Juvenília

I

Lembras-te, Iná, dessas noites
Cheias de doce harmonia,
Quando a floresta gemia
Do vento aos brandos açoites?

Quando as estrelas sorriam,
Quando as campinas tremiam
Nas dobras de úmido véu?
E nossas almas unidas
Estreitavam-se, sentidas
Ao langor daquele céu?

Lembras-te, Iná? Belo e mago,
Da névoa por entre o manto,
Erguia-se ao longe o canto
Dos pescadores do lago.

Os regatos soluçavam,
Os pinheiros murmuravam
No viso das cordilheiras,
E a brisa lenta e tardia
O chão revolto cobria
De flores das trepadeiras.

Lembras-te, Iná? Eras bela,
Ainda no albor da vida,
Tinhas a fronte cingida
De uma inocente capela.

Teu seio era como a lira
Que chora, canta e suspira
Ao roçar de leve aragem;
Teus sonhos eram suaves,
Como o gorjeio das aves
Por entre a escura folhagem.

Do mundo os negros horrores
Nem pressentias sequer;
Teus almos dias, mulher,
Passavam num chão de flores.

Oh! primavera sem termos!
Brancos luares dos ermos!
Auroras de amor sem fim!
Fugistes, deixando apenas
Por terra esparsas as penas
Das asas de um serafim!

Ah! Iná! Quanta esperança
Eu não vi brilhar nos céus
Ao luzir dos olhos teus,
A teu sorrir de criança!

Quanto te amei! Que futuros!
Que sonhos gratos e puros!
Que crenças na eternidade!
Quando a furto me falavas,
E meu ser embriagavas
Na febre da mocidade!

Como nas noites de estio,
Ao sopro do vento brando,
Rola o selvagem cantando
Na correnteza do rio;

Assim passava eu no mundo,
Nesse descuido profundo
Que etérea dita produz!
Tu eras, Iná, minh'alma,
De meu estro a glória e a palma,
De meus caminhos a luz!

Que é feito agora de tudo?
De tanta ilusão querida?
A selva não tem mais vida,
O lar é deserto e mudo!

Onde foste, oh! pomba errante?
Bela estrela cintilante
Que apontavas o porvir?
Dormes acaso no fundo
Do abismo tredo e profundo,
Minha pérola de Ofir?

Ah! Iná! por toda parte
Que teu espírito esteja,
Minh'alma que te deseja
Não cessará de buscar-te!

Irei às nuvens serenas,
Vestindo as ligeiras penas
Do mais ligeiro condor;
Irei ao pego espumante,
Como da Ásia o possante,
Soberto mergulhador!

Irei à pátria das fadas
E dos silfos errabundos,
Irei aos antros profundos
Das montanhas encantadas;

Se depois de imensas dores,
No seio ardente de amores
Eu não puder apertar-te,
Quebrando a dura barreira
Deste mundo de poeira,
Talvez, Iná, hei de achar-te!

II

Era à tardinha. Cismando,
Por uma senda arenosa
Eu caminhava. Tão brando,
Como a voz melodiosa
Da menina enamorada,
Sobre a grama aveludada,
Corria o vento a chorar.
Gemia a pomba... no ar
Passava grato e sentido
O aroma das maravilhas
Que cresciam junto às trilhas
Do deserto umedecido.
Mais bela que ao meio-dia,
Mais carinhosa batia
A luz nos canaviais;
E o manso mover das matas,
O barulho das cascatas
Tinham notas divinais.
Tudo era tão calmo e lindo,
Tão fresco e plácido ali,
Que minh'alma se expandindo
Voou, foi junto de ti,

Nas asas do pensamento,
Gozar do contentamento
Que noutro tempo fruí.
Oh! Como através dos mantos
Das saudades e dos prantos
Tão meigamente sorrias!
Tinhas o olhar tão profundo
Que de minh'alma no fundo
Fizeste brotar um mundo
De sagradas alegrias.

