Rosa Maria Egipcíaca da Vera Cruz é certamente
a mulher negra africana do século XVIII, tanto em África como
na diáspora afro-americana e no Brasil, sobre quem se dispõe
mais detalhes documentais sobre sua vida, sonhos, escritos e paixão.
É a primeira afro-brasileira a ter escrito um livro, do qual restaram
algumas páginas manuscritas. Dos seus 46 anos de fantástica
existência, viveu 20 anos no Rio de Janeiro, primeiro de 1725 a 1733,
quando foi vendida para as Minas Gerais, lá permanecendo por 18 anos
seguidos, retornando à cidade de São Sebastião do Rio
de Janeiro em 1751 e aqui vivendo até 1763, quando é enviada
presa para os Cárceres do Santo Ofício da Inquisição
de Lisboa.
Foi considerada na época como "a maior santa do céu",
a quem brancos, mulatos e negros, inclusive toda a família de seu ex-senhor
e respeitáveis sacerdotes, adoravam de joelhos, beijando-lhe os pés,
venerando suas relíquias, intitulando-a "a flor do Rio de Janeiro".
Fundou o Recolhimento de Nossa Senhora do Parto, ocupado predominantemente
por negras e mestiças, cuja capela, reformada, permanece até
hoje no Centro desta cidade na rua da Assembléia. Melhor que ninguém,
Rosa tipifica a riqueza e força do sincretismo religioso afro-católico-brasileiro.
Todos os detalhes de sua vida encontram-se em três processos conservados
na Torre do Tombo em Lisboa, divulgados em meu livro Rosa Egipcíaca:
Uma Santa Africana no Brasil (Editora Bertrand, RJ, 1993, 750 páginas).
Rosa era uma negrinha nascida na Costa de Mina, de nação Courana,
também conhecida como Coura, que desembarcou de um navio negreiro no
Rio de Janeiro, em 1725: tinha 6 anos de idade. Quando aqui chegou, o comércio
de escravos fazia-se nas imediações da Rua Direita, em pleno
centro comercial do Rio de Janeiro, e somente no governo do Marquês
de Lavradio, por volta de 1760, que se destinará o Valongo como mercado
negreiro. Foi comprada por um tal senhor José de Souza Azevedo, que
a mandou batizar na Igreja da Candelária, que no "tempo do Onça"
não passava de uma pequenina igreja, sede da Freguesia da Várzea,
humílima em comparação à grandiosidade do templo
neo-clássico que hoje conhecemos. Era certamente a igreja carioca onde
mais escravos eram batizados: entre 1725-1726, dos 444 batismos aí
realizados, 62% eram escravos, permitindo-nos levantar a hipótese de
que a familiaridade com a patrona desta igreja talvez explique a gênese
da associação entre Nossa Senhora das Candeias com o culto à
Rainha do Mar, Iemanjá.
Não é difícil reconstruir sua vida de menininha escrava
urbana, residente na freguesia da Candelária: realizando pequenos serviços
domésticos compatíveis com sua pequenez, cuidando de crianças,
carregando objetos, dando recados, ajudando na limpeza da casa ou na cozinha.
Provavelmente nesta primeira fase de adaptação à sua
recente condição de escrava, com novo nome, aprendendo língua
estranha e costumes completamente diferentes dos de sua tribo natal, é
que esta pretinha de 6 anos foi informada, por outros negros seus conterrâneos,
de que era nativa da nação courana, procedente do Porto de Judá,
identificação que guardará para toda a vida. Talvez possuísse
algumas marcas tribais ou cicatrizes decorativas em seu rosto e barriga. Teria
sofrido mutilação clitoriana, prática comum em muitas
tribos da Costa da Mina?
