Este trabalho foi realizado no primeiro semestre de 2001 por:

CINARA GLAISE PUGLIA

JANAÍNA PEROLA D΄ARCÁDIA FONSECA SPOLIDORIO

MARIA ÂNGELA RIBEIRO BARBOSA

MARLENE APARECIDA MEDEIROS

RENATA DE FELICE DEL MONTE

 

CIVILIZAÇÃO

EÇA DE QUEIROZ

 

"VIDA MODERNA

"...e o homem dominou o fogo, e inventou a roda... e a vida tornou-se um caos. E aos intervalos entre esses acontecimentos convencionou-se chamar evolução. Será mesmo evolução? "À esta palavra não se dá o significado de mudança para melhor?

"O homem começou a cozer seus alimentos. E o seu sabor e textura ficaram ótimos, sem dúvida. Mas sabe-se hoje que no cozimento os alimentos perdem nutrientes importantes para a saúde do corpo.

"A roda multiplicou a velocidade dos pés. E da preguiça humana surgiram os meios de transportes, que diminuíram as distâncias e também a vida pelo sedentarismo.

"O relógio conseguiu, enfim, organizar os acontecimentos e, ao mesmo tempo, inventou os atrasos. As vinte e quatro horas de um dia nunca são suficientes; os sete dias de uma semana nunca dão para nada; trinta dias no mês são sempre poucos e os anos passam tão depressa...

"Quando o dinheiro foi criado resolveu-se o problema da desigualdade nas trocas, mas por que o trabalho nunca tem o valor que merece?

"As embalagens e a água tratada tornaram o mundo mais higiênico, mas enquanto aquelas poluem o ambiente, esta não consegue ser produzida em quantidade suficiente.

"Antes de as normas serem criadas por um grupo, já existe pelo menos o dobro de pessoas pensando em uma forma de burlá-las. E, para punir os infratores, constróem-se cárceres que não podem comportá-los.

"A solução para todo esse caos talvez esteja em uma caverna fria e escura, bem no início de tudo..."

Maria Ângela Ribeiro Barbosa (04/05/96)

 

INTRODUÇÃO

Antes da análise do conto proposto, faz-se necessária uma apresentação histórica do gênero literário conto.

"No século XVI desponta, por influência dos italianos Boccaccio, Giraldi Cinthio, Franco Saccetti, Matteo Bandello, Straparola, e os espanhóis Juan de Timoneda e Melchor de Santa Cruz, o primeiro contista português digno de nome: Gonçalo Fernandes Trancoso. As suas narrativas, redigidas sob o impacto da peste que assolou Lisboa em 1569, vieram a público sob o título de Contos e Histórias de Proveito e Exemplo (1575)."

Durante o Barroco Português (1580-1756), a literatura sofreu transformações em sua função. O espírito prático reinante foi a principal causa da escassa prática do conto nessa época. No entanto, é justamente durante o Barroco que surge a primeira tentativa de sua teorização. Francisco Rodrigues Lobo, em Corte na Aldeia (1619) estabelece

"(...) uma diferença entre contos e histórias, aqueles identificados com a narrativa folclórica, popular, e estas, com as novelle à Boccaccio; as segundas "pedem mais palavras que eles, e dão maior lugar ao ornamento e concerto das razões, levando-as de maneira que vão afeiçoando o desejo dos ouvintes; e os contos não querem tanto de retórica porque o principal em que consistem é a graça do que fala e na que tem de seu a cousa que se conta".

Durante o Romantismo (1825-1865) o conto foi grandemente utilizado e um tipo de conto, que não levava em conta a tradição, mas que colocou a literatura Portuguesa em compasso com o restante da Europa, é o conto fantástico de origem inglesa. As Prosas Bárbaras de Eça de Queirós pertencem a essa vertente literária.

O conto só atingiu o status de obra de arte, equiparando-se com o romance e a poesia, durante o Realismo, embora, o conto português de 1865 até o final do século XIX se utilizava ainda dos moldes românticos. Nem mesmos os ficcionistas que produziam tanto contos como romances conseguiram ver-se livres de aspectos românticos.

Assim, Eça de Queirós, ortodoxo, nalguns de seus romances realistas, somente num que noutro conto ("Singularidades duma Rapariga Loura", "No Moinho") logrou superar o fascínio do Idealismo e da Metafísica, deliberadamente repudiados durante o esplendor do Positivismo: os seus contos traem uma involuntária visão romântica, como se pode ver em "José Matias", "Um Poeta Lírico", "Suave Milagre" e outros."