Uma grinalda de rosas
Brancas, virgens, odorosas,
Te cingia a fronte triste...
Cismavas queda, silente,
Mas, ao chegar-me, tremente
Te ergueste, e alegre, contente,
Sobre meus braços caíste.
Pouco a pouco, entre os palmares
Da longínqua serrania,
Sumia-se a luz do dia
Que aclarava esses lugares;
As campânulas pendidas
Sobre as fontes adormidas
De sereno gotejavam,
E no fundo azul dos céus,
Dos vapores entre os véus,
As estrelas despontavam.
Éramos sós, mais ninguém
Nossas palavras ouvia;
Como tremias, meu bem!
Como teu peito batia!...
Pelas janelas abertas
Entravam moles, incertas,
Daquelas plagas desertas
As virações suspirosas,
E cheias de mil desvelos,
Cheias de amor e de anelos,
Lançavam por teus cabelos
O eflúvio das tuberosas!...
Ai! tu não sabes que dores,
Que tremendos dissabores
Longe de ti eu padeço!

Em teu retiro sozinha,
Pobre criança mesquinha,
Cuidas talvez que te esqueço!
A turba dos insensatos
Entre fúteis aparatos
Canta e folga pelas ruas,
Mas triste, sem um amigo,
Em meu solitário abrigo
Pranteio saudades tuas!

Nem um minuto se passa,
Nem um inseto esvoaça,
Nem uma brisa perpassa
Sem uma lembrança aqui;
O céu da aurora risonho,
A luz de um astro tristonho,
Os sonhos que à noite sonho,
Tudo me fala de ti.

III

Tu és a aragem perdida
Na espessura do pomar,
Eu sou a folha caída
Que levas sobre as asas ao passar.
Ah! voa, voa, a sina cumprirei:
Te seguirei.
Tu és a lenda brilhante
Junto do berço cantada;
Eu sou o pávido infante
Que o sono esquece ouvindo-te a toada.
Ah! canta, canta, a sina cumprirei:
Te escutarei.

Tu és a onda de prata
Do regato transparente;
Eu a flor que se retrata
No cristal encantado da corrente.
Ah! chora, chora, o fado cumprirei:
Te beijarei.

Tu és o laço enganoso
Entre rosas estendido;
Eu o pássaro descuidoso
Por funesto prestígio seduzido.
Ah! não temas, a sina cumprirei:
Me entregarei.

Tu és o barquinho errante
No espelho azul da lagoa;
Eu sou a espuma alvejante
Que agita nágua a cortadora proa.
Ah! voga, voga, o fado cumprirei:
Me desfarei.
Tu és a luz da alvorada
Que rebenta na amplidão;
Eu a gota pendurada
Na trepadeira curva do sertão.
Ah! brilha, brilha, a sorte cumprirei:
Cintilarei.

Tu és o íris eterno
Sobre os desertos pendido;
Eu o ribeiro do inverno
Entre broncos fraguedos escondido.
Ah! fulge, fulge, a sorte cumprirei:
Deslizarei.

Tu és a esplêndida imagem
De um romântico sonhar;
Eu cisne de alva plumagem
Que falece de amor a te mirar.
Ah! surge, surge, o fado cumprirei:
Desmaiarei.

Tu és a luz crepitante
Que em noite trevosa ondeia;
Eu mariposa ofegante
Que em torno à chama trêmula volteia.
Ah! basta, basta, a sina cumprirei:
Me abrasarei.

IV

Teus olhos são negros, negros
Como a noite nas florestas...
Infeliz do viajante
Se de sombras tão funestas
Tanta luz não rebentasse!
A aurora desponta e nasce
Da noite escura e tardia:
Também da noite sombria
De teus olhos amorosos
Partem raios mais formosos
Que os raios da luz do dia.
Teu cabelo mais cheiroso
Que o perfume dos vergéis,
Na brancura imaculada
Da cútis acetinada
Rola em profusos anéis:
Eu quisera ter mil almas,
Todas ardentes de anelos,
Para prendê-la, meu anjo,
À luz de teus olhos belos,
Nos grilhões de teus olhares,
Nos anéis de teus cabelos!

V

Não vês quantos passarinhos
Se cruzam no azul do céu?
Pois olha, pomba querida,
Mais vezes,
Mais vezes te adoro eu.
Não vês quantas rosas belas
O sereno umedeceu?
Pois olha, flor de minh'alma,
Mais vezes,
Mais vezes te adoro eu.

