Capítulo

Dez

 

 

 

 

 

 

 

Após inúmeros convites de seu pai para que conhecesse a sua nova casa e a esposa, Daniel, finalmente, decidiu ir visitá-lo. Na verdade, estava com muita saudade de “seu velho” e tinha certeza que ele também sentia saudade, principalmente do neto. Por isso, logo cedo, pegou Felipe e se dirigiu para lá.

Parou o carro na portaria de um condomínio luxuoso na região de Alphaville e, enquanto aguardava a liberação para entrar, tentava reprimir a sensação estranha de estar traindo sua mãe. Já fazia mais de um mês que o velho havia saído de casa e a mãe ainda não havia se conformado.

Independentemente disso, o pai sempre fora um grande amigo, pensou Daniel. E ele não estava disposto a abdicar dessa amizade.

Quando Daniel tocou a campainha, uma senhora de expressão suave e cabelos castanho-claros curtos abriu a porta quase que de imediato, pois já o aguardava ansiosamente.

  Olá! Eu sou o Daniel, filho do Pedro. Ele está?

Marisa o reconheceria mesmo que o porteiro não tivesse anunciado sua chegada, afinal havia inúmeras fotos de Daniel na estante de Pedro. Ela sorriu afavelmente.

  Mas que surpresa agradável! Eu sou Marisa – e estendeu a mão para cumprimentá-lo. – Prazer em conhecer.

Daniel não pôde evitar uma ligeira hesitação antes de estender a mão, mas torceu para que Marisa não tivesse percebido.

  O prazer é todo meu. – E apressou-se em apresentar-lhe Felipe, que estava ao seu lado. – Este aqui é meu filho.

Ela beijou delicadamente a face do menino. Depois, convidou-os:

  Por favor, entrem. Vou avisar ao Pedro que vocês estão aqui.

Daniel e Felipe se dirigiram para a sala de estar em estilo simples, porém com alguns toques de requinte que sugeria a intromissão direta de alguém de muito bom gosto. E Daniel podia apostar que esse alguém era seu pai.

Marisa saiu apressada por uma porta lateral e logo depois retornou com Pedro.

  Filho, que surpresa maravilhosa! Por que não me avisou por telefone que viriam, assim poderíamos ter preparado um almoço especial?

  Que é isso, pai? Sem formalidades comigo, por favor.

  E você, Felipe, como está?! – quis saber Pedro, após catar o menino em seu colo. – Tudo jóia?

  Jóia, vovô.

  Então vamos sentar – sugeriu Marisa com um sorriso cordial, ao perceber que todos ainda se encontravam de pé.

Daniel se aconchegou numa poltrona e tentou relaxar. Sabia que não poderia responsabilizar Marisa pela separação dos pais, por um casamento que já tinha sucumbido ao fracasso muito antes de ela aparecer. Ainda assim, foi difícil para ele puxar uma conversa diretamente com ela, livrar-se da sensação terrível de que estava fazendo algo errado, de que estava traindo a mãe.

Ultrapassada a primeira barreira, porém, a conversa fluiu animadamente. E os três conversaram sobre tudo: trabalho, política, faculdade, esportes, etc. Mas foi somente após o almoço digno de muitos elogios que Daniel sentiu-se de fato relaxado.

À tarde, Pedro o convidou para conversarem no escritório, enquanto Marisa esforçava-se para manter Felipe ocupado.

  Conte-me, filho – pediu Pedro, depois de se acomodar atrás da escrivaninha de mogno e Daniel em uma cadeira à sua frente –, como estão as coisas.

         Daniel sabia o que o pai queria que ele contasse.

  O que posso lhe dizer?... É tudo tão confuso. A Dri está casada com um mau-caráter e morre de medo de separar-se dele. Não sei mais o que fazer.

  Como assim?

  Ele faz ameaças, diz que se ela se separar dele nunca mais verá a filha.