Dizem os manuscritos da Torre do Tombo que o senhor de Rosa, "após
desonestá-la e tratar torpemente com ela", vendeu-a para as Minas
Gerais: tinha 14 anos. Triste destino de tantas adolescentes da cor de ébano,
presas fáceis da volúpia dos machos de todas as cores: segundo
o viajante alemão Carl Schlichthort, em seu livro O Rio de Janeiro
como é, "doze anos é a idade em flor das africanas. Nelas
há de quando em quando um encanto tão grande, que a gente esquece
a cor... Dos olhos irradia um fogo tão peculiar e o seio arfa em tão
ansioso desejo, que é difícil resistir a tais seduções..."
Após oito anos no Rio de Janeiro, novamente Rosa sofre outra separação
de seus conhecidos, a ruptura de uma rotina de sua vida de adolescente, a
angústia e temor face ao desconhecido. Por mais fome que tenha passado
desde que atingira a idade da razão, por mais pancadas, beliscões,
palmatoadas ou mesmo chicotadas que tenha recebido na casa de seus senhor,
certamente esta menina-moça africana criara laços afetivos e
de amizade com outros escravos, talvez com gente de sua mesma nação,
de modo que provavelmente deve ter derramado muitas lágrimas ao se
despedir do pequeno grupo de seus entes queridos.
A viagem para as Minas - por volta de 500 quilômetros percorridos a
pé, foi a segunda grande caminhada forçada na vida desta garota:
a primeira, há uns nove anos passados, de sua aldeia tribal até
o Porto de Judá, agora esta outra, atravessando densas e úmidas
florestas, ferindo seus pés descalços subindo a serra da Mantiqueira
em direção às Minas Gerais, uns 12 dias de viagem.
Na Capitania das Minas, Rosa foi comprada pela mãe de um de nossos
mais destacados literatos do período colonial, Frei José de
Santa Rita Durão, indo morar na freguesia do Inficcionado, a duas léguas
de Mariana. Como tantas escravas de norte a sul da Colônia, a negra
courana vai viver de vender seu corpo e favores sexuais aos concupiscentes
mineiros, que com ouro em pó compravam mercadorias e prazer das poucas
mulheres que percorriam as faisqueiras. Era a única escrava negra num
plantel de 77 escravos machos! Segundo mais tarde confessou, perante o Comissário
do Santo Ofício do Rio de Janeiro, passou 15 anos "a se desonestar
vivendo como meretriz." Este comércio venéreo deu à
escrava africana um traquejo social e um verniz civilizatório que muito
vai lhe auxiliar em seu futuro grandioso. Não é difícil
imaginar todos os constrangimentos, violências e doenças que
esta jovem africana deve ter sofrido, na condição de prostituta
escrava-negra, numa região abarrotada de aventureiros e carente de
filhas de Eva.
Ao completar 30 anos é atacada de estranha enfermidade: ficava com
o rosto inchado, sentia tumor no estômago, caindo ao chão desacordada.
Rosa decide então mudar de vida: por volta de 1748, vende seus parcos
bens - jóias e roupas amealhados com a venda de seu corpo, distribui
tudo aos pobres. Adota vida beata, freqüentando os ofícios divinos
e liturgias, que abundantes eram celebrados nas barrocas igreja mineiras,
muitas delas acabadas de construir nessa mesma década. Foi numa dessas
andanças pias que encontrou na Capela de São Bento, no mesmo
arraial do Inficcionado, o Padre Francisco Gonçalves Lopes realizando
fantásticos exorcismos em alguns energúmenos. Este sacerdote
português era então vigário da freguesia de São
Caetano, no mesmo distrito, e tão eficaz e useiro era em tirar o demônio
do corpo de brancos e pretos, que tinha por apelido Xota-Diabos.