 

José Maria Eça de Queirós nasceu a 25 de novembro de 1845 na Póvoa de Varzim. Cursou Direito em Coimbra, na época em que Comte e Proudhon estavam na moda. Ficou à margem da Questão Coimbrã (1865), que opunha as idéias de Castilho pelos românticos e Antero de Quental ao lado dos realistas. Formou-se em Évora e seguiu para Lisboa. Viajou para o Egito em 1869, onde assistiu à inauguração do canal de Suez, em companhia do conde de Resende e colaborou nas Conferências do Cassino Lisboense em 1871. Como administrador do Concelho mudou-se para Leiria, cenário de O Crime do Padre Amaro. Seguiu para Havana em 1873, Bristol e Paris em 1878 em carreira diplomática. Casou-se em Paris com Emília de Castro Pamplona, filha do conde de Resende, passando a levar uma vida mais sossegada, para dar andamento à sua produção literária, vindo a falecer em 1900, em sua casa de Neuilly em Paris.

Eça surpreende o seu leitor, não reproduzindo em seu trabalho os triângulos dramáticos. Percebe-se em sua obra a presença de pares dialéticos: Macário e a Moça Loira, Jacinto e José Fernandes, Ulisses e Calipso, José Matias e a bem-amada etc. O cenário também recebe essa característica.

No conto "Civilização" esse cenário duplica-se contrapondo "a cidade e as serras", título de um romance de Eça, onde o conto é ampliado, contendo algumas modificações.

"Civilização", utópica visão de um mundo melhor para o Homem, esmagado pela Técnica e pelo Progresso, no reencontro da Natureza e dos valores simples do campo. (...) Sistematicamente, o escritor injeta na dualidade social ou natural o seu acendrado idealismo, um idealismo de extração romântica, destituído de carga política, que se revela às claras nas fases extremas de sua carreira e de modo implícito durante a campanha realista. Em última instância, mesmo em "A Perfeição" a tese defendida por Eça é rousseauniana. De onde a presença constante de uma moralidade, subentendida nas dobras da fabulação ou dissimulada no tecido metafórico, por meio do qual o ficcionista oculta a sua nostalgia de um mundo organizado à luz do sentimento e à imagem da Natureza."

A obra de Eça de Queirós apresenta em seu conjunto um diálogo entre o campo e a cidade.

Nos primeiros livros é a visão urbana que se sobressai, mesmo tratando-se de tema rural.

"O campo sempre foi oportunidade para algumas das suas melhores descrições e dos seus ambientes mais sugestivos, a ponto de o sentirmos meio aprisionado em obras como O Primo Basílio, onde a atmosfera urbana e a densidade das relações não lhe permitem um desafogo maior. Seus livros precisam respirar, e não sossegam enquanto não buscam uma nesga de natureza, por menor que seja, como a paisagem ribeirinha que Afonso desfrutava do Ramalhete, espremida entre dois prédios altos."

 

Eça acreditava realmente no progresso constante, baseado no desenvolvimento científico que pôde presenciar. Observava, entretanto, que sua pátria era uma civilização fincada na agricultura rudimentar, destoando do cenário ocidental daquela época. Socialista, odiava a estagnação do país.

A Correspondência de Fradique Mendes, espécie de tratado do homem moderno, representa o auge do urbanismo de Eça de Queiroz. Utiliza, então, o cultivo do próprio eu.

"Do socialismo, Eça guarda neste livro de idéias apenas o senso de relatividade das instituições políticas e sociais, - que não precisaria ser socialista para possuir. Nele, jaz em embrião a famosa equação de Jacinto: ‘suma ciência + suma potência = suma felicidade’. E Fradique morre feliz (...), tendo sido a vida toda uma síntese dos requintes da civilização urbana. Portugal, o pequeno Portugal bucólico, causa-lhe infinito desdém e um certo encanto divertido, complacente, como o de quem visse uma roca de fuso no canto perdido de uma super-usina."

Para demonstrar um ser altamente civilizado Eça retira-o de sua pátria e o lança na vida internacional. No conto "Civilização", o narrador personagem não menciona onde fica o Jasmineiro, e no romance que amplia o conto, A Cidade e as Serras, a casa de Jacinto, o 202, fica em Paris.

Outra preocupação constante de Eça era mostrar que, juntamente com o progresso científico, estavam em voga novos hábitos de higiene.

"O que caracteriza os seus heróis prediletos – Carlos, Gonçalo, Afonso – é o ‘culto da tina’ e da vida arejada. Afonso da Maia ‘sempre tivera o amor supersticioso da água; e costumava dizer que nada havia melhor para o homem – que sabor de água, som de água e vista de água.’ Ora, assim como Eusebiozinho vem de Resende, toda a caspa de Lisboa vem da província.

