Capítulo

Onze

 

 

 

 

 

 

 

Depois do que uma colega de faculdade lhe dissera sobre a capoeira, Adriana ficou curiosa por conhecer aquela modalidade de luta. Por isso, naquele sábado, decidiu ir logo cedo até uma academia não muito longe de sua casa para assistir uma aula.

Chegando lá foi conduzida a uma sala grande com um círculo ao meio, onde já se encontravam vários jovens de camiseta e calça brancas, sentados à borda. Adriana sentou-se num canto da sala com mais duas moças e um rapaz, que também estavam ali para assistir à aula, e logo alguns daqueles jovens de branco começaram a tocar uma música de ritmo gostoso, descontraído, contagiante. Os instrumentos musicais utilizados eram diferentes e nem um pouco familiares: berimbau, atabaque, pandeiro, agogô, reco-reco, mas emitiam um som bem conhecido que lembrava o candomblé, a rica cultura afro-brasileira. Em seguida, dois jovens rapazes entraram no meio do círculo e começaram a movimentar o corpo todo, acompanhando o toque do berimbau, da música.

Mas afinal aquilo era uma dança, uma luta ou um jogo?, perguntou-se Adriana.

Quando os dois jovens saíram do meio do círculo, entraram uma garota e um rapaz alto. A garota era muito menor do que o seu adversário e parecia muito frágil, mesmo assim ela parecia não temê-lo. Os movimentos dela eram muito mais suaves e graciosos do que os do seu oponente, porém não menos ousados e perigosos.

Adriana ficou impressionada com aquilo tudo e se inspirou na garota à sua frente. Se ela pode fazer isso, eu também posso.

Procurou semelhanças entre a capoeira e o flamenco, tipo de dança que aprendera com os familiares do pai, em Santos, e encontrou muitas. Ambas exigem atenção, disciplina, agilidade e têm uma variedade de movimentos executados com graça, malícia e muitos rituais que envolvem corpo, mente e espiritualidade, refletiu.

No final da aula, um homem moreno de olhos negros brilhantes e aproximadamente trinta e poucos anos se aproximou.

  E aí, gostaram da aula? – perguntou a Adriana e aos outros três jovens que estavam sentados ao lado dela. – Sou o mestre Jânio e posso tirar quaisquer dúvidas que tenham a respeito.

Adriana não tinha muito a perguntar. Queria iniciar logo as aulas, aprender na prática àquela dança empolgante na qual poderia se defender, lutar. Ainda assim, ouviu com prazer as perguntas dos demais companheiros e as respostas do mestre Jânio.

  A capoeira – disse mestre Jânio em certo momento – é muito mais que uma arte marcial, é a luta pela liberdade.

Quando saiu dali, alguns minutos depois, Adriana já havia realizado a matrícula para começar na semana seguinte. E quando chegou a sua casa, ainda entusiasmada por tudo o que vira, aproveitou a ausência de Roberto para conhecer um pouco mais sobre o assunto.

Pesquisou na internet, e, numa fração de segundos, viu surgir diante de seus olhos uma lista imensa de sites. Entrou em alguns deles, leu com atenção alguns textos e até baixou algumas músicas com toques de berimbau.

Depois tentou treinar um pouco. A capoeira é a luta pela liberdade.

Começou devagar, procurando lembrar os passos, o gingado, deslizando os pés sobre o chão. Os movimentos eram realizados lenta e hesitantemente, porém fluía com graça, com estilo. Nunca mais vou deixar que um homem bata em mim. Nunca mais.

Imaginou Roberto à sua frente, tentando agredi-la, e, rapidamente, girando o próprio corpo como um parafuso, levantou a perna acima da cabeça e deferiu-lhe um golpe. Qual é mesmo o nome desse golpe?, ela se perguntou. Armada.  Acho que é isso. E acertou-o bem no nariz. Caiu logo em seguida na risada ao imaginar os olhos surpresos do marido, perante sua agilidade e ousadia. Lógico que tenho um longo caminho a percorrer antes de realmente conseguir acertá-lo no nariz, disse a si mesma, mas este é somente o início de tudo. O início do fim.

 

Naquele sábado, Roberto chegou mais de meia-noite, e parecia esquisito. Adriana observou-o em silêncio e percebeu que ele estava embriagado. Aquela não era a primeira vez que aquilo acontecia e provavelmente também não seria a última. Todos os sábados Roberto alegava ir trabalhar e chegava cada vez mais tarde da noite.

Sem falar nada, ele se dirigiu ao banheiro para tomar banho e quando saiu, Adriana fingiu dormir.