Impressionada com a cerimônia do exorcismo, Rosa revelou ela própria
também estar possuída por sete demônios: diz ter sentido
como que um caldeirão de água quente que era despejado sobre
seu corpo, caindo incontinenti desacordada ao chão, partindo a cabeça
na pedra debaixo do altar de São Benedito. Não deixa de ser
emblemática a coincidência de seu primeiro transe religioso ter
acontecido exatamente ao pé de um santo negro, ex-escravo franciscano
da Sicília. Um segundo exorcismo realizado nessa mesma freguesia confirma
ao sacerdote que de fato a escrava do casal Durão era uma possessa
especial, pois quando vexada, fazia sermões edificantes, sempre preocupada
que todos mantivessem perfeita compostura nos templos, retirando à
força para a rua a quantos conversassem ou desrespeitassem o Santíssimo
Sacramento. Quando possuída por Satanás, falava grosso, caía
desacordada e dizia ter visões celestiais, vendo por diversas vezes
Nossa Senhora da Conceição, ouvindo diversos coros de anjos
que lhe ensinaram algumas orações, recebendo até a revelação
de uma fonte de água milagrosa ao pé de uma montanha, onde devia
ser construída uma igreja em honra de Senhora Santana. O culto aos
avós de Cristo substitui no imaginário místico de Rosa,
a perda e desconhecimento de seus próprios ancestrais, culto tão
forte na maior parte das tribos da Costa da África.
Após os exorcismos, Rosa dizia ser arrebatada por um misterioso vento:
"quando saía de casa para ir à igreja, logo na rua sentia
um vento tão forte que lhe impedia os passos e com grande violência
a fazia retroceder para trás e se bater com o corpo em uma cruz, sendo
em dias que não havia vento e só por virtude dos preceitos que
punha o exorcista é que podia resistir ao dito vento e entrar na igreja."
A presença deste misterioso vento realça mais uma vez a força
do sincretismo afro-judaico-cristão em seu imaginário, pois
na tradição do Velho Testamento, Javé é referido
como vento, sopro, ar, hálito; no Novo Testamento o Espírito
Santo aparece em forma de vento ("pneuma"), e mais recentemente
a aparição de Nossa Senhora de Lourdes à Santa Bernadete
ocorre em seguida a "um pé de vento"; na tradição
dos Orixás, nossa poderosa Iansã é identificada com ventos
e tempestades, fazendo parte do décor de inúmeros episódios
míticos afro-brasileiros a presença do vento. Na mesma época
em que Rosa sofria esses "acidentes", é denunciada à
Inquisição uma africana de nome Maria Canga, "que inventava
uma dança de batuque, no meio da qual entrava a sair-lhe da cabeça
uma coisa que se chama vento e entrava a adivinhar o que queria."
A fama de visionária de Rosa espalha-se por Mariana, Ouro Preto, São
João Del Rei, sempre acompanhada do padre Xota-Diabos e de seus exorcismos.
Nesta última cidade, na Igreja do Pilar - o mesmo templo onde Tancredo
Neves era irmão da Ordem Terceira - certa vez Rosa Courana interrompe
a pregação de um missionário capuchinho, gritando que
ela era o próprio satanás ali presente: é presa e enviada
para a sede do Bispado, Mariana, sendo flagelada no pelourinho com tal rigor
que por pouco não morreu, ficando, contudo, para o resto da vida, com
o lado direito do corpo semi-paralisado. Recuperada da tortura, procura o
recém-empossado bispo da Diocese, D. Frei Manoel da Cruz, que encarrega
uma junta de teólogos para investigar se a incorrigível energúmena
era mesmo possessa ou embusteira. Após uma série de provas -
inclusive testando a resistência da pobre vexada à chama de uma
vela, que por 5 minutos suportou acesa debaixo da língua! - concluem
os teólogos que tudo não passava de fingimento, passando então
o povo a chamá-la de feiticeira.
Para evitar novos problemas, Rosa foge para o Rio de Janeiro, sempre auxiliada
e protegida pelo seu inseparável padre Xota-Diabos, agora seu proprietário
legal, o qual nesta época passava dos 50 anos. O retorno à cidade
de sua segunda infância se dá em condições bem
melhores de quando subiu a serra num magote de cativos: em vez de simplesmente
Rosa, após uma visão celestial, agora apresentava-se como Rosa
Maria Egipcíaca da Vera Cruz.; montada num cavalo, dormindo em estalagens,
intercalava visões celestiais com tentações carnais tendo
o Xota-Diabos como o eleito de seu coração, relação
íntima insinuada e comentada pelos seus próprios contemporâneas.