Aos poucos nota-se em sua obra uma substituição do ponto de vista urbano pelo rural. Eça aceita o fato de que Portugal foi feito para aldeia grande, repleto de tradição e caráter. Seus personagens surgem aos pares, inaugurando, com o Marquês de Souzelas e Afonso da Maia, uma série de aristocratas rurais que mostram as vantagens do rural sobre o urbano.

 

"N’A Cidade e as Serras (...) pretende fazer o romance-rural-por-excelência, deixando-se de novo dominar pelo velho pendor caricatural que, nele, é realmente o mais poderoso instrumento de trabalho. A apoteose da Serra sobre a Cidade é preparada com amorosa minúcia. O fradique Jacinto leva o fradiquismo ao máximo, porque torna-o uma filosofia de vida exclusivamente urbana. (...) A civilização torna-se um culto requintado, um dever penoso e absorvente, exercido com reverência na micrópolis do ‘202’. (...) Por meio da caricatura e do esquema, o romancista procede a uma inversão do fradiquismo e mostra como a suma sabedoria + suma potência = suma servidão."

 

ANÁLISE DO CONTO "CIVILIZAÇÃO"

 

Os personagens, quanto à função, apresentam-se da seguinte maneira: como protagonista temos Jacinto, que, embora tenha poder para realizar todos os seus sonhos, sofre de um tédio sufocante. Como antagonista temos a própria Civilização; e todos os outros como personagens secundários, incluindo-se nesta denominação o narrador personagem, José.

Há, ainda, uma segunda hipótese em que o narrador é o protagonista, pois, é aquele que revela primeiramente o desejo de saber o motivo de um homem como Jacinto, que possuía tudo o que desejava, viver tão aborrecido. Exprime esse desejo desde o final do segundo parágrafo: "Por quê?" Se o conto for interpretado como a defesa de uma tese, Jacinto figura apenas como mero objeto de observação, um personagem secundário e, neste caso, a Civilização continua se apresentando como antagonista, pois, retendo o personagem Jacinto como seu escravo, impede que a tese seja defendida.

Quanto à variedade temos todos os personagens como típicos, ficando em suas classes sociais, formando um cenário para o desenvolvimento do enredo. Jacinto é uma mescla de personagem típico, pois ele representa a classe abastada de uma grande cidade e caricato. A caricatura é desenvolvida nas atitudes, que provocam o riso.

"(...) Com uma escova chata, redonda e dura, acamava o cabelo, corredio e louro, no alto da risca; com uma escova estreita e recurva, à maneira do alfanje de um persa, ondeava o cabelo sobre a orelha; com uma escova côncava, em forma de telha, empastava o cabelo, por trás, sobre a nuca... Respirava e sorria. Depois, com uma escova de longas cerdas, fixava o bigode; com uma escova leve e flácida acurvava as sobrancelhas; com uma escova feita de penugem regularizava as pestanas. E deste modo Jacinto ficava diante do espelho, passando pêlos sobre o seu pêlo, durante quatorze minutos."

Jacinto é um ser tão metódico, que chega ao exagero.

Quanto ao desenvolvimento, nota-se que Jacinto é o único personagem evolutivo, pois muda totalmente de atitudes, de humor, de interpretação da vida.

O método de apresentação de todas as personagens é direto, pois as suas características são dadas pelo narrador, à exceção do personagem narrador que se nos apresenta por intermédio das opiniões que emite, enquanto faz a narração.

A introdução das personagens em cena é épica. O narrador dá informações acerca de alguns acontecimentos trazendo as personagens à cena.

Para as fases do enredo pode-se perceber a apresentação nos dois primeiros capítulos em que o narrador conta fatos acontecidos com Jacinto antes de começar a história propriamente dita.

O desenvolvimento começa no início do capítulo 3, quando Jacinto resolve ir a Torges, e termina no mesmo capítulo quando descem do trem e Jacinto reconhece as suas carruagens ainda empacotadas em lona.

A complicação tem início quando percebem que estão sozinhos e sem as malas e vai até o momento, durante o jantar, quando prova o caldo de galinha.

Neste ponto inicia-se o clímax, quando Jacinto

"Provou, e levantou para mim, seu companheiro e amigo, uns olhos largos que luziam, surpreendidos."

Neste momento, Jacinto tem toda a sua teoria sobre civilização jogada por terra e, a partir de então, começa a formular a sua nova teoria, isso vai até o momento em que Jacinto responde a pergunta do amigo sobre se vai ficar em Torges – "Para todo o verão" – e este responde que – "Para todo o sempre."

