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POLÍTICA NA CULTURA POPULAR Perfil popular do presidente eleito atrai a atenção dos
poetas nordestinos, verdadeiros repórteres cuja especialidade é narrar, em
versos, o cenário político local e nacional por
SÉRGIO MONTENEGRO FILHO Que
forma melhor de homenagear um presidente eleito, conhecido pelo seu estilo popular, que
uma obra literária composta na linguagem do povão? Pois desde a vitória, em
outubro, o petista Luiz Inácio Lula da Silva passou à condição de mote de
inspiração para autores de folhetos de cordel. Literatura típica das feiras do
Nordeste, os pequenos livrinhos já tiveram seus dias de glória, mas mesmo
perdendo a batalha contra a mídia eletrônica, continuam sendo insistentemente produzidos
por poetas de vários Estados da Região, abordando temas românticos, sacros e
políticos. Nos
últimos meses, vários livrinhos foram publicados contando a saga do
retirante que saiu interior de Pernambuco, em um pau-de-arara, buscando uma vida melhor em
São Paulo, e terminou sendo escolhido para comandar o País. O primeiro folheto de cordel
sobre a vitória de Lula foi produzido no dia seguinte à eleição em segundo turno, pelo
teólogo e cordelista cearense Guaipuan Vieira. Lula, um operário na
Presidência, foi publicado no dia 28 de outubro, e conta, em linguagem popular e
com riqueza de detalhes, a trajetória do líder petista rumo ao Planalto. Depois deste,
vários outros livrinhos sobre Lula passaram a ser pendurados nos cordéis das feiras
livres no interior e em bancas populares nas cidades grandes. Na
última sexta-feira, o pernambucano Tiago Ramos da Silva distribuía durante a
festa de aniversário do deputado eleito Miguel Arraes (PSB), também mote
histórico dos cordelistas o livreto de sua autoria: A vitória de Lula e a
posse no dia 1º de janeiro de 2003. Outras tantas obras foram compostas tendo Lula
como personagem. Mas o
petista não é o único homenageado pelos poetas e cantadores populares. Ao longo dos
seus mais de cem anos de existência, a literatura de cordel, rica em rimas e versos, traz
na bagagem inúmeras histórias sobre os homens que se sucederam no comando da Nação,
ora narrando suas trajetórias, ora discorrendo sobre duras campanhas eleitorais, e ainda
comentando o desempenho dos governantes. Outros, mais lamuriosos, vão mais longe,
poetizando a morte dos presidentes. Tudo na linguagem que o povo entende, como
classifica o maior colecionador de cordéis do Estado, Liedo Maranhão. Dono
de uma invejável coleção, Liedo exibe orgulhoso dezenas de livrinhos escritos sobre os
presidentes brasileiros. O campeão em motes para poetas populares é Getúlio Vargas,
sobre cuja trajetória foram escritos pelo menos duas dúzias de histórias. Autor de
várias publicações sobre a literatura de cordel, Liedo explica as diferenças entre os
vários estilos. Há
o folheto de romance ou amor, o de santidade como os feitos em homenagem a Padre
Cícero e Frei Damião e os de cangaço, que têm Lampião como principal
personagem, cita. Mas é no folheto político que os poetas agem como verdadeiros
repórteres populares, narrando, nas suas sextilhas, os acontecimentos da época, num
formato absolutamente identificado com o que desejavam seus leitores. O cordel é o
jornal do matuto, brinca Liedo, lembrando que alguns dos autores chegam a assinar
suas obras como poeta-repórter. O
primeiro cordel brasileiro surgiu no final do século IX, composto pelo paraibano Leandro
Gomes de Barros. Desde então, nomes como José Soares, Severino Borges, Joaquim de Sena,
Minelvino da Silva, Manoel de Almeida, Expedito Silva, Rodolfo Cavalcanti, Otacílio
Batista, Olegário Fernandes, Leonardo dos Santos, entre tantos outros, povoam os cordéis
das feiras, assinando obras sobre acontecimentos políticos do País. À exceção dos
tradicionais pecadilhos da língua rimada, é difícil encontrar nos folhetos
incorreções históricas significativas. A precisão de fatos é característica dos
poetas-repórteres. Respeitando essa precisão, mas sem abrir mão do veio poético, Guaipuan Vieira e Tiago Ramos capricham nas suas recentes publicações sobre a vitória de Lula. Ao leitor peço atenção/neste folheto de feira/prá falar de um cidadão/que venceu grande barreira/prá se tornar presidente/desta Nação brasileira, diz Guaipuan na abertura do seu folheto, antes de desfiar um exato resumo da vida do líder petista. O arremate vem de Tiago: Luiz Inácio, o Lula/é um político experiente/ganhou a eleição/com muitos votos de frente/que alguém queira ou não queira/é Lula o presidente.