Chegam na heróica e leal cidade do Rio de Janeiro em abril de 1751.
Depois de Salvador, capital da América Portuguesa, que na época
contava com 7 mil fogos e pouco mais de 40 mil habitantes, o Rio de Janeiro
era nossa segunda cidade em importância demográfica e econômica:
entre 1750-1760, possuía de 24 a 30 mil moradores, com 7723 fogos.
Cidade barroca com vivíssimo décor religioso: 23 igrejas distribuídas
em quatro paróquias: São José, Catedral (São Sebastião
no morro do Castelo), Santa Rita e Candelária; 70 oratórios,
26 confrarias, 380 frades, mais de uma centena de padres seculares. Nesta
mesma década, é iniciada ou concluída a construção
de diversas igrejas neste bispado, sendo eleita Senhora Santana a padroeira
principal do Rio de Janeiro.
Rosa instala-se inicialmente numas casas em frente à Igreja de Santa
Rita, tendo sua primeira visão na Igreja de Nossa Senhora da Lapa,
aparecendo-lhe o Menino Jesus vestido de azul celeste, tendo na cabeça
uma tiara pontifícia, "caindo no chão sem sentidos e como
morta". Por sugestão de uma beata das muitas que freqüentavam
assiduamente os templos cariocas, Rosa revela sua vida atribulada e dons espirituais
ao Provincial dos Franciscanos, Frei Agostinho de São José,
que passa a ser seu diretor espiritual, responsável pela edificação
do segundo andar do convento de Santo Antônio, ainda hoje dominando
do alto do morro do Largo da Carioca. A vida mística de Rosa impressiona
vivamente os franciscanos, que a vêem cumprir todos os exercícios
pios muito em voga nos séculos passados: jejuns prolongados, autoflagelação,
uso de silício, comunhão freqüente. Dão à
preta Rosa o maravilhoso título de " Flor do Rio de Janeiro".
Nesta época, convém esclarecer, malgrado a discriminação
legal e institucional contra a raça negra, sujeita à escravidão
e aos mais cruéis tormentos, procurava a Igreja Católica oferecer
modelos de santidade para este enorme contingente demográfico representado
pelos africanos e afro-descendentes que pululavam por toda a colônia.
É nestes meados do século XVIII que o papado estimula, por todas
as partes do mundo escravista, o culto a São Benedito, Santo Elesbão,
Santa Efigênia, Santo Antônio de Noto (ou Catigeró), todos
negros como Rosa, todos exemplos de humildade, resignação e
santidade. O monarca da época, D. João V, ele próprio,
com lágrimas nos olhos, escrevia ao clero americano insistindo que
não deixassem os cativos morrer sem o batismo, quando transportados
nos tumbeiros da África para o Brasil, e cuidassem da rápida
evangelização destes pobres descendentes do Prestes João.
A beata Rosa Maria Egipcíaca da Vera Cruz, portanto, ex-prostituta
como sua patrona Santa Maria Egipcíaca, vinha a calhar neste "aggiornamento"
da Igreja e poderia ser - certamente assim o desejavam os franciscanos - uma
futura santa. E ter uma santa em casa, ensinava a tradição,
redundava em romarias, polpudas doações para o convento, a garantia,
portanto, de manutenção das velas dos altares e demais gastos
dos atos litúrgicos e do próprio convento.
Tão logo chega ao Rio, Nossa Senhora obriga a negra courana, através
de uma visão celestial, a aprender a ler e escrever, tarefa que cumprirá
razoavelmente, sendo até agora a primeira africana de que se tem notícia
em nossa história a ter aprendido os segredos do abecedário.
