Jornal Progresso



A Inocência Das Idades


O bosque é, por vezes, tão extenso e denso que deixa as pequenas árvores vegetarem sem o entendimento da realidade onde se integram.

Bastam-lhes as raízes saudavelmente firmadas no solo, a chuva, o sol, a lua e o vento que lhes asseguram os ciclos de vida, como garantia da missão aparentemente acometida pela Mãe-Natureza.

È como quem deixa a vida passar, sem perceber que também tem de passar pela vida.

Talvez o mesmo se possa aplicar à interpretação de um episódio ocorrido há trinta e cinco anos e que gira à volta de um Jornal que não chegou a ser: - O “Progresso”.


Na passagem do final dos Anos Sessenta para o início dos Anos Setenta formou-se um grupo que, na antiga cidade de Lourenço Marques, pretendeu fundar o Jornal “Progresso” como veículo de expressão juvenil e participação activa na vida sócio-político e económica não só do País, mas sobretudo da antiga Província Ultramarina de Moçambique.

Vivia-se, então, o tempo da Guerra Colonial e sentiam-se também os primeiros sinais da pretensiosa “Primavera Marcelista” que, per si, justificaram o imediato e, porque não, entusiástico apoio de Maria José Salema, na época reitora do Liceu António Enes.


Alguns contributos para a História


Curiosamente ou não, o núcleo inicial era constituído por alunos da Alínea E que propiciava a admissão à Faculdade de Direito, então inexistente em Moçambique por ser entendida como potencial foco subversivo do “status quo”, apesar de já existir a Universidade de LM, sucedânea dos “Estudos Gerais” e implantada pelo Professor Doutor Veiga Simão, seu primeiro Reitor e, mais tarde, Ministro da Educação do Governo de Marcelo Caetano e Ministro da Defesa do Governo de António Guterres no início do Século XXI.

Quem terminava a Alínea E teria assim e se pudesse, rumar a outras cidades da Metrópole porque também não existia a Licenciatura em Direito nas restantes Províncias Ultramarinas, não fosse o Diabo tecê-las.

E desse núcleo inicial fundador do projecto “Progresso” faziam parte Victor Nogueira Pereira, Luís Carlos Patraquim, Mário José Fernandes e Emílio Luz Branco, mais conhecido por “Nampula”, alcunha que provavelmente lhe estava associada à terra de origem.

A ideia deste projecto surgiu nas conversas que usualmente tínhamos nos intervalos das aulas (dez minutos entre cada disciplina) e cimentou-se em reuniões pós-horário escolar, começando por se criar uma Comissão Directiva que integrou os referidos nomes do núcleo fundador.

Cedo percebemos que a tarefa era aliciante mas de trabalhosa e difícil execução por dois motivos principais e facilmente entendíveis: - por um lado era necessário mobilizar colaboração redactorial com qualidade q.b. e, por outro lado, era também preciso assegurar a viabilidade económica do Jornal.

Com dezassete anos de idade nada parece impossível e até a Lua está mesmo ali à mão.

É claro que o Jornal, sendo do Liceu, só seria possível se fosse autorizado pela reitoria e esse passo foi, como já se disse, realizado e apoiado não só pela Reitora Maria José Salema como também pela Vice-reitora Inês Calisto que se reuniram connosco.

Dado este primeiro passo “oficial”, passámos ao contacto directo com algumas empresas da cidade que acolheram com agrado a ideia e contratualizaram verbalmente a publicação de anúncios num montante que não só suportava os custos de produção e distribuição, como sobrava ainda verba para nos aventurarmos a sonhos mais altos, nomeadamente admitir a hipótese de fazer circular o “Progresso” e receber colaboração para o Jornal de todos os Liceus do País, desde o Minho a Timor, como então se dizia.

Contrariamente ao que e pudesse imaginar, até foi muito fácil garantir suporte económico, via publicação de anúncios das empresas locais.

Como não era suposto investirmos em meios gráficos próprios, valeu-nos o apoio da empresa proprietária e editora da Revista “Tempo”, dirigida por Rui Cartaxana e que, como jornalista profissional, nos foi dando algumas instruções sobre o processo de fabrico de um jornal. Com ele, passámos algumas tardes no seu gabinete de trabalho e com ele definimos o formato tablóide do “Progresso”, paginado a seis colunas e ilustrado com fotografias a preto e branco.

Lembro-me que chegou a ser impresso e distribuído um cartaz a anunciar o nascimento do jornal, cartaz esse desenhado pelo nosso colega Firmino Sousa.

Quanto à colaboração de outros alunos do Liceu, também não foi tarefa difícil e, por isso, logo se conseguiu matéria suficiente para compor e paginar o primeiro exemplar e passá-lo a “offset”, fase que antecede a impressão no papel, o que não chegou a acontecer como se verá. Tudo parecia correr bem, o ânimo era elevado quando, afinal, surge a primeira pedra na engrenagem.


