A
PALAVRA ESCRITA NO MURO Era quase um garrancho, mas o menino a leu, letra por
letra. E disse: -
Boa noite. A palavra respondeu: -
Boa noite. Diante da delicadeza da resposta, o menino perguntou: -
Quem é você? E ela, rindo com todas as letras do seu corpo,
respondeu: -
Sou uma palavra. O menino pensou que ela estivesse presa, já que não
podia sair do lugar, e perguntou-lhe: -
Mas quem pôs você de castigo aí no muro? A palavra retrucou: -
Eu não estou de castigo. Estou livre. Todas as palavras que você vê
nos muros da cidade são livres. Nenhuma delas está em cativeiro. -
Mas você está presa. A palavra tornou a desmentir: -
Eu não estou presa. Num muro uma palavra é livre como um pássaro.
Menino, vou dizer-lhe uma coisa para você guardar a vida inteira.
Nenhuma palavra vive em cativeiro. O menino lembrou-se, então, de que em sua casa havia
um grande dicionário que tinha nome de gente. E ponderou: -
Mas, num dicionário, as palavras estão presas. A palavra (seria uma senhora ou uma senhorita?) riu,
exibindo os seus belos e brancos dentes feitos de sílabas, e
explicou: -
Mesmo num dicionário, as palavras são livres. Um dicionário não é
uma prisão. É uma praça onde a gente que se reúne. -
Pra quê? – interrogou o menino. -
Para servir aos homens. Todos nós temos uma serventia. Estamos a serviço
da vida, do amor. Uma palavra é como um sol. Esquenta as pessoas.
Quem sabe palavra não sente frio! -
Mas quem foi que pôs você aí no muro? – quis saber o menino. -
Foi um homem. Foi a mão de um homem. -
Foi de dia ou foi de noite? (O menino era curioso, queria saber tudo.) A palavra não precisou se lembrar da hora em que fora
colocada no muro como se fosse uma criança que a mãe põe no colo.
Sabia isso na ponta da língua, pois as palavras também têm uma língua,
como gente: -
Foi de noite. Estava muito escuro. Você sabe que a noite é nossa irmã?
Muitas vezes, em certos lugares, só de noite é que a gente pode
andar. -
Mas as palavras andam? -
Menino, as palavras andam sempre. São como os ciganos. Não podem ficar
paradas em lugar nenhum, nem nos livros nem na boca dos homens. Já
lhe disse que somos passarinhos. Nascemos para voar. -
Então, como foi que você nasceu? -
Eu não nasci. Eu estava voando. Então pousei na mão de um homem como
se fosse um passarinho. Ele não precisou de gaiola para me agarrar.
Era um homem que tinha vindo de um comício, o povo tinha
gritado muito. Ele estava precisando de uma palavra para dizer o que
queria, tudo aquilo que estava dentro do seu coração e não podia se
manifestar porque eu ainda não tinha aparecido. Então eu pousei na mão
dele. Esta rua estava escura, quase ninguém passava. O homem olhou para
um lado e para o outro, viu que nenhum soldado estava passando, não
havia polícia por perto, e pôs-me aqui. Dia e noite as pessoas passam
e, mesmo em silêncio, conversam comigo, e levam-me em suas lembranças
e nos seus corações. É um pouco difícil de explicar, mas eu sou
levada e, no entanto, fico aqui, sem sair do lugar. Você entende? -
E como é seu nome, palavra-passarinho? – quis saber o menino. -
MEU NOME É LIBERDADE, MENINO. - A senhora tem um nome muito bonito! -
Não me chame de senhora, chame-me de você. Eu sou você. Ledo Ivo, O menino da noite, São Paulo,
Nacional, 1984
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