Nesta noite, Roberto não a incomodou, pois se sentia esgotado. Tinha ficado quase a tarde inteira com os amigos num boteco e depois foi a um motel com uma garota de programa que ele, naquele momento, mal conseguia lembrar o nome, embora lembrasse que já estivera com ela em outras vezes. Lembrava também que tinha tido horas muito agradáveis e que tinha valido a pena pagar caro para ficar com a loura peituda, afinal ela sempre realizava todos os seus desejos, sem reclamar.

 

Nos sábados seguintes, Adriana continuou aproveitando as ausências de Roberto para se dedicar à capoeira. E além da aula na academia, treinava também em casa; até a exaustão.

 

Para poder treinar sem que seus opressores percebessem, os negros disfarçaram sua arte marcial em dança, em jogo, em arte. Por isso a capoeira tornou-se uma luta de muito gingado e graciosidade, apesar da precisão dos ataques e dos golpes que podem até ser mortais.

 

...

“Era o porvir - em frente do passado,
A liberdade - em frente à escravidão,
Era a luta das águias - e do abutre,
A revolta do pulso - contra os ferros,
O pugilato da razão - contra os erros,
O duelo da treva - e do clarão!”

...

(Castro Alves)

 

  Minhas únicas armas serão minhas pernas e meus braços. Nada mais – disse Adriana a si mesma, enquanto tentava se concentrar nos golpes que aprendera.

Mas perdera a concentração e riu até doer a barriga ao perceber Letícia lhe imitando.

  Minha gatinha linda, o que está fazendo?

  Estou aprendendo a lutar também, mamãe – respondeu a menina, com seus olhinhos brilhando de admiração. – Quero ser como a senhora, quando crescer.

Ainda sorrindo, Adriana levantou a filha acima de sua cabeça e girou com ela no alto, como se fosse um aviãozinho.

  Ah, minha querida, eu não sei o que seria de mim se não fosse por você.

 

Dias depois...

 

Ela estava tão entusiasmada com as aulas de capoeira que, naquela segunda-feira, resolveu ficar até um pouquinho mais tarde na faculdade para comentar com Daniel. Mas ele estava bastante estranho e não pareceu compartilhar nem um pouquinho de seu entusiasmo.

  O que foi, Dani?... Algum problema?

Ele estava simplesmente frustrado. Há semanas tentava conversar com Adriana mas ela voltara a sair mais cedo da faculdade e a evitá-lo.

  Não – respondeu secamente, enquanto caminhava com passos rápidos. – Nenhum.

  Então devo acreditar que esse mau humor todo é porque você não gosta de capoeira? – perguntou ela, divertida, enquanto tentava acompanhá-lo.

  Não tenho nada contra a capoeira ou qualquer outro tipo de arte marcial.

  O que foi então?

Daniel parou de repente e segurou-a pelo braço.

  Eu não entendo você, Dri.

  Como assim?

Ele esperou que uma turma de alunos passasse por eles para perguntar baixinho:

  Por que está me evitando?

  Não se trata disso, Dani. Você sabe muito bem que eu não posso ficar até mais tarde aqui.

Ele tornou a andar, mas em seguida parou novamente.

  Também não consigo entender o que você está pretendendo com isso... Espera primeiro se tornar uma mestra em capoeira para então pedir o divórcio a seu marido? Espera que ele fique com medinho de você e aí lhe dê o divórcio?

Adriana achava que a ironia não combinava com Daniel. Mas ele estava irônico, muito irônico.

  Não. Claro que não – respondeu, surpresa.

  Então me explica – exigiu ele. – Explica porque eu não estou entendendo nada.

  Eu é que não estou entendo por que você está tão nervoso – declarou Adriana com o rosto franzido.

Daniel passou a mão pelo cabelo. De fato a palavra nervoso se encaixava melhor com o que estava sentindo naquele momento, afinal não conseguia entender por que Adriana continuava ao lado do marido. Será que ela ainda gostava dele? Será que seu pai tinha razão?

  Eu não consigo compreender por que continua ao lado daquele cafajeste, Dri. E às vezes chego a pensar que você não quer realmente se separar dele, que na verdade você...

  Por favor, Dani – pediu ela com uma expressão de tristeza –, não diga isso. Compreenda que a minha situação é muito difícil, que o que mais desejo neste momento é me separar do Beto.

Ele fitou-a nos olhos.

  Pois não é o que parece.

  Você não entende, Dani? Eu...

  Não, não entendo – disse ele antes que ela pudesse se explicar. – E acho que se você realmente desejasse se separar do seu marido já o teria feito. Sabe muito bem que eu posso protegê-la. Posso contratar quantos seguranças forem necessários para garantir a sua proteção e a da Letícia.

  E eu vou viver a vida inteira sendo vigiada por alguém?

  Hã?! – Daniel arqueou as sobrancelhas. Mal podia acreditar no que tinha acabado de ouvir. – Você sabe muito bem que não é nada disso, que eu jamais me daria ao ridículo de contratar alguém simplesmente para vigiá-la. Minha intenção foi outra. Não sou o Roberto!