A Associação Académica e a FNI


Nesta época do Jornal “Progresso” existia já uma incipiente actividade política centrada na Associação Académica de Moçambique e na chamada Frente Nacional Integracionista (FNI), desenvolvida por estudantes universitários.

O grupo da Associação Académica de Moçambique era liderado pelo Ivo Garrido, na altura Presidente da A.A.M. e hoje médico e Ministro da Saúde do governo moçambicano, e conotado com o que na altura se chamava “os do contra”.

Através do SIPE, Serviço de Informação e Propaganda Estatística, a Associação Académica editava documentos políticos poli copiados na velha “Stencil” e que eram ou distribuídos gratuitamente ou comprados, como foi por exemplo o caso do “Processo Histórico” de Juan Clemente Zamora, editado semanalmente em fascículos clandestinos.

A “FNI” era um grupo de Direita ou mesmo de Extrema-Direita, alinhado com o Governador-geral da Província e, nomeadamente, com o general Kaulza de Arriaga, Chefe de estado-maior na Província de Moçambique e que coordenava toda a acção política e militar na guerra contra os então chamados terroristas da Frelimo.

A “FNI” era liderada pelo Gonçalo Mesquitela, já falecido, e que era filho do Dr. Mesquitela, deputado de Salazar e Caetano e com assento, por nomeação, na “União Nacional” e, mais tarde, na “Assembleia Nacional Popular”, ambos Partidos Políticos únicos, uma vez que se vivia em Ditadura.

Com excepção do “Nampula” que era Comandante de Bandeira da Mocidade Portuguesa, todos os outros membros do grupo fundador do Jornal “Progresso” estavam mais ligados ao grupo da Associação Académica do que à “FNI”, mas o próprio “Nampula” nada tinha a ver com a “FNI”.

Por isso, foi com naturalidade que pedimos alguma colaboração à “A.A.M.”, na pessoa do Ivo Garrido, no sentido de ocuparem algum espaço nas páginas do “Progresso” e enriquecerem o conteúdo do jornal. E foi a partir daí que a porca começou a torcer o rabo.

A “FNI” apercebeu-se da ligação do “Progresso” ao grupo da Associação Académica e quis também integrar o grupo de colaboradores do jornal.


Uma reunião aterrorizante!


Foi, então, marcada uma reunião com a “FNI” para se conversar sobre a colaboração deles e juntámo-nos no apartamento do Gonçalo Mesquitela, localizado num dos prédios da antiga Avenida António Enes, próximo do local onde terminava a Avenida Pinheiro Chagas.

A reunião foi à noite, o andar era alto, e nela participaram eu próprio, o “Nampula”, o Luís Carlos Patraquim e o Mário José Fernandes, ou seja, a Comissão Directiva do “Progresso” em peso, estando a representar a “FNI” o Gonçalo Mesquitela, um indivíduo de apelido Belmonte (que não conhecíamos) e o Guilherme da Silva Pereira, a quem apelidámos de “mata-hari” porque já o tínhamos visto participar em eventos da Associação Académica, o que pressupunha ser um espião que jogava nos dois tabuleiros da actividade política universitária.

A reunião foi dirigida pelo Gonçalo Mesquitela que se dirigiu a nós sempre em tom intimida tório. Refira-se, a propósito, que o Gonçalo era um indivíduo de forte compleição física e cinturão negro de “karaté”.

Começou por nos ameaçar com a “PIDE” e por nos dizer que estávamos metidos em maus lençóis por nos relacionarmos com o grupo da Associação Académica de Moçambique, contestatários ao governo e relacionados com os “turras”.

As ameaças subiram de tom e, confesso, estávamos todos verdadeiramente amedrontados, par não usar expressão mais vernácula, com o que se estava a passar e o meu pavor era tanto maior quantas as vezes que o Gonçalo se levantava e se dirigia à varanda, espreitando lá para baixo. Cheguei a temer que íamos ser atirados dali a baixo!

Às tantas é-nos lançada a seguinte ordem : - proibição da colaboração da Associação Académica de Moçambique nas páginas do jornal e só a “FNI” poderia publicar os textos que entendesse.

Ainda ripostámos e concedemos ceder igual espaço nas páginas do “Progresso” à “FNI” e à “A.A.M.”, mas não aceitámos a exclusão da Associação.

A “FNI” engrossou ainda mais o tom intimida tório e para nos mostrar a gravidade da situação decidiram, ali mesmo e connosco presentes, telefonar ao general Kaulza de Arriaga a quem disseram que os “rapazes” não aceitam desligarem-se do grupo da Associação.