  Normalmente a lei cede à mãe o direito de ficar com os filhos. – Enquanto falava, Pedro foi até um bar embutido no canto da sala e serviu dois copos com uísque. – Qualquer um sabe disso.

  Ela teme que ele fuja com a menina.

  Sinceramente – comentou Pedro, depois de entregar um copo a Daniel e voltar a sentar atrás da mesa –, eu duvido muito disso. Afinal esse rapaz deve ter um emprego fixo e não vai abandonar tudo e sumir no mapa carregando uma filha a tiracolo.

  Será?

  Filho, desculpe a franqueza, mas será que isso não é só um pretexto da Adriana? De repente ela ainda gosta do marido e não deseja separar-se de verdade. Já pensou nisso?

Não, ele não queria pensar. Mas de fato aquela hipótese já passara por sua cabeça... várias e várias vezes.

  Já.

  Sinto muito, meu filho.

Daniel tomou um demorado gole de uísque e deixou o líquido aliviar a pressão na sua garganta, antes de falar:

  Vou lhe contar uma coisa, pai, mas não quero que fale a ninguém, nem mesmo a Marisa.

  Não se preocupe. Não contarei a ninguém.

  O marido da Adriana é um homem muito violento e ele... ele bate nela.

  E por que ela não o denuncia à polícia?

  O senhor sabe muito bem como funcionam as leis em nosso país. Se ela fizesse isso, a situação não mudaria em nada. Ao contrário, poderia até piorar. Pois no máximo ele pegaria alguns dias de detenção. E quando ele voltasse para casa, seria ainda mais perigoso para ela.

  De qualquer forma, ela terá de denunciá-lo. Não pode deixá-lo impune.

  Sei disso – respondeu Daniel, chateado.

Houve um longo momento de silêncio, enquanto eles bebericavam o uísque. Mas Pedro estava pensando sobre o assunto, e se obrigou a dizer, embora já houvesse dito isso antes:

  Filho, você... – fez uma pausa – você tem que tirar essa moça da cabeça. Temo que saía muito machucado desta história toda. E eu não gostaria de vê-lo sofrer.

Daniel sabia que era loucura acreditar que aquela relação pudesse acabar bem. Seu coração, porém, era teimoso demais. E ele definitivamente não era esperto.

  Não tenho como voltar atrás. Além disso, ela está precisando de mim e eu não posso abandoná-la neste momento.

Mais algum momento de silêncio.

  Espero que saiba o que está fazendo...

  Eu também... – murmurou Daniel, após massagear a nuca para atenuar a tensão. – Eu também. – Em seguida, tentou mudar de assunto. – E como estão as coisas por aqui? Como está sua vida com a Marisa?

Pedro tomou mais um gole do líquido em seu copo.

  A Marisa é uma mulher maravilhosa. Preocupa-se com tudo e com todos. Nunca vi coisa igual.

  E os filhos dela – quis saber ainda Daniel –, aceitaram normalmente?

  Para ser franco, no começo, percebi um pouco de relutância por parte deles, principalmente por parte do filho mais velho. Mas compreendo que tenha sido difícil para eles, afinal, desde que o marido faleceu, há mais de dez anos atrás, Marisa só vivia em função dos filhos. Graças a Deus, agora está tudo bem. Ambos são casados e desejam o melhor para a mãe.

Daniel fitou-o nos olhos.

  Apesar de sentir muito pela mamãe, estou muito feliz pelo senhor, pai.

  Sei que as coisas são confusas para você, Dani – lamentou-se Pedro. – No entanto gostaria que entendesse que eu e sua mãe já não éramos mais felizes há muito tempo.

  Eu sei, pai. Entendo sua situação. Além disso, quem sou eu para julgar? Também me separei da Célia porque não agüentava aquele gênio de cão dela.

Pedro deu uma boa gargalhada.

  Sua ex-mulher parece mais filha da Wilma do que você!

Daniel também riu.