A conclusão começa a seguir quando Jacinto convida o narrador para almoçar umas trutas que havia pescado e conta ao amigo sobre sua nova teoria de vida.

O tempo da narrativa inicia-se quando Jacinto resolve ler os tratados sobre a evolução das idéias morais entre as raças negróides de janeiro a março em algum ano do final do século XIX, o que se pode depreender pelos aparelhos existentes na casa de Jacinto e o fato de que ele se comunicava com Édison que viveu entre 1847 e 1931. Depois desse inverno, resolve ir a Torges; prepara-se por sete semanas. Viajam Jacinto e o narrador. No dia seguinte o narrador segue para Guiães e demora-se três semanas. Volta em uma manhã de agosto. Passam-se quatro ano e o narrador volta ao Jasmineiro em abril. Passa-se, portanto, cinco anos e três meses aproximadamente. Antes de iniciar a narrativa propriamente dita, o narrador conta fatos acontecidos anteriormente, para situar o leitor e apresentar as características do personagem e do cenário. O tempo é predominantemente cronológico com exceção dos dois trechos em que os personagens filosofam tornando-se psicológico. O primeiro trecho é quando, após o primeiro jantar em Torges, o narrador discorre sobre a divinização do ser humano e o segundo acontece na sua volta, quando Jacinto, incitado pelo narrador, dá a sua lição de vida, baseada em suas novas experiência no campo. Ironicamente, no primeiro momento, o narrador diz

"Assim enevoadamente filosofávamos",

no entanto, Jacinto não faz nenhuma menção e no segundo trecho usa a frase

"(...) conversamos sobre o Destino e a Vida",

mas a única intervenção do narrador é

"Eu citei, com discreta malícia, Schopenhauer e o Eclesiastes..."

O tempo da narração acontece na ordem direta com trechos narrados rapidamente, como por exemplo em

"Quatro anos vão passados. Jacinto ainda habita Torges."

Sobre o espaço de tempo em que o narrador vai a Guiães nada é revelado, também. Entretanto, quando o narrador conta o episódio do defeito do fonógrafo, que repetia sem parar a frase

"Quem não admirará os progressos deste século?"

utiliza todos os detalhes de que dispõe.

O espaço físico é dividido entre o Jasmineiro, na cidade e Torges, no campo. A influência do ambiente é marcante, visto que foi a mudança de ambiente que modificou toda a estruturação de Jacinto.

O espaço social foca, na cidade, a burguesia do século XIX e, no campo, a sociedade trabalhadora campestre. O espaço social é também fundamental para o desenvolvimento do enredo, pois, se Jacinto não pertencesse à classe abastada, não poderia possuir todos os recursos modernos de que dispõe, bem como a convivência com as pessoas simples do campo é que ajudam Jacinto a mudar todas as bases de seu pensamento sobre a vida.

O foco narrativo é interno, ou seja, o narrador participa do enredo, não tendo acesso ao que se passa nas mentes dos personagens.

RESUMO DO CONTO "CIVILIZAÇÃO"

Jacinto, homem supercivilizado, possuidor de hábitos metódicos e considerável fortuna, notório por apreciar inovações técnicas, típicas da sociedade humana em progresso, era dotado de certo desânimo em relação à vida, apesar de possuir saúde perfeita. Era leitor de Schopenhauer e do Eclesiastes, escritos estes, que transmitem uma visão pessimista da vida.

Sua casa na cidade era repleta de aparelhos para todos os fins que se possam imaginar e os inimagináveis também.

Um dia decide viajar para o seu velho solar de Torges, situado em região serrana de suas origens. Envia instruções ao seu administrador Sousa para que se encarregue da reforma da casa, tornando-a habitável segundo os parâmetros da civilização. Manda para lá inúmeros caixotes contendo todos os confortos para duas semanas de montanha. Após sete semanas de preparações seguem para as serras Jacinto e José, o narrador, que seguiria para a casa de uma tia em Guiães.

Chegando em Torges deparam-se com uma situação inesperada: a casa não fôra reformada e os caixotes que continham toda a civilização se extraviaram no trajeto. Dessa forma os dois têm de dormir em enxergas postas no chão, comer alimentos modestamente preparados e viver em condições de higiene suspeitas ao asséptico Jacinto, que fica surpreso com o sabor da comida e encantado com o do vinho.

O narrador parte no dia seguinte para Guiães. Quando volta para Torges, daí a três semanas, encontra um Jacinto completamente novo, ressuscitado. O supercivilizado amigo, abandona o excesso de inovações e torna-se portador de novos hábitos como o de admirar o céu noturno, relacionar-se com as todas as pessoas e tomar vinho sem comedimentos. Conseqüentemente, abandona as idéias de Schopenhauer e o Eclesiastes, porque agora é capaz de criticá-los, conhecendo uma visão mais positiva da vida.