A conversa entre a “FNI” e o general Kaulza de Arriaga durou alguns minutos e, depois de desligarem o telefone, informaram-nos que se persistíssemos na nossa posição seríamos convocados para a tropa e colocados em zona cem por cento de guerra.

Já quase sem voz na garganta, acabámos por dizer que íamos pensar melhor no assunto e que voltaríamos para nova reunião.

É preciso, talvez, recordar que a Comissão Directiva do “Progresso” rondava a faixa etária dos dezassete/dezoito anos e que éramos todos alunos do sétimo ano do liceu António Enes.

O ir para a tropa significava não só enfrentar uma guerra com que discordávamos, mas também a interrupção dos estudos, para além da preocupação que isso causava, naturalmente, às nossas famílias.

Quando descemos o elevador e nos apanhámos na rua, a nossa reacção foi desatar a correr pela Pinheiro Chagas acima e só parámos no velho “Tico-Tico”, ponto de encontro da malta da Associação Académica.

Numa das mesas do “Tico-Tico” lá estava o Ivo Garrido com alguns colegas e amigos em animada cavaqueira e que, o verem-nos completamente encharcados em suor e com ar aterrorizado, nos perguntaram o que tinha acontecido?

Nós contámos, eles ficaram muito indignados e depois de umas catembes bem bebidas e de uns pregos trinchados, a noite acabou par ali.

No dia seguinte fomos chamados ao gabinete da reitora que, na presença da vice-reitora, nos informou que o Jornal tinha acabado, afinal sem nunca ter vindo a público!

Os nossos Encarregados de Educação foram, dias depois, também convocados para se responsabilizarem pelas despesas que já tinham sido feitas pela empresa da Revista “Tempo” e que na altura orçavam, salvo o erro, trinta contos em moeda moçambicana.

Sei que o meu pai se recusou a assumir essa responsabilidade e que perguntou à Dr.ª Maria José Salema porque razão não tinha convocado os Encarregados de Educação quando autorizou os alunos a fazerem o referido Jornal e os convocava só agora?

Ainda hoje não sei se essas despesas foram ou não pagas, mas posso assegurar que, caso o Jornal tivesse sido publicado, a receita da publicidade era mais do que suficiente para cobrir as despesas existentes.

Entre nós, miúdos, o ambiente era de revolta que foi ainda agravada quando, passados mais uns dias, entra na aula de Latim da professora Ana Jacob o contínuo que lê um comunicado da reitoria que dizia mais ao menos o seguinte “…na sequência das actividades relacionadas com a criação de um Jornal deste Liceu são aplicadas sanções disciplinares de um dia de suspensão e sete dias de repreensão registada aos alunos Victor Pereira, Luís Carlos Patraquim e Mário José Fernandes e repreensão registada ao aluno Emílio Luz Branco. Inacreditável! Levantámo-nos e saímos logo da sala de aula, depois de autorizados pela Dr.ª Ana Jacob, e dirigimo-nos ao Gabinete da Reitora para apresentarmos o nosso protesto, mas não fomos recebidos.

Mais tarde, o Mário José Fernandes e o Patraquim encontraram a reitora Maria José Salema na rua, junto ao edifício do BNU na antiga Avenida República e insultaram-na e ainda lhe deram uns bem merecidos encontrões.

Na sequência disso, o Mário Fernandes e o Luís Carlos Patraquim viram a pena agravada para um ano de suspensão das aulas.


“Dimensão Quatro”


Este desaire do “Progresso” não nos liquidou a esperança e conseguimos ver aceite um pedido feito à Direcção da Associação dos Naturais de Moçambique, situada na Avenida 24 de Julho e onde pontificavam alguns vultos da cultura moçambicana como José Craveirinha, Eugénio Lisboa, Rui Knopli, entre outros.

Esse pedido consistiu na elaboração de um Suplemento Juvenil no Jornal “Voz de Moçambique”, editado pela referida Associação e a que demos o nome de “Dimensão Quatro” porque pretendemos dar continuidade à Comissão Directiva do “Progresso”, constituída por quatro pessoas.

Mas, decididamente, estávamos em Maré de azar. Logo no primeiro suplemento fizemos uma primeira página com uma fotografia de graduados da Mocidade Portuguesa em saudação fascista e com uma legenda elucidativa: “ Levados, levados sim!”

A falta de humor da “PIDE” determinou a apreensão daquela edição do Jornal “Voz de Moçambique”, bem como do primeiro suplemento juvenil que terminou também.


Capítulos seguintes


Depois destas peripécias, o Mário José Fernandes e o Luís Carlos Patraquim deram o salto para a Suécia onde, suponho, pediram asilo político e só voltaram a Portugal e a Moçambique depois do Golpe de Estado de 25 de Abril de 1974.