Também por inspiração sobrenatural, Rosa Egipcíaca
decide fundar um Recolhimento para "mulheres do mundo" que pretendiam
como ela trocar o amor dos homens pelo do Divino esposo. Ajudada por polpuda
doação de um sacerdote de Minas Gerais, seu devoto e admirador
das virtudes da ex-escrava, contando com o beneplácito do bispo do
Rio de Janeiro, D. Antônio do Desterro, em 1754 é lançada
a primeira pedra do Recolhimento de Nossa Senhora do Parto, aproveitando a
existência de pequena capela localizada não muito distante do
Largo da Carioca, onde hoje se situa a Rua da Assembléia. Construído
o recolhimento, chegou a abrigar uma vintena de moças-donzelas e ex-mulheres
da vida, sendo metade delas negras ou mulatas. Viviam de doações
dos fiéis e dos parentes das recolhidas; seguiam a rotina comum a tais
instituições religiosas-leigas (sem votos perpétuos),
incluindo a recitação coletiva do Ofício de Nossa Senhora
e outras liturgias e sacramentais, além do trabalho de manutenção
da casa pia e demais exercícios comunitários. Entre as recolhidas
três filhas de um ex-senhor de Rosa, compadre do Xota-Diabos.
Madre Rosa - como então era chamada por dezenas de seus devotos - sofistica
suas visões, passando a escrevê-las ou ditando para que suas
escribas anotassem tudo o que via e ouvia, seja revelado pelos santos, por
Maria Santíssima ou pela própria boca de Deus. Sempre aplaudida
e venerada pelo Padre Francisco Gonçalves Lopes, pelo seu frade confessor
e por um capuchinho italiano, a negra courana escreve mais de 250 folhas do
livro "Sagrada Teologia do Amor de Deus Luz Brilhante das Almas Peregrinas",
onde diz que o Menino Jesus vinha todo dia mamar em seu peito e, agradecido,
penteava sua carapinha; que Nosso Senhor trocara seu coração
com o dela, e que no seu peito trazia Jesus Sacramentado; que morrera e tinha
ressuscitado ; que Nossa Senhora era Mãe de Misericórdia e que
ela, Rosa, recebera de Deus o título e encargo de Mãe de Justiça,
dependendo de seu arbítrio o futuro de todas as almas, se iam para
o céu ou para o inferno ; que ela própria era a esposa da Santíssima
Trindade, a nova Redentora do mundo.
Em seu misticismo, como católica fervorosa assistida por diversos diretores
espirituais, Rosa incorporou em sua espiritualidade o que de mais moderno
existia em termos de devoção na época, tal qual era praticado
por outras santas em Roma, Lisboa e demais metrópoles da Cristandade:
a ex-escrava, agora a Madre do Recolhimento do Parto foi a principal vidente
e divulgadora em terras brasileiras do culto aos Sagrados Corações
- incluindo não apenas a devoção oficial a Jesus e Maria,
mas de toda a família do Nazareno, a saber, os corações
de São José, São Joaquim e Santana. Foi graças
às visões de Rosa, e para representá-las visualmente,
que os franciscanos construíram no Convento do Largo da Carioca a maravilhosa
Capela dos Sagrados Corações, até hoje perfeitamente
conservada e aberta à visitação pública, muito
embora sem se dar os créditos à sua verdadeira inspiradora:
Santa Rosa Maria Egipcíaca da Vera Cruz!
Em seu recolhimento, contudo, além do culto idolátrico à
sua pessoa, algumas liturgias pecavam pela heterodoxia, notando-se elementos
de forte inspiração africana. Não esquecer que mais da
metade das recolhidas, entre estas, as principais assessoras de Rosa, eram
afro-descendentes. Além do hábito de pitar cachimbo, Rosa comandava
certas cerimônias onde é nítido o sincretismo afro-católico:
"Numa ocasião, conta a recolhida Irmã Ana do Coração
de Jesus, negra crioula, natural de Ouro Preto, que na noite da festa Visitação
de Nossa Senhora a Santa Isabel, que era o dia das sortes da congregação,
estando a comunidade rezando a novena no coro, saiu Rosa de joelhos, e cantando
o Ave Maris Stella (Ave Estrela do Mar), começou a dançar em
frente do altar, fazendo muitas visagens, até cair desmaiada no chão.
