudes,
Gênio maldito arremessou-te ao lodo!
Buscaste as sendas lúcidas do Empíreo,
E apontaram-te o caos!

IV

A providência que os coqueiros une
Quando a tormenta pelo espaço ruge,
Até o braço de um irmão vedou-te,
Oh! planta solitária!

V

A morte agora te escutou, criança!
Trouxe a alvorada que esperaste embalde,
E adormecida nos seus moles braços
Pousou-te junto a Deus!...

XVII

Assim Mauro falou. Pesada e surda
A enxada do coveiro retumbava,
Como o bater funéreo e compassado
Do quadrante do tempo. O foragido
Lançou um olhar piedoso e triste
Sobre os restos da irmã, depois ligeiro
Afundou-se no dédalo das selvas.

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