Não vês quantos grãos de areia
Na praia o rio estendeu?
Pois olha, cândida pérola,
Mais vezes,
Mais vezes te adoro eu.

Ave, flor, perfume, canto,
Rainha do gênio meu,
Além da glória e dos anjos,
Mil vezes,
Mil vezes te adoro eu.

VI

És a sultana das brasílias terras,
A rosa mais balsâmica das serras,
A mais bela palmeira dos desertos;
Tens nos olhares do infinito as festas
E a mocidade eterna das florestas
Na frescura dos lábios entreabertos.
Por que Deus fez-te assim? Que brilho é esse
Que ora incendeia-se, ora desfalece
Nessas pupilas doidas de paixão?...
Quando as enxergo julgo nos silvados
Ver palpitar nos lírios debruçados
As borboletas negras do sertão.

O rochedo luzido, onde a torrente
Bate alta noite rápida e fremente,
De teu preto cabelo inveja a cor...
E que aroma, meu Deus! o estio inteiro
Parece que levanta-se fagueiro,
Cheio de sombra e cânticos de amor!
Quando tu falas lembro-me da infância,
Dos vergéis de dulcíssima fragrância
Onde cantava à tarde o sabiá!...
Ai! deixa-me chorar e fala ainda,
Não, não dissipes a saudade infinda
Que nesta fronte bafejando está!

Eu tenho nalma um pensamento escuro,
Tão tredo e fundo que o farol mais puro
Que Deus há feito espancará jamais
Debalde alívio hei procurado aflito,
Mas quando falas, teu falar bendito
Abranda-lhe os martírios infernais!

Dizem que a essência dos mortais há vindo
De um outro mundo mais formoso e lindo
Que um santo amor as bases alimenta;
Talvez nesse outro mundo um laço estreito
A teu peito prendesse o triste peito
Que hoje sem ti nas trevas se lamenta!

És a princesa das brasílias terras,
A rosa mais balsâmica das serras,
Do céu azul a estrela mais dileta...
Vem, não te afastes, teu sorrir divino
É belo como a aurora, e a voz um hino
Que o gênio inspira do infeliz poeta.

VII

Ah! quando face a face te contemplo,
E me queimo na luz de teu olhar,
E no mar de tu'alma afogo a minha,
E escuto-te falar;
Quando bebo teu hálito mais puro
Que o bafejo inefável das esferas.
E miro os róseos lábios que aviventam
Imortais primaveras,
Tenho medo de ti!... Sim, tenho medo
Porque pressinto as garras da loucura,
E me arrefeço aos gelos do ateísmo,
Soberba criatura!

Oh! Eu te adoro como adoro a noite
Por alto-mar, sem luz, sem claridade,
Entre as refregas do tufão bravio
Vingando a imensidade!

Como adoro as florestas primitivas
Que aos céus levantam perenais folhagens,
Onde se embalam nos coqueiros presas
As redes dos selvagens!

Como adoro os desertos e as tormentas,
O mistério do abismo e a paz dos ermos,
E a poeira de mundos que prateia
A abóbada sem termos!...

Como tudo o que é vasto, eterno e belo,
Tudo o que traz de Deus o nome escrito!
Como a vida sem fim que além me espera
No seio do infinito!

VIII

Saudades! tenho saudades
Daqueles serros azuis,
Que à tarde o sol inundava
De louros toques de luz!
Tenho saudades dos prados,
Dos coqueiros debruçados
À margem do ribeirão,
E o dobre de Ave-Maria
Que o sino da freguesia
Lançava pela amplidão!
Oh! minha infância querida!
Oh! doce quartel da vida!
Como passaste depressa!
Se tinhas de abandonar-me,
Por que, falsária, enganar-me
Com tanta meiga promessa?
Ingrata, por que te foste?
Por que te foste, infiel?
E a taça de etéreas ditas,
As ilusões tão bonitas
Cobriste de lama e fel?
Eu era vivo e travesso,
Tinha seis anos então,
Amava os contos de fadas
Contados junto ao fogão;
E as cantigas compassadas,
E as legendas encantadas
Das eras que lá se vão.
De minha mãe era o mimo,
De meu pai era a esperança;
Um tinha o céu, outro a glória
Em meu sorrir de criança,
Ambos das luzes viviam
Que de meus olhos partiam.