A
POLÍTICA NA CULTURA POPULAR II Morreu Getúlio, morreu nosso chefe amado. Cujo coração em vida fôra ao povo devotado. Hoje o mesmo coração De balas está crivado! Que triste e cruel desfecho Prá quem, desde a mocidade, Com um sorriso enfrentava O bem e a fatalidade, Lutando contra a miséria, Traição e Perversidade.A morte do presidente Getúlio Vargas (Dilarme Monteiro) Morreu Getúlio, morreu Morreu nosso chefe amado. Cujo coração em vida Fôra ao povo devotado. Hoje o mesmo coração De balas está crivado! Que triste e cruel desfecho Prá quem, desde a mocidade, Com um sorriso enfrentava O bem e a fatalidade, Lutando contra a miséria, Traição e Perversidade. * Composto após a morte de Vargas, em 1954
Jânio não traz espada (Rufino Moraes) O Jânio não traz espada Nesta luta redentora. Quem quer a casa arrumada Compre logo uma vassoura Que a limpeza adequada Da Sorte é consoladora. É a força do destino A Divina decisão. Acabou o desatino Começou a salvação. Jânio é o presidente De glória para a Nação. * Composto para a campanha de Jânio Quadros, em 1960 A
chegada do ex-presidente Castelo Branco no Céu Marechal Castelo
Branco Daqui da Terra partiu Assim que houve o desastre Para a glória ele subiu Bateu na
porta do Céu São Pedro fez que não ouviu Ele tornou a bater Na corte celestial São
Pedro disse: quem é? Disse ele: É o marechal Me chamo Castelo Branco Sou cearense legal.
Lágrimas, gemidos, gritos e choros pela morte de Tancredo Neves (Leonardo Rodrigues dos Santos) A vinte e um de abril A data de Tiradentes Deixou o País de luto Choraram até os inocentes O povo não se conforma Com a morte do presidente Pois dorme, dorme Tancredo Que outro aqui não vem Somente Getúlio Vargas Foi seu caminho também Pois dorme, dorme Tancredo Tá no mundo do além. * Composto após a morte de Tancredo, em 1985 Lula,
um operário no poder O povo ficou esperto Ouviu cada candidato Seus projetos ilusórios Depois disso, o constato De eleger prá presidente Um trabalhador de fato. Hoje Lula é presidente Do Brasil do excluído Que espera por mudanças Prá que seja renascido Com certeza lutará Por este povo sofrido. Sabemos que enfrentará A pior difamação Pelos seus opositores Que perderam a eleição Mas a casa terá ordem E não mais corrupção. * Composto em homenagem à vitória de Lula, em outubro de 2002 Do
Cruzado às eleições O Nordeste sai em campo e a Nação se ufana, no combate à inflação, e a coisa fica bacana. A euforia é tanta que até padre vai em cana. Cada freguês, um fiscal e nada de paparico. Dexe cum nóis, presidente! Já tão pidindo pinico. Agora, é só o senhor mandar prender ladrão rico. O fiscal que come bola deve ter muito cuidado, fazer a coisa direita e entender do riscado, prá não ficar de bobeira que o home tá arretado. * Composto à época do Plano Cruzado, no Governo de José Sarney, em 1985 O caçador de marajás (Otacílio Batista) Cace, cace, caçador Você tem direito à caça. Cace a quem tanto ameaça O pão do trabalhador, Queremos um salvador Que não solte Barrabás. A bigorna se refaz Quando espedaça o martelo. Fernando Collor de Mello Caçador de marajás. Vai aparecer quem dobre O nosso salário nanico. Rico não vai ser tão rico Pobre não vai ser tão pobre. Marajá não mais se cobre Depois que um homem sagaz Enfrentar os Ferrabrás Vencendo o grande duelo. Fernando Collor de Mello Caçador de marajás. *Composto para a campanha de Collor, em 1989 A
POLÍTICA NA CULTURA POPULAR III O político pernambucano que mais inspirou poetas-repórteres, segundo os
colecionadores, foi o ex-governador Miguel Arraes. De 1960 até hoje, há notícia de mais
de uma dezena de cordéis escritos em sua homenagem, constituindo um ciclo literário, na
denominação dada pelos especialistas. A rima mais famosa conta a vitória do Zé
Ninguém contra João Cleófas, em 1962: Das três quedas de Cleófas/foi essa
que doeu mais/Além de cair de costas/caiu nos pés de Arraes, diz. Além de Arraes,
foram alvo da caneta dos cordelistas figuras como Marcos Freire, Jarbas Vasconcelos,
Armando Monteiro Filho, Antônio Farias, Cid Sampaio e Gregório Bezerra. Alguns partidos
políticos também serviram de mote aos poetas, principalmente o MDB e sua luta contra a
ditadura. Não obstante, muitos dos presidentes do regime militar são exaltados em versos
nos livrinhos. A despeito de a
maioria dos folhetos ter sua origem na inspiração espontânea dos poetas, também havia
os cordéis escritos a pedido dos próprios políticos. Liedo Maranhão relembra, como
exemplo, a encomenda feita pela então deputada federal Cristina Tavares, em campanha pela
reeleição, ao poeta José Soares. Ele o escreveu e agradou à guerreira, mas
recebeu dela uma ressalva irônica: tirar da obra a palavra beldade, que usou
para descrever Cristina. Hoje, os cordéis
perderam força em todas as áreas, inclusive na política, cujo espaço está totalmente
coberto pela mídia de massa. Cantadores famosos ainda são contratados durante as
campanhas, mas apenas como atração para animar os poucos comícios que acontecem.