  O pior é que é verdade. Nunca vi duas pessoas tão parecidas. Acho que se fossem verdadeiramente filha e mãe não seriam tão parecidas.

Marisa deu dois toques na porta nesse instante.

  Desculpe interromper a conversa – disse, assim que abriu a porta –, mas preparei uma sobremesa que vocês vão adorar. – E olhou diretamente para Daniel. Pedro havia comentado com ela que tanto ele quanto o filho adoravam musse. – Musse de chocolate!

Humm... Isso era tudo o que precisava naquele momento, concluiu Daniel consigo mesmo.

 

No início da noite, quando Daniel já estava quase de saída, chegou o filho mais velho de Marisa, Joel. O rapaz trouxe, além da esposa Noeli, o filho, de mais ou menos seis anos de idade, e o primo Luiz.

Eles foram apresentados uns aos outros e depois que se acomodaram na sala, Luiz comentou, divertido:

  Mundo pequeno é este, não é professor? Quem diria que eu ia encontrá-lo aqui, na casa da minha tia.

  Realmente – respondeu Daniel, também divertido com a coincidência. – Quem diria.

  Ele é seu professor? – perguntou Noeli com evidente curiosidade. – Mas é tão jovem.

  Professor de História das Artes – explicou Luiz. – E é um professor e tanto. Sem querer puxar o saco, claro! A Olívia, por exemplo, adora as aulas dele. Bem, mas pra dizer a verdade, não é só ela, não. Todas as alunas adoram as aulas dele – e abriu um sorriso malicioso e engraçado.

Daniel sacudiu a cabeça levemente, e conseguiu manter o rosto sério.

  Não é nada disso. Alguns alunos verdadeiramente gostam das aulas, entretanto há sempre aqueles que relutam um pouquinho porque acham as aulas muito teóricas.

  Você disse bem, professor – continuou Luiz. – Alguns alunos. Mas as alunas... essas não reclamam nunca.

  Assim você o deixa sem graça – disse Noeli.

  Tudo bem – tornou Daniel. – Já estou me acostumando com isso. O Luiz é assim também na aula. – Mas tratou de despedir-se antes que seu aluno conseguisse deixá-lo roxo de vergonha.

Luiz, porém, fez questão de acompanhá-lo até o carro.

  Professor, desculpe a curiosidade... Como está a sua prima? Ela está bem?

  Está sim – respondeu Daniel, tentando abreviar aquela conversa e sair dali o mais breve possível.

  Ela tem conversado com a Olívia e andou se abrindo um pouco mais. E, pelo que ela disse à minha noiva, vai se separar do marido. O senhor está sabendo?

  Estou. Mas não precisa me chamar de senhor, por favor.

  Ah, sim, claro... Voltando à sua prima, ela contou a Olívia que o marido está ameaçando tirar-lhe a filha, caso ela insista com a separação.

Daniel acionou o alarme do carro para destravar as portas e Felipe entrar.

  Sei disso.

Luiz pôs a mão no ombro de Daniel e, num tom de voz excepcionalmente ajuizado, falou:

  Professor, quero apenas que saiba que, apesar deste meu jeito brincalhão, eu entendo quando um problema é serio. E o da sua prima é muito sério. Por isso, gostaria de ratificar que eu e a Olívia fazemos questão de ajudar. Eu sei que eu não posso fazer muita coisa, mas a Olívia pode.

Surpreso, Daniel lançou um olhar para Luiz e depois segurou firme a mão que ele agora lhe estendia.

  Obrigado, Luiz. E agradeça também a Olívia.

 

No caminho para casa, Daniel não parou de pensar no que o pai lhe dissera. Aquilo ficava ecoando e se repetindo em sua cabeça como se fosse uma fita engasgada no gravador:

  ... Será que isso não é só um pretexto da Adriana? De repente ela ainda gosta do marido e não deseja separar-se de verdade. Já pensou nisso?






[Continua no próximo capítulo...]



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