CRÔNICAS 2. Os gays e os homens delicados
Outro dia, um casal de meia idade, ambos ultra simpáticos
e sorridentes, e com o qual havia convivido amigavelmente durante uma
semana num congresso internacional em Salamanca, me segredou a esposa
que eu era o primeiro gay que me dava assim tão bem com seu marido,
pois a maioria dos alunos gays não costumavam gostar dele, embora
fossem muito amigos dela. Esta observação fez-me pensar
por que muitos gays não gostam dos enrustidos - pois o tal professor
tinha tudo para ser gay, embora seja heterossexual e viva feliz com
sua mulher e duas filhas adolescentes.
A primeira constatação é que o "bichômetro"
de muito gay ou não funciona bem ou vive avariado, pois quantas
e quantas vezes a gente não se engana, jurando de pés
juntos que fulano é homossexual - e não é, ou o
contrário: tem certeza que sicrano não é gay, e
a criatura dá mais que chuchu na serra
Um erro comum que
a gente não se corrige é a idéia de que todo homem
não muito macho, meio delicado, seja obrigatoriamente gay. Ledo
engano!
Efeminação não é sinônimo de homossexualidade,
do mesmo modo como "machidão" não equivale a
heterossexualidade: há homens delicados que na hora do bem bom
são garanhões retados e ao contrário, cabras malhados
e durões que no leito viram donzelas que querem mesmo é
engolir cobra.
Por que tantos gays são hostis a homens delicados? A primeira
explicação seria porque a maioria de nós, homossexuais,
gostamos de homem com H, temos no nosso imaginário, como homem
ideal, de machão para cima: cabra macho hiperviril, homem peludo
tipo urso, policial fardado e melhor ainda se for malhado - e como o
efeminado é o oposto deste modelo ideal, muitos gays os desprezam
a ponto de hostilizá-los. Inconscientemente, muitos estão
desprezando à si próprios, não aceitando no íntimo
seu lado mulher.
Acontece que de fato, muitos homens delicados são homossexuais
enrustidos, que por medo ou oportunismo, não ousam se afirmar
e assumir que gostam do mesmo sexo. Neste caso, quando o homem delicado
se enquadra na categoria de gay clandestino, há uma razão
politicamente um pouco menos imprópria que a anterior e que poderia
explicar tal hostilidade: para quem é assumido, ou mais ou menos
assumido, os gays que se mantêm no armário, usufruindo
as delícias do homoerotismo apenas debaixo do pano, mas sem mostrar
a cara, esta vivência clandestina da homossexualidade provoca
desprezo e agressividade naqueles que se julgam "traídos"
por estes oportunistas. Acusam-nos de covardes e alienados por não
serem suficientemente "machos" para se assumir 24 horas por
dia como bichas, deixando recair nas costas dos assumidos todo o ônus
da defesa de nossas bandeiras.
Outra forma ainda mais criticável de oportunismo que pesa na
crítica ou desprezo que os gays assumidos devotam aos "enrustidos"
ou "incubados" é que para salvar sua própria
pele e limpar a barra, criticam e chegam a agredir os homossexuais como
estratégia para não levantar suspeita de que eles próprios
pertencem a este grupo que tanto estigmatizam.
É muito comum os gays dizerem que são os "incubados"
os que mais criam problemas e discriminam os gays, lésbicas e
travestis - de um lado como encenação pública visando
destruir as suspeitas de que eles próprios também são
gays, do outro, como uma espécie de vingança para compensar
sua frustração de viver sufocados dentro do armário,
enquanto as bichas desvairadas vivem freneticamente o que eles não
têm coragem de assumir.
Finalmente há quem justifique a hostilidade contra os homossexuais
enrustidos e por extensão, aos homens delicados de quem se suspeita
que sejam gays clandestinos, alegando que por disporem estes últimos
geralmente menos tempo livre para paquerar e batalhar sexo, devido ao
maior controle social a que são submetidos, por tal razão,
seriam mais apressados em suas conquistas, atravessando as bichas, tentando
roubar-lhes seus bofes, sem respeitar as regras do jogo.
Concordo que deve haver ética e etiqueta no trato entre homossexuais,
e respeitar as conquistas alheias é um dos primeiras regras do
bem viver, seja na cena gay, seja no mundo hetero. Afinal, Chê
culi per tutti, "tem cu pra todo mundo", ensina com sabedoria
um velho ditado italiano. E os apressadinhos que encontrem mais tempo,
respeitando as conquistas alheias.
Eu pessoalmente, verdade seja dita, não costumo hostilizar os
homens delicados, embora já tenha algumas vezes dado foras homéricos,
ao abordar algum deles certíssimo que era gay, sem o ser, causando
mal estar esta minha insensata presunção. Reconheço
que meu "bichômetro" nuncfa foi infalível. Numa
situação destas, quando a gente tem dúvida se a
criratura em nossa frente é gay ou não, mesmo que tenha
todos os atributos e desmunheque até mais que a gente, o melhor
é agir com um pouco mais de delicadeza - sem ir de cara dizendo
alto prá todo mundo ouvir: "diga aí amiga! Táboa
santa?!" Uma simples brincadeirinha destas pode criar um clima
de hostilidade e a criatura ficar sua inimiga. O melhor é moderar
a tirania, ficar na sua, dar umas dicas do tipo jogar verde para colher
maduro, mas não pressionar a criatura contra a parede, não
tratá-la pr]ernte outras testemunhas como pertencente a nossa
tribo, pois isto pode desarticular aquele homem delicado e em vez de
ajudadá-lo a um dia se assumir, vai afastá-lo ainda mais
deste passo fundamental para si próprio, para nós e para
o mundo, pois sair da gaveta faz bem prá saúde, evita
morrer sufocado e ajuda a tornar o mundo mais verdadeiro e feliz. Concorda
comigo ou não?
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