Levantou-se então e de um balainho pequenino tirou quatro papelinhos
trazidos à maneira de sorte e deu cada um a quatro irmãs, (três
negras e uma branca) onde estavam escritos São Mateus, São Lucas,
São Marcos e São João, dizendo que elas eram evangelistas..."
Em que medida tal imposição de novos nomes poderia evocar rituais
congêneres praticados nos cultos afro-brasileiros quando as yaôs
saem da camarinha e têm seus nomes revelados, passando a partir de então
a ser identificadas e incorporar diferentes orixás?
A descrição desta outra cerimônia faz-nos lembrar de uma
seção de gira num terreiro de umbanda ou candomblé: "Na
capela do Parto, Rosa tirava às vezes algumas imagens do altar, dizendo
que [ela] era Deus, e metia as imagens na mão de algumas irmãs
e ia dançando até ao pé delas, e lá as deixava
e ia buscar outra, e entrava a apertar a dança, arrodeando-as, e caía
no colo de alguma irmã e ficava como estava fora de si, e depois de
muito tempo, se tornava a si e começava a perguntar aquilo o que era,
quem a tinha trazido para ali, e isto era quase sempre, e se não críamos,
levantando-se da sua passividade, roncando, se agarrava pela goela e entrava
a bater pelo chão, dando murros..."
Noutra oportunidade, a negra courana parece estar possuída de algum
erê, tanto que certa manhã, "entrou Rosa no coro com uma
vara de marmelo dando na cabeça das recolhidas, dizendo: ABC com o
que, mataste o meu Iapê, com uma vara de dimpê... Explicando que
Iapê era Nosso Senhor e a vara de dimpê era a contradição
que as recolhidas tinham." Infelizmente, nenhum lingüista conseguiu
até agora dar-nos a pista destas expressões idiomáticas
utilizadas pela "Abelha Mestra" do Recolhimento do Parto. O ritual
lembra um erê quando usa varinhas para de brincadeira, açoitar
os freqüentadores dos terreiros de candomblé.
Outro aspecto da religiosidade de Rosa Egipcíaca revelador do sincretismo
afro-católico, remete-nos ao próprio espírito que passou
a acompanhá-la desde que se converteu: uma entidade que por mais de
quinze anos vexou-a, primeiro identificado como Lúcifer, mas depois
referido como Afecto. Curioso que em vez de comportar-se como o Príncipe
do Mal, este espírito induzia-a para o bem, para zelar e defender a
honra de Deus. Tal espírito faz-nos pensar em Avrektu - cuja semelhança
fonética com Afecto é evidente, um anjo ou mensageiro de luz
da cultura Jeje da Nigéria, vizinha próxima da região
natal de Rosa Coura. O Avrektu é um misto de mensageiro do além
e espírito protetor, através do qual Rosa profetizava o futuro.
No recolhimento do Parto, as freirinhas entravam em transe quase diariamente,
as vezes, diversas vezes por dia. Quando o Espírito baixava na comunidade,
"sempre ficava ao menos uma ou duas espiritadas sem estar atacada",
exatamente como ocorre nas casas de culto afro-brasileiros, onde institucionalizou-se
tal costume através da figura da ekédi, mulher auxiliar das
filhas de santo em transe, amparando-as para que não caiam, enxugando-lhes
o suor, etc. A ekédi não entra em transe, e nos xangôs
de Recife é chamada de iabá ou ilais.