Jacinto resolve mudar-se definitivamente para Torges e pede ao narrador que lhe preste um favor, indo até a casa da cidade, denominada Jasmineiro para trazer-lhe uns livros. Ao chegar ao local, o narrador encontra tudo em completo abandono e as sofisticadas máquinas junto com a vasta biblioteca deteriorando-se cobertas de pó.

Aquele era o último vestígio daquele Jacinto que sempre valorizou tais coisas, mas que agora regozijava-se com a simplicidade e harmonia dos ares serranos, responsáveis pela reconstrução de um "novo homem".

INTERPRETAÇÃO

O conto "Civilização" foi publicado originalmente em 1892 na Gazeta de Notícias do Rio de Janeiro.

Trata-se de uma tese desenvolvida pelo autor de forma satírica e repleta de ironia sobre o exagero do homem moderno com relação ao progresso material e científico. Pode ser considerado como uma autocrítica, visto que o próprio Eça de Queirós participou, durante quase toda vida, dessa linha de pensamento que endeusava a civilização técnica. Sob esse prisma, pode-se ter o próprio autor representado no crítico, pelo narrador e no criticado, por Jacinto.

Logo na primeira linha

"Eu possuo preciosamente um amigo (o seu nome é Jacinto)..."

nota-se que o mais comum seria possuir um amigo precioso. O uso do advérbio "preciosamente" e o fato de o nome do amigo estar entre parênteses, revela a intenção do narrador em dar ênfase ao fato de possuir o amigo em detrimento do próprio amigo. Dá a idéia de que a importância em ter conhecido Jacinto está em poder, a partir daí, desenvolver a sua tese sobre a supervalorização dos progressos da ciência, o que traria um sentimento de tédio e insatisfação.

"(...) Civilização tem qualidades que o recomendam como um dos melhores contos do volume em que figura. O que pode prejudicá-lo é a intenção, por demais visível no escritor, de demonstrar uma tese. Aceita, porém, a tendência moralizante, como uma das coordenadas do temperamento de Eça de Queirós, o conto é, indiscutivelmente, admirável, não apenas pelo humorismo das suas situações como, por exemplo, a cena do gramofone (...), mas também pela simplicidade e precisão do estilo."

O caráter de tese do conto pode ser observado por intermédio dos vários questionamentos efetuados pelo narrador.

"(...) E todavia, desde os vinte e oito anos, Jacinto já se vinha repastando de Schopenhauer, do Eclesiastes, de outros pessimistas menores, e três, quatro vezes por dia, bocejava, com um bocejo cavo e lento, passando os dedos finos sobre as faces, como se nelas só palpasse palidez e ruína. Por quê?"

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"E era este bocejo, perpétuo e vago, que nos inquietava a nós, seus amigos e filósofos. Que faltava a este homem excelente?"

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"E era então que ele se refugiava intensamente na leitura de Schopenhauer e do Eclesiastes. Por quê?"

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"Mas por que rolara assim a tão escura desilusão – o saudável, rico, sereno e intelectual Jacinto?"

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"Quem pode dizer a beleza das cousas, tão simples e inexprimível?

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"Quem somos nós?"

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"Mas que nos importava, de resto, que aquele astro além se chamasse Sírio e aquele outro Aldebarã? Que lhes importava a eles que um de nós fosse José e o outro Jacinto?"

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"Da idealidade descemos gostosamente à realidade, e que vimos então nós, os irmãos dos astros?"

No quinto capítulo, existe um trecho em que o narrador funde o seu pensamento com o de Jacinto. Obtém esse efeito, utilizando o discurso indireto. Relatando as conclusões tiradas por Jacinto, dá as suas próprias conclusões sobre a sua tese.

"De resto, que importa bendizer ou maldizer da vida? Afortunada ou dolorosa, fecunda ou vã, ela tem de ser vida. Loucos aqueles que, para a atravessar, se embrulham desde logo em pesados véus de tristeza e desilusão, de sorte que na sua estrada tudo lhe seja negrume, não só as léguas realmente escuras, mas mesmo aquelas em que cintila um sol amável."

O escritor utiliza estruturas semelhantes de frases, adjetivos e advérbios um tanto suspeitos; repete esquemas, utilizando diversas figuras de linguagem. Pode-se notar no trecho referente ao problema com o fonógrafo a repetição de uma frase oito vezes:

"– Quem não admirará os progressos deste século?"