  Desculpe...

Ela não queria discutir. Queria apenas fazê-lo compreender. Mas, pelo que podia perceber, Daniel não parecia muito disposto a isso.

  Quero apenas que entenda que eu não poderia viver assim... com seguranças ao meu lado o tempo inteiro. E muito menos a minha filha, Dani. Ela... ela é apenas uma criança e precisa levar uma vida normal de uma criança. Já pensou como seria difícil para ela?... Como seria frustrante para ela? Não. Eu não posso conceber isso. Simplesmente não posso conceber.

Não pode conceber?! Por Deus, o que ela está falando?, perguntou-se Daniel, mas ordenou a si mesmo para respirar fundo e manter a calma.

  Acho que esse é um problema que você vai ter de enfrentar. Não vejo outra forma de manter a você e sua filha protegidas.

  Mas há outra forma.

Ele levantou as sobrancelhas novamente e tornou-se um pouco mais irônico do que desejava.

  Ora, ora. Então por que não me conta logo qual é essa outra forma miraculosa?

  Deixa pra lá, Dani – respondeu ela, magoada. – Acho que você não vai entender.

Um aluno cumprimentou Daniel. Mas ele nem ouviu. Estava tão irritado que mal conseguia ver qualquer outra coisa à sua frente.

  E por que não tenta me fazer entender? Não sou tão burro assim.

  Eu não disse isso, Dani. Por que está agindo assim?

  Vamos, Dri, tente me fazer entender.

Ela gostaria muito de se explicar, mas não tinha tempo. Precisava se apressar para não perder o ônibus.

  Tenho de ir embora. Desculpe.

Ele tornou a pegá-la pelo braço.

  Só mais uma pergunta. Quando pretende separar-se do seu marido? – Se é que pretende, pensou Daniel.

Adriana desviou os olhos para um grupinho de alunas que estava olhando fixamente para eles e cochichando baixinho. Ela poderia até imaginar o que estavam falando.

  Solte o meu braço, Dani, por favor.

Ele a soltou.

  Não vai responder à minha pergunta?

Ela soltou um suspiro.

  Quando estiver preparada para enfrentá-lo.

  E quando acha que vai estar preparada para isso? Daqui a um ano ou dois?

  Muito em breve – afirmou Adriana com voz suave, e ainda tentando evitar uma discussão. A última coisa que desejava era discutir com Daniel. – Agora preciso ir. Não posso me atrasar.

Mas quando ela tentou se afastar, Daniel segurou-a novamente pelo braço.

  Ainda não acabamos.

  Eu sei que não. Mas, eu não posso ficar por mais tempo, Dani. Por favor, compreenda.

  Vamos então marcar um novo encontro.

  É muito arriscado. Eu não posso.

  Toda terça-feira eu só tenho as duas primeiras aulas. Por isso podemos fazer como da última vez, posso esperá-la no estacionamento, na hora do intervalo...

  Já lhe disse que não posso.

  Não pode ou não quer? – quis saber ele.

Adriana começou a se irritar.

  Que droga, Dani, solte o meu braço. Não vê que as pessoas estão olhando?

  Que se danem! – disse ele.

Ela puxou o braço com força.

  Mas o que diabos está acontecendo com você? Jamais foi irônico e muito menos grosseiro. Então, por que está se comportando assim?... Eu não posso acreditar que tenha mudado tanto.

Embora de fato ele houvesse mudado bastante, poderia garantir a Adriana que não havia se tornado nem irônico e nem grosseiro. Se estava agindo assim, era em conseqüência de uma frustração que mal podia controlar. Mas ele não disse nada, apenas ficou observando quando ela correu em disparada em direção ao portão.

Ela ainda olhou para trás e lançou-lhe um último olhar. Logo em seguida, desapareceu. Precisava correr senão ia perder o ônibus.

Daniel ainda permaneceu por algum momento ali, parado no imenso pátio quase vazio. Mas, quando finalmente chegou ao estacionamento, concluiu que seu pai estava coberto de razão. Apesar de tudo, Adriana ainda gostava do marido e não desejava separar-se dele, caso contrário já o teria feito.

Ligou o carro e deixou que o mau humor lhe fizesse companhia até em casa. E, ao entrar em seu apartamento, seguiu direto para o banheiro, a fim de tomar um longo banho de água fria e refrescar a cabeça, abafar os pensamentos que insistiam em fixar-se em Adriana.

Precisava esquecê-la. Por que diabos ela retornou à sua vida?

Mas como lhe diria a sua mãe, ninguém é inesquecível. Portanto, ele iria conseguir esquecê-la.

Além disso, ele sabia, soubera desde o início, que era loucura acreditar que aquele romance poderia dar certo. Por que não ouvira a voz da razão?






[Continua no próximo capítulo...]



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