A fantasiosa megalomania religiosa de Madre Rosa tinha no padre Xota-Diabos
seu estimulador, o qual mandara pintar um quadro sobre cobre, onde a negra
courana posava como se fosse uma bem-aventurada, vestida de hábito
franciscano, com as cinco chagas, cordão e rosário do lado,
pisando alguns diabos e salvando uma alma do purgatório, enquanto um
esbelto São Miguel a coroava com esplêndido buquê de flores.
Numa mão segurava o Menino Jesus e na outra trazia uma pena, símbolo
de sua erudição teológica, posto que o Padre Xota-Diabos,
agora Capelão do Recolhimento, proclamara mais de uma vez que "Rosa
deixava Santa Teresa Dávila a léguas de distância"
e que aquela Doutora da Igreja não passava de uma "menina de recados"
da mestra africana. Ao rezarem a Ladainha de Nossa Senhora, na estrofe Mater
Misericordiae, suas recolhidas se inclinavam reverentes para a Madre Superiora,
que era reverentemente incensada pelo sacerdote, o qual trazia no pescoço
preciosa relíquia: um dente de Santa Rosa Egipcíaca!
Muitos fiéis freqüentavam o Recolhimento do Parto, alguns para
ouvir os conselhos da Mestra, outros para buscar suas relíquias, notadamente
uma espécie de biscoito feito com a saliva de Rosa, amassada com farinha,
que era guardada para esse fim, e a que seus devotos reputavam o poder de
curar todas as enfermidades. Profetizando que o Rio de Janeiro ia ser inundado
e destruído do mesmo modo como acontecera em 1755 com o terrível
terremoto de Lisboa, Madre Rosa convence dezenas de famílias a refugiarem-se
no Recolhimento, garantindo que seriam os únicos sobreviventes ao dilúvio
e que essa nova Arca de Noé iria cruzar o mar oceano para encontrar-se
com o Rei D. Sebastião - desaparecido há dois séculos
nas areias do Marrocos , o qual tinha escolhido a negra Rosa para sua esposa,
e que deste matrimônio e de seu ventre nasceria o novo Redentor da humanidade.
Rosa foi dentre todos os sebastianistas, a que mais ousou em suas profecias!
Não foram tanto os vaticínios não cumpridos nem seus
êxtases e revelações de características epileptóides
a causa da derrota de Madre Egipcíaca: seu erro foi indispor-se com
o clero carioca por ter ralhado com alguns sacerdotes que davam mau exemplo
conversando na igreja durante as cerimônias sacras, sendo denunciada
ao Bispo sobretudo após ter retirado à força da igreja
de Santo Antônio uma senhora da sociedade que se comportava com menos
compostura. Mandada prender no aljube da cidade, dezenas de testemunhas passam
a denunciar as excentricidades desta preta beata: aí então se
revelam todos os seus desatinos religiosos, como dizer-se mãe de Deus,
redentora do universo, superior a Santa Teresa, objeto de verdadeira e herética
idolatria em seu recolhimento, além de capitanear rituais sincréticos
igualmente suspeitos.
Após quase um ano presos no aljube do Rio de Janeiro, Rosa e o padre
Xota-Diabos são enviados para Lisboa, sendo ouvidos pelo Santo Ofício,
em 1763. O padre em poucas sessões do inquérito declara ter
sido enganado pela falsidade da negra, alegando ser pouco letrado em teologia
e ter-se fiado na boa opinião que o Provincial dos Franciscanos dela
fazia. Pede perdão de sua boa-fé e excessiva credulidade: tem
como pena o degredo de cinco anos para o extremo sul do Algarve, além
de perder o direito de confessar e exorcizar. Se verdadeira ou falsa sua arrenegação
da fé em sua ex-escrava, filha espiritual e possível amante,
nunca poderemos saber.
Rosa, por sua vez, dá um heróico espetáculo de autenticidade,
insistindo em muitas sessões que nunca mentiu nem inventou coisa alguma:
confirma que todas suas visões, revelações e êxtases
foram reais. De fato, ela acreditava ser uma predestinada e que Deus em sua
misericórdia a tinha escolhido para revelar ao mundo seus desígnios.