O cordel teve um papel importante na política. Era a notícia quente e fresquinha,
em forma de arte, e muito procurada, lembra o advogado e compositor Samuel Valente,
também colecionador de material político. Para ele, os folhetos eram, acima de tudo,
informativos, mas traduziam também o lado romântico das campanhas. Com a
modernização, os meios de comunicação de massa tomaram todo o espaço. Não
há mais esse romantismo, conclui Valente. A
POLÍTICA NA CULTURA POPULAR IV
Nascido em Teresina (PI) e radicado no Ceará desde 1976, o poeta, teólogo e servidor
federal Guaipuan Vieira ingressou há alguns anos no ramo do cordel político. Preocupado
com a decadência da literatura de feira, fundou, em 87, o Centro Cultural dos
Cordelistas do Ceará, que atualmente reúne poetas de todo o Nordeste. Hoje, com livros
publicados sobre o tema, ele está convencido: O cordel está vivo. E vê na
política mais um veio de inspiração. Em 28 de outubro, um dia depois da vitória de
Luiz Inácio Lula da Silva, Guaipuan compôs o folheto Lula, um operário no
poder, que está sendo vendido em vários Estados da Região. Nesta entrevista ao
repórter Sérgio Montenegro Filho, ele diz ter se inspirado nas características
de Lula, um homem simples, identificado com os nordestinos mais sofridos,
principal mote da poesia popular. JORNAL
DO COMMERCIO O sr. costuma fazer poesias de cunho político, ou fez apenas uma
homenagem a Lula? GUAIPUAN
VIEIRA O primeiro folheto referente à política foi sobre Sílvio Santos,
quando ele quis candidatar-se à Presidência da República, em 1989. Era intitulado
Sílvio Santos e seus ministros. O trabalho foi de humor. Coloquei todos os
jurados do programa dele como ministros. O segundo nessa temática foi o de Lula. Esse é
diferente. Lula tem história, conteúdo. É um personagem que está no contexto do
cordel, pela sua popularidade. É um folheto biográfico. Aliás, pretendo escrever tudo
sobre Lula. Claro, os fatos populares. Ao término, pretendo publicar todos
os folhetos numa coletânea-livro. Mas sairão em primeira mão como folhetos. JC
O sr. é filiado ao PT ou a algum outro partido? GUAIPUAN
Não! Em 1989, filiei-me ao PSB, por uma razão qualquer, mas não sei se
ainda sou. Não sou militante. JC
O que o inspirou a fazer o folheto sobre Lula? GUAIPUAN
A sua popularidade. Ser nordestino. Homem simples, a exemplo de milhares que
fugiram da terra natal em busca de melhores condições de vida. Talvez seja isso que o
torna um mito. Até o presente, é o único governo popular, que fala com a gente humilde,
que ouve as suas origens. É simples pelo seu natural. JC
Qual a sua expectativa diante do Governo Lula? GUAIPUAN
Muita esperança de mudanças na política social. O Brasil precisa mudar,
mudar para melhor. os homens de diplomas provaram que não são capazes de fazer um Brasil
melhor. O Brasil precisa de alguém que governe com o coração, com a convicção de que
veio para transformar este País de milhões de descamisados, que está à mercê da
corrupção. JC
Como o sr. obteve as informações sobre Lula? Há uma riqueza de detalhes no
cordel. GUAIPUAN
Há anos pesquiso sua vida, através de revistas, jornais, folderes de
políticos do PT e, sem dúvida, consegui uma ajuda pela Internet. JC Em
1987, o sr. fundou um centro voltado para a literatura de cordel, e escreveu livros sobre
o assunto, além de vários folhetos inspirados em outras áreas que não a política.
Qual a situação do cordel hoje? GUAIPUAN Naquela época o cordel estava esquecido, quase morto. Tive que fazer alguma coisa, e deu certo. Fizemos exposições de títulos, debates, palestras, oficinas de cordel. Tudo isso em universidades, colégios e galerias de arte. Hoje, o cordel está vivo. Sou licenciado em teologia e sou funcionário público federal, mas tenho o folheto como gancho, porque o salário é pouco. Me orgulho de vender folhetos em feiras.
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