Neste momento específico, a idéia central é mostrar toda a irritação causada pelo aparelho com defeito, mas ele repete o esquema mais adiante com algumas alterações:

"Quem dignamente te cantará, vinho daquelas serras?"

e

"Quem condignamente vos cantará, comeres e beberes daquelas serras?"

Nos dois casos em que usa os advérbios dignamente e condignamente, Jacinto já se encontra em uma fase de conscientização.

Esse esquema é encontrado no Livro do Eclesiastes

"Quem poderá regalar-se a abundar em delícias tanto como eu?"

A abundância de perguntas durante todo o texto é o esquema do Livro do Eclesiastes, repleto de pregações que se iniciam com uma pergunta.

No capítulo quarto utiliza o esquema de gradação para dar ênfase no clímax do enredo.

"Provou, e levantou para mim, seu companheiro e amigo, uns olhos largos que luziam, surpreendidos. (...) Tornou a sorver uma colherada de caldo, mais cheia, mais lenta... E sorriu, murmurando com espanto:

– Está bom! (...)

Outra garfada, outra concentração... E eis que o meu dificílimo amigo exclama:

– Está ótimo! (...)

E, diante do frango louro, assado no espeto de pau, terminou por bradar:

– Está divino!"

A gradação é dupla e feita em quatro tempos:

(levantou uns olhos largos / sorriu, murmurando / exclama / bradar)

(luziam, surpreendidos / Está bom / Está ótimo / Está divino)

Ainda quanto à forma pode-se destacar uma frase contendo uma aliteração:

"(...) Quem somos nós? Formas sem força, que uma Força impele."

sugerindo o sopro divino (caracterizando esse divino como sendo uma força, grande vento).

Na primeira parte do conto, pode-se perceber que Jacinto possui grande quantidade de máquinas. É interessante o modo como o autor as descreve, pois ele faz questão de que o leitor imagine cada uma das máquinas ali presentes.

"(...) os grandes aparelhos, facilitadores do pensamento – a máquina de escrever, os autocopistas, o telégrafo Morse, o fonógrafo, o telefone, o teatrofone, outros ainda, todos com metais luzidios, todos com longos fios."

Mais interessante do que a descrição destes objetos facilitadores é o fato de que eles não funcionam sempre como se deseja. O caso do fonógrafo é um exemplo disso.

"Debalde Jacinto, pálido, com os dedos trêmulos, torturava o aparelho.

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"Furiosos, enterramos uma almofada na boca do fonógrafo, atiramos por cima mantas, cobertores espessos, para sufocar a voz abominável. Em vão!"

Impossibilitados de parar o aparelho, retiraram-se da casa. Ao retornarem, o aparelho ainda falava. A cena do retorno mostra bem como as personagens se sentem em relação ao aparelho:

"Recolhemos ao Jasmineiro, com o Sol já alto, já quente. Muito de manso abrimos as portas, como no receio de despertar alguém. Horror!"

O fonógrafo é tratado como ser superior, pois é ele que domina as pessoas, e não o contrário. A última palavra do trecho acima demonstra a temerosidade das personagens ao constatar que a voz ainda estava lá, e elas não conseguiriam pará-la. Ao invés de controlar os aparelhos, eram os aparelhos que controlavam as pessoas.

Em um outro trecho o narrador faz um inventário dos utensílios do gabinete de trabalho de Jacinto e usando ironia marcante relata que as máquinas castigavam o usuário

"(...) Uns de níquel, outros de aço, rebrilhantes e frios, todos eram de um manejo laborioso e lento: alguns, com as molas rígidas, as pontas vivas, trilhavam e feriam: e nas largas folhas de papel Whatman em que ele escrevia, e que custavam 500 réis, eu por vezes surpreendi gotas de sangue do meu amigo."

Quando o episódio do jantar do bispo de Corazim é contado, nota-se novamente esta dominação da máquina sobre o homem; desta vez, com um dos elevadores da cozinha:

"(...) o peixe emperrou no meio do ascensor, sendo necessário que acudissem, para o extrair, pedreiros com alavancas."

Nestes e em outros episódios, o narrador demonstra a inversão do esquema fradiquista: suma ciência + suma potência = suma felicidade para a nova equação: suma sabedoria + suma potência = suma servidão, mostrando que os homens que fazem uso da supercivilização com fanáticos rituais quase religiosos, tornam-se escravos da mesma.

Quase no final do capítulo dois, há um trecho que resume e ratifica todas as afirmações anteriores sobre Jacinto. É importante ressaltar que, antes de desenvolver esta espécie de resumo, é feito um questionamento.