Enquanto os inquisidores insistem para que diga a verdade, revelando tudo
não ter passado de fingimento para chamar atenção sobre
sua pobre figura, Rosa diz ao contrário: "Tudo vi e ouvi!"
Sua coragem e autenticidade a qualificam como verdadeira heroína!
Quatro de junho de 1765 é a última sessão de perguntas
à vidente afro-brasileira: neste dia ela narra uma de suas visões.
Que estando para comungar ouviu uma voz sobrenatural que lhe dizia: "Tu
serás a abelha-mestra recolhida no cortiço do amor. Fabricareis
o doce favo de mel para pores na mesa dos celestiais banqueteados, para o
sustento e alimento dos seus amigos convidados."
A partir daí, inexplicavelmente, interrompe-se o processo de Rosa.
Dos mais de mil processos de feiticeiras, sodomitas, bígamos, falsas
santas e blasfemos que pesquisei, não encontrei outro que ficasse inconcluso,
pois sempre os inquisidores eram muito minuciosos em anotar o desfecho do
julgamento: a pena a que foi condenado o réu, se morreu de doença
no cárcere, se houve suicídio, se foi mandado para a fogueira
ou para o degredo, etc. Inexplicavelmente, o processo de Rosa tem como última
página este registro dos inquisidores: "Por ser avançada
a hora lhe não foram feitas mais perguntas, e sendo lidas estas anotações
e por ela ouvidas e entendidas, disse estar escrita na verdade, e assinou
com o Senhor Inquisidor, depois do que foi mandada para o seu cárcere."
Comparando suas culpas com a de outras beatas e embusteiras processadas pelo
Santo Ofício da Inquisição, avaliamos que deveria ser
condenada à pena dos açoites e degredada por cinco anos para
o Algarve, aliás, como foi o caso de outra afro-brasileira, a angolana
Luiza Pinta, esta sim, verdadeira "mãe-de-santo" de um calundu,
muito mais ligada às raízes africanas do que Madre Rosa.
Duas hipóteses quanto ao inédito fim desta história:
ou a preta Rosa, como era depreciativamente referida no processo inquisitorial,
ex-Madre Rosa Maria Egipcíaca da Vera Cruz, morreu incógnita
no cárcere inquisitorial, de doença natural ou velhice, esquecendo-se
pela sua insignificância, o notário ou o médico do Santo
Ofício de registrar no processo o seu falecimento, ou, então,
quem sabe, o próprio Menino Jesus encarregou-se de libertar e levar
sua velha mãe-de-leite direto para o céu, agradecido e saudoso
do aconchegante colo de sua preta tão querida!
Tal é, resumidissimamente, a vida maravilhosa desta negrinha de nação
Courana desembarcada na cidade de São Sebastião do Rio de Janeiro
no ano do senhor de 1725. Seu processo permaneceu completamente inédito
até 1983, quando tivemos a ventura de descobri-lo e divulgá-lo
integralmente em livro em 1993.
Através da vida dessa ex-escrava africana, alguns aspectos cruciais
da sociedade colonial brasileira merecem maior reflexão, quiçá
revisão. Por exemplo, o fato de que num contexto onde negro equivalia
à escravidão e indignidade, e aos africanos desprezava-se como
raça inferior, bruta, "sangue impuro", não deixa de
ser notável a veneração e verdadeira idolatria como inúmeros
brancos - incluindo ex-senhores e membros do clero - cultuaram com tamanha
veneração à uma negra africana, ex-prostituta. A inteligência,
determinação e esperteza desta negra courana fazem-na merecedora,
muito mais do que a Escrava Anastácia, de ostentar o título
de santa e Flor do Rio de Janeiro! FINIS
NOTAS
1.Este ensaio é um resumo do livro ROSA EGIPCÍACA: UMA SANTA
AFRICANA NO BRASIL, Rio de Janeiro, Editora Bertrand do Brasil, 1993, 750
p.