A Vingança

I

Três vezes percorrido as doze casas
Tem o rei das esferas. É um dia
Brilhante e festival, cheio de júbilo
Nos imensos domínios de Lotário.
A habitação tranborda de convivas,
Retroa a orquestra, tudo ri-se e folga,
E os próprios servos no terreiro juntos
Dançam contentes, sem lembrar-se ao menos
Da escravidão pesada. O que há de novo?
Que fato estranho há transformado a face
Desta sinistra e túrbida morada?
Não o sabeis? Roberto hoje casou-se,
Roberto, o filho amado de Lotário
Cujos domínios não abrange a vista:
Feliz três vezes a formosa noiva!

II

A dança, o riso, os brindes e as cantigas
Até à noite vão; quando já débeis
As luzes vacilam nos seus lustres,
E o cansaço abatia os seios todos;
Quando convulso o arco estremecia
Nas cordas da rebeca, e os olhos lânguidos
Percorriam os grupos fatigados,
Roberto palpitante de ventura,
Louco de amor, a fronte incandescente
De abrasadas idéias, afastou-se
Do meio dos convivas, e furtivo
Desceu ao campo a respirar as brisas
Embebidas dos lânguidos perfumes
Das noites do verão. Tudo era calmo,
Sereno e sossegado; a natureza,
Num leito de volúpias adormida,
Parecia sorrir-se desdenhosa
Ao júbilo ruidoso que partia
Da casa de Lotário. Pensativo
Roberto se sentou sobre uma pedra
À margem de um regato, abrindo o seio
Ao transpirar balsâmico das flores.

III

Nas noites de noivado, quem se atreve
A deixar o festim, antes que a aurora
Não surja no horizonte? Assim o moço,
Vendo inda longe a hora desejada,
Maldizia essa festa, esses convivas,
Essa ardente alegria, que adversa
Levantava-se entre ele e a noiva amada.

IV

Longo tempo assim ´steve, mergulhado
Nas suas reflexões; quando se erguia
Para voltar à casa, um vulto escuro
A passagem cortou-lhe. O moço, rápido,
Volveu um passo atrás, e sossegado
Deu seu primeiro susto, perguntou-lhe:
- Quem és tu? o que queres?
Impassível,
O estrangeiro afastou as largas abas
De seu vasto chapéu.
- Oh! Deus! é Mauro!
Mauro, o que queres? fala!
- Eis o que quero!
O escravo respondeu vergando o moço
Com seus braços de ferro: - eis o que quero!
- Bradou cruento, amiudando os golpes
Terríveis e certeiros sobre o peito
Do mancebo infeliz; - Eis o que quero!
Repetiu arrastando-o sobre um fosso imundo,
Cheio de lama e apodrecidas plantas:
- Eis teu leito de bodas, boa noite!

V

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A orquestra prosseguia, ardente, forte,
Seus ruidosos acordes; dos dançantes
Poucos se achavam do salão no meio,
A maior parte conversava aos cantos
Cansada sonolenta. De repente
Uma escrava lançou-se alucinada
Entre os grupos esparsos dos convivas!...
- Venham! bradava, meu senhor ´stá morto,
Meu senhor já morreu!... venham, acudam!
Um raio que tombasse no edifício
Não produziria tanto horror; um calefrio
Correu nas veias todas, e nos rostos
A palidez do túmulo estendeu-se.
Levantaram-se trêmulos, medrosos,
Acompanhando a escrava, que apressada
Ao quarto de Lotário os conduziu.

VI

Ele estava deitado no assoalho
Inundado de sangue; um surdo ronco
Partia-lhe do seio, e os olhos baços
Uma janela aberta contemplavam,
Como querendo descobrir nas trevas
Um profundo mistério. O quarto cheio,
Repleto de convivas e de escravos,
Retumbou de questões: - onde foi ele?
Como foi? conheceram-no? seu nome?

VII

Lotário apenas, já levado ao leito,
Para a janela olhava, abria os lábios,
Uma palavra ia partir, depois
Vendo baldados os esforços todos,
Soltava um som pungente e cavernoso,
Entre espuma sangrenta, da garganta.

VIII

Duas horas de angústias se passaram.
A morte caminhava passo a passo,
E não tardava a vir sentar-se, lívida,
Do leito do senhor à cabeceira.

IX

Tudo era em vão; cuidados e socorros
Gastaram-se debalde. Um dos cativos,
Montado sobre rápido cavalo,
Correra a ver o médico; era longe
A morada do filho da ciência;
E a sina de Lotário estava escrita!

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X

Quando a sombra funérea de além mundo
Começou a turbar-lhe o olhar e o rosto,
Supremo esforço ele tentou; ergueu-se
Por uma estranha força, abriu os lábios
E murmurou com voz lúgubre e funda,
Com essa voz tão próxima dos túmulos,
Que parece partir de negro abismo:
- Também era meu filho!... e extenuado
Caiu sobre os lençois, rígido, frio,
Já domínio da campa
Em vão tentaram
O sentido buscar dessas palavras
Que Lotário dissera ao pé da morte,
Em vão tentaram descobrir aquele
Que era também seu filho! densas trevas,
Impenetrável manto de mistério
Cobria esse segredo, e o único lume
Que pudera surgir, o gelo frio
Tinha apagado para sempre! A campa,
Discreta confidente, esconde tudo!

 

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