"Que faltava a este homem excelente? Ele tinha a sua inabalável saúde de pinheiro bravo, crescido nas dunas; uma luz da inteligência, própria a tudo alumiar, firme e clara sem tremor ou morrão; quarenta magníficos contos de renda; todas as simpatias duma cidade chasqueadora e cética; uma vida varrida de sombras, mais liberta e lisa do que um céu de Verão..."

Ao mencionar a saúde de Jacinto, o narrador nos lembra o modo como ele fôra criado, sem nenhuma doença e sem problema algum. Há até a repetição da mesma idéia do início do conto:

"Jacinto fora sempre mais resistente que um pinheiro das dunas".

Além de mencionar a excelente saúde de Jacinto, lembra o leitor da sabedoria (superficial) que Jacinto possuía.. Ao usar o termo luz, nos lembra do Farol de sua biblioteca. Neste, existiam diversos dicionários, manuais e enciclopédias, além de guias e diretórios; todos sobre uma estante que era isolada e esguia em forma de torre, que girava. A luz da inteligência de Jacinto, portanto, seria a sabedoria contida em livros de sua biblioteca: uma posse. O narrador cita ainda os quarenta contos de renda, já presentes no primeiro parágrafo do conto. Novamente, a posse está presente na idéia do trecho citado, o que fortalece a riqueza de Jacinto, que vive em uma cidade cética e chasqueadora, ou seja, um lugar onde não se acredita em nada além do que se vê, o homem é medido por suas posses.

Durante o tempo em que Jacinto está na cidade, tudo é visto de um ponto de vista pessimista. As expressões de fastio e enfado de Jacinto multiplicam-se durante toda a primeira parte do conto: "com um bocejo cavo e lento; palidez e ruína; penteado e cansado; e era esse bocejo, perpétuo e vago; bocejava constantemente; a palidez e as rugas; morosidade desconsolada; a vida era um cansaço; mais murcho, com bocejos mais cavos; com desusado tédio; que maçada".

Jacinto aceitava o sofrimento causado pelo progresso, penitenciando-se contra o pecado original de haver deixado o paraíso.

"existia, creio eu, tudo quanto para bem do espírito ou da matéria os homens têm criado, através da incerteza e dor, desde que abandonaram o vale feliz de Septa-Sindu, a Terra das Águas Fáceis, o doce país ariano."

A casa da cidade representava todo o progresso dos homens, progresso este conquistado por meio da incerteza e da dor. A idéia de que retornar ao campo é conquistar a felicidade aparece reforçada pela menção de três paraísos. O viver em contato com a natureza é visto como uma salvação contra o pessimismo presente na cidade, representada por sentimentos negativos.

Esta idéia do pessimismo é reforçada pelas leituras de Jacinto na primeira parte do conto:


"E todavia, desde os vinte e oito anos, Jacinto já se vinha repastando de Schopenhauer, do Eclesiastes, de outros pessimistas menores, e três, quatro vezes por dia bocejava..."

Ao mencionar Schopenhauer e Eclesiastes, o narrador já leva o leitor a prever todo o tom acinzentado que virá a seguir.

No capítulo três, o conto começa a tomar outro rumo. Jacinto decide partir para o Norte, para o solar de Torges. Parece muito uma volta à Idade Média, pois o próprio ambiente possuía uma torre desta época.

"(...) e a rude casa solarenga, onde ainda resta uma torre do século XV, estava ocupada, havia trinta anos , pelos caseiros..."

Eça de Queirós utiliza o jogo de contrastes durante todo o conto. A base do conto é o dualismo. Alguns ficam mais flagrantes como: cidade-campo, tecnologia-simplicidade, tédio-alegria de viver, palidez-saúde etc. Em outros casos, apenas um leitor mais observador poderá notar esse intuito.

O jogo de claro-escuro existente no conto aponta para as três fases de Jacinto. Uma, do homem supercivilizado, com iluminação estonteante refletida por metais e vidros, outra, do medo do desconhecido com o negro predominando e a última fase, que é a tomada de consciência, quando aparecem as claridades e brilhos naturais.

Em meio aos seus utensílios resultantes do progresso, há sempre um tentativa de encontrar a luz. O vidro dá a idéia de transparência, bem como a água. Ambos parecem fazer parte de um mesmo grupo de outras tantas citações durante o conto que buscam luminosidade em meio da escuridão conflitante de sentimentos vividos pelo homem Jacinto.

"(...) Os copos, pela diversidade dos contornos e das cores, faziam, sobre a toalha mais reluzente que esmalte, como ramalhetes silvestres espalhados por cima de neve"

"(...) de uma vidraça exterior de cristal inteiro, de uma vidraça interior de cristais miudos..."