Junto do alpendre sentado
Brincava com minha irmã,
Chamando o grupo de anjinhos
Que tiritavam sozinhos
Na cerração da manhã;
Depois, por ínvios caminhos,
Por campinas orvalhadas,
Ao som de ledas risadas
Nos lançávamos correndo...
O viandante parava
Tão descuidosos nos vendo,
O camponês nos saudava,
A serrana nos beijava
Ternas palavras dizendo.

À tarde eram brincos, festas,
Carreiras entre as giestas,
Folguedos sobre a verdura;
Nossos pais nos contemplavam,
E seus seios palpitavam
De uma indizível ventura.
Mas ai! os anos passaram,
E com eles se apagaram
Tão lindos sonhos sonhados!
E a primavera tardia,
Que tanta flor prometia,
Só trouxe acerbos cuidados!

Inda revejo esse dia,
Cheio de dores e prantos,
Em que tão puros encantos
Oh! sem saber os perdia!
Lembra-me ainda: era à tarde.
Morria o sol entre os montes,
Casava-se a voz das rolas
Ao burburinho das fontes;
O espaço era todo aromas,
Da mata-virgem nas comas
Pairava um grato frescor;
As criancinhas brincavam,
E as violas ressoavam
Na cabana do pastor.

Parti, parti, mas minh'alma
Partida ficou também,
Metade ali, outra em penas
Que mais consolo não tem!
Oh! como é diverso o mundo
Daquelas serras azuis,
Daqueles vales que riem
Do sol à dourada luz!
Como diferem os homens
Daqueles rudes pastores
Que o rebanho apascentavam,
Cantando idílios de amores!
Subi aos paços dos nobres,
Fui aos casebres dos pobres,

Riqueza e miséria vi;
Mas tudo é morno e cansado,
Tem um gesto refalsado,
Nestes lugares daqui!
Oh! Então chorei por ti,
Minha adorada mansão;
Chamei-te de meu desterro,
Os braços alcei-te em vão!
Não mais! Os anos passaram,
E com eles desbotaram!
Tantas rosas de esperança!
Do tempo nas cinzas frias
Repousam pra sempre os dias
De meu sonhar de criança!

IX

Um dia o sol poente dourava a serrania,
As ondas suspiravam na praia mansamente,
E além nas solidões morria o som plangente
Dos sinos da cidade dobrando Ave-Maria.
Estávamos sozinhos sentados no terraço
Que a trepadeira em flor cobria de perfumes:
Tu escutavas muda das auras os queixumes,
Eu tinha os olhos fitos na vastidão do espaço.

Então me perguntaste com essa voz divina
Que a teu suave mando trazia-me cativo:
- Por que todo o poeta é triste e pensativo?
Por que dos outros homens não segue a mesma sina?

Era tão lindo o céu, a tarde era tão calma...
E teu olhar brilhava tão cheio de candura,
Criança! que não viste a tempestade escura
Que estas palavras tuas me despertaram nalma!

Pois bem, hoje que o tempo partiu de um golpe só
Sonhos da mocidade e crenças do futuro,
Na fronte do poeta não vês o selo escuro
Que faz amar as tumbas e afeiçoar-se ao pó?

X

À luz da aurora, nos jardins da Itália
Floresce a dália de sentida cor,
Conta-lhe o vento divinais desejos
E geme aos beijos da mimosa flor.
O céu é lindo, a fulgurante estrela
Ergue-se bela na amplidão do sul,
Pálidas nuvens do arrebol se coram,
As auras choram na lagoa azul.

Tu és a dália dos jardins da vida,
A estrela erguida no cerúleo véu,
Tens nalma um mundo de virtudes santas,
E a terra encantas num sonhar do céu.

Basta um bafejo na inspirada fibra
Que o seio vibra divinais encantos,
Como no templo do senhor vendado
O órgão sagrado se desfaz em cantos.

Pomba inocente, nem sequer o indício
Do escuro vício pressentiste apenas!
Nunca manchaste na charneca impura
A doce alvura das formosas penas.

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