A CANTIGA
A festa era na igreja do bairro, uma construção simplória se comparada as grandes catedrais católicas que perduravam ao longo dos séculos na cidade rodeada de edifícios modernos e espalhafatosos. Naquela noite de inverno a rua, não muito grande e nem muito larga, estava vestida de vários semblantes, de vários olhares, de vários flertes que por vezes raptavam um ou outro sorriso meio a considerável aglomeração de pessoas que ali se encontravam.
Do portão para dentro as crianças se divertiam com a pescaria, com os dados, com as roletas, com o corre-corre habitual de seus anseios e entre um e outro vacilo eram surpreendidas com um delicioso e alvoroçado: BINGO! Que saltava repentino da garganta de alguma senhora pé-quente! Mas era do lado de fora que o cheiro argucioso do vinho quente se misturava com o comprometimento casual das bocas buliçosas e inquietas. Era do lado de fora que ela sem grandes desejos se encontrava apoiada no cigarro que trazia encaixado entre os dedos. Nos lábios se pintavam alguns pingos de sorrir, a tez amorenada em alguns momentos se avermelhava com a timidez inocente que a cercava quando algum rapaz lhe dirigia o interesse.
Na semana anterior tinha me revelado sua pretensão pelo amor, disse-me quase que poeticamente que gostaria de sentir seu peito estremecer por um homem. Falou-me de seus dias de solidão com um olhar inocente e distante deixando assim transparecer toda a ingenuidade de seus quatorze anos. Disse-me que não carregava grandes anseios de riqueza, mas que gostaria de usufruir todo o néctar do amor. E desviando a conversa em olhar abstrato fechou os olhos e acompanhou em murmúrios a canção que tocava no rádio, provavelmente naquele instante tenha sentido seu desejo flutuando na canção que falava também da vontade de amar...
De súbito olhou fixamente o espaço que separava as pessoas, seu coração quase chegou a esmurrar a fronte, suas mãos imediatamente gelaram, sentiu todo aquele rodopio de emoções assobiar em seu ventre. Era ele. O amor se revelara no espaço preenchido que separava as pessoas. O rapaz forte e de longos cabelos negros se revelava agora como o seu grande amor. Procurou em seus pensamentos alguma lembrança distante de tê-lo visto em alguma ocasião corriqueira de seus dias, mas não encontrou sequer vestígio de sua existência. Não o conhecia. Realmente jamais havia refletido em seus olhos tamanha beleza. Quando tomou consciência dos fatos percebeu que entrelaçada aos braços do rapaz de ar descomprometido havia uma moça. Quis imediatamente camuflar seus sentimentos e pediu-me para subirmos a rua que agora se apresentava ao seu olhar como vazia e despida de qualquer semblante. Eu a questionei por umas duas ou três vezes antes de atender ao seu pedido, não sabia  ao certo que força a submetia a se distanciar tão repentinamente de todos, no entanto sua voz não me respondia claramente, apesar de seus lábios tentarem descrever todo o ocorrido.
Sentamo-nos no final da rua e então consegui entender por meias palavras o motivo de seu imprevisto distanciamento:

"- Você está apaixonada!"

Foi o que disse soltando um leve sorriso no ar. Ela não retribuiu, somente lamentou a presença da moça ao lado do rapaz.
Não tardou para o seu olhar novamente fixar aquele belo rosto,  mas desta vez ela não quis mudar de lugar, agarrou minhas mãos e pediu-me que fossemos embora.
E assim o fizemos.
Naquela noite invernal, as brumas lhe embarcavam nos vácuos imperceptíveis de sua pele e ela estirada no colchão afetuoso de seu leito deitou por sobre as colchas de seu amor. Sonhou uma nova trombada do destino, mas agora em uma bela tarde de verão para que em devaneios o sol forrasse todo o seu corpo com o calor desestruturado de um beijo. Sonhou aquele olhar de garoto descomprometido contemplando em volúpias seu belo par de olhos castanhos. Sonhou sua carne sendo invadida pelas faíscas nebulosas da paixão e sentindo toda a fantasia que cobria seu corpo jogou aquela moça intrusa para longe de seu colchão. Naquela noite de brumas penetrantes, ela estirada sonhou, sonhou e sonhou...
Mas a porta da igreja foi fechada, o vinho foi perdido na tragada, o amor enlouqueceu e bateu à porta errada. E a cantiga? A cantiga anda por aí calada...
Autora: Luana Cristina
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