"(...) Entre estas duas varandas rebrilhava a mesa de toilette, uma mesa enorme de vidro, toda de vidro, para tornar impenetrável aos micróbios..."

Na segunda fase, quando Jacinto vê-se obrigado a enfrentar o desconhecido por força maior do destino, as luzes são filtradas por uma barreira negra.

"(...) as salas do seu solar! Eram enormes, com as altas paredes rebocadas a cal que o tempo e o abandono tinham enegrecido (...) Nos tetos remotos de carvalho alvejavam manchas – que era o céu já pálido do fim da tarde, surpreendido através dos buracos do telhado."

"(...) terminei por descer à cozinha, conduzido pelo cocheiro, através das escadas e becos, onde a escuridão vinha menos do crepúsculo do que de densas teias de aranha."

" A cozinha era uma espessa massa de tons e formas negras, cor de fuligem..."

"(...) Era adiante (a ceia), noutra sala mais nua, mais negra."

Retirando a barreira do desconhecido, Jacinto já consegue vislumbrar a luz natural das coisas, sem precisar do reflexo da civilização.

"Na sala nobre, onde o soalho fora composto e esfregado, encontrei uma mesa recoberta de oleado, prateleiras de pinho com louça branca de Barcelos e cadeiras de palhinha, orlando as paredes muito caiadas que davam uma frescura de capela nova.(...) Adiante era certamente o quarto claro e casto de estudante...

"(...) E imediatamente o comparei a uma planta, meio murcha e estiolada no escuro, que fora profusamente regada e revivera em pleno sol.(...) Dos olhos, que na cidade eu lhe conhecera sempre crepusculares, saltava agora um brilho de meio-dia, decidido e largo, que mergulhava francamente na beleza das cousas."

O escritor utiliza, no final do conto, a obscuridade do Jasmineiro, após o abandono por seu antigo morador:

"Ao descer, penetrei no gabinete de trabalho de Jacinto e tropecei num montão negro de ferragens, rodas, lâminas, campaínhas, parafusos. (...)

" A chuva de abril secara; os telhados remotos da cidade negrejavam sobre um poente de carmesim e ouro. "

Outra duplicidade de idéias pode ser notada quanto à superficialidade do Jacinto inicial e a profundidade do último Jacinto.

"(...) Nunca padeceu, nem mesmo na idade em que se lê Balzac e Musset, os tormentos da sensibilidade" Nas suas amizades foi sempre tão feliz como o clássico Orestes. Do amor só experimentara o mel – esse mel que o amor invariavelmente concede a quem o pratica, como as abelhas, com ligeireza e mobilidade. Ambição, sentira somente a de compreender bem as idéias gerais e a "ponta do seu intelecto" (como diz o velho cronista medieval) não estava ainda romba nem ferrugenta..."

No que tange ao conhecimento, Jacinto possui apenas idéias gerais, no amor (que pratica) é ligeiro e móvel, na amizade observa apenas a política e quanto à sensibilidade ele não é atormentado.

A adjetivação dada a Jacinto modifica-se a medida que o personagem sofre as transformações de caráter e comportamento. No início do conto encontra-se: "supercivilizado amigo", "o saudável, rico, sereno e intelectual Jacinto" / "pobre Jacinto" (repetido três vezes) / "Fortunate Jacinthe!", "Jacinto novíssimo", "Bem-aventurado Jacinto!"

Sobre os banquetes de Platão pode-se dizer que, além de Jacinto e seus amigos comerem, trocavam idéias, ou seja, alimentavam corpo e espírito.

Nestes banquetes, servia pratos requintados, adequados ao seu paladar. A mesa era organizada de modo impecável, integrando-se a tudo em sua casa. Apesar de tanto luxo, é possível notar que o singular Jacinto sente falta de algo que não sabe definir. O narrador deixa clara esta necessidade ao mencionar o luxo de águas existentes no Jasmineiro.

"(...) E de águas havia sempre no Jasmineiro um luxo redundante – águas geladas, águas carbonatadas, águas esterilizadas, águas gasosas, águas de sais, águas minerais, outras ainda, em garrafas sérias, com tratados terapêuticos impressos no rótulo..."

Ao inventariar este líquido vital, usando a anáfora, o narrador conduz o leitor a refletir sobre o valor das águas na vida do confuso Jacinto. Objetivamente como instrumento necessário à higienização ao extremo e, inconscientemente, como um tônico, capaz de ajudá-lo a encontrar seu caminho, já que:

"(...) nunca homem deste século batalhou mais esforçadamente contra a seca de viver!"

Ainda, durante o parágrafo do banquete, a narração é feita de maneira extremamente detalhada. O banquete de Platão