Eu continuei a estudar e fiz o curso de Jornalismo na Escola Superior de Meios de Comunicação Social em Lisboa. Iniciei a profissão de jornalista a 1 de Junho de 1976 no semanário “Tempo”, passando depois pelo C1 da RTP, Jornal Novo, Teledifusão de Macau (TDM) e RTP-Açores, onde me aposentei por doença em 1997.

O Luís Carlos Patraquim regressou a Moçambique e, meu caro Armando Rocheteau, faz o favor de completar o resto e de acrescentar ou alterar o que achares conveniente.

Sassoeiros, 8 de Dezembro de 2005

Victor Pereira



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senhor António Jorge Santos:

Por casualidade, tive acesso a um site sobre o Liceu António Enes, no qual, a propósito de um tal jornal Progresso, que desconheço, aparece o meu nome, sintomaticamente a DIFAMAR-ME, para o que agirei em conformidade nos termos da lei. O texto á de sua autoria, sob a alcunha de “Jojo”.

Esclarecimentos:

1. Na data em que é referido que eu estive na alegada reunião do fascistóite Gonçalo Mesquitela, já me encontrava na Universidade de Coimbra - saí directamente, em 1968, do Liceu António Enes para a Faculdade de Letras em Coimbra;

2. Em Coimbra, c-oparticipei na insurreição geral da Universidade, em 1969, ( ler COIMBRA 69 de Celso Cruzeiro), acabando por ser expulso e preso, embora posteriormente reintegrado justamente quando Veiga Simão saíu da Reitoria da Universidade de Loureço Marques para ser Ministro da Educação em Portugal;

3. Regressei em 1971 a LMarques, quando a Universidade abriu a faculdade de Letras, e integrei de imediato a DIRECÇÃO da Associação Académica de Moçambique, (AAM) presidida pelo LUIS ALFARO CARDOSO - nunca, em tal condição, participei com Ivo Garrido em actividades da AAM;

4. Editámos, sim, um jornal de seu nome DIÁLOGO, em que os mais destacados opositores ao regime colonial - o Joaquim Barradas, o Ricardo Barradas, irmão dele ainda em Moçambique e eu próprio, que o dirigia - escreviam;

5. A PIDE, com a conivência, entre outros, desse tal Mesquitela, criou um jornal provocatório com o mesmo nome, que se encarregava, através de estudantes ( poucos) da Universidade de Lourenço Marques, de distribuí-lo madrugada dentro por caixas de correio previamente seleccionadas;

6. Decretámos, entre dezenas de outras iniciativas, UM DIA DE LUTO ACADÉMICO, que culminou à noite na então CASA DAS BEIRAS, com a intervenção de cantores e músicos do chamado CANTO LIVRE;

7. Quem fez o discurso de início dessa sessão FUI eu, mandadato pelos meus camaradas da Direcção da AAM, sendo primeiro ameaçado a não fazê-lo por agentes da PIDE à paisana que foram intimidar-me aos camarins;

8. Por decisão desse nosso colectivo, resisti à intimidação e fiz o discurso. A CASA DAS BEIRAS estava completamente lotada - há fotos desse acontecimento;

9. Semanalmente - e já que o vosso texto abominável se refere a Kaulza de Arriaga - organizavamos nas instalações da AAM sesões de poesia revolucionária, numa das quais, aliás, disse um poema a ridicularizar o referido gerenal, conhecido pelo MEIRIM da guerra - FUI LEVADO PARA A PIDE para interrogatório;

10. Em 1972, os mais incómodos dirigentes da AAM foram, em Julho, COMPULSIVAMENTE integrados na tropa, num curso de oficiais em Boane apenas com 39 recrutas do curso de oficiais milicianos - os tais com quem Kaulza tinha contas para ajustar;

11. Eu e outros camaradas oficiais DESERTARÍAMOS mais tarde. Fomos presos, julgados e condenados.No meu caso, julgado pelo crime de deserção e ainda pelos que me eram imputados retroactivamente como tendo sido praticados na Universidade de Coimbra.

12. Estava preso em 25 de Abril de 1974 e fui libertado por via da amnistia da JUNTA DE SALVAÇÃO NACIONAL.

Estes são apenas alguns factos, sendo que, nos termos da lei, repito, exijo que esta carta seja publicada neste vosso espaço-net, sem embargo do recurso que farei aos direitos que tenho ao meu bom nome.

A si, não o conheço.

Conheço, sim, as linhas com que se cose a difamação, a provocação, a insídia, a desonestidade intelectual, de que o senhor é infelizmente protagonista.

GUILHERME PEREIRA

( jornalista, carteira profissional 6964, e professor universitário, em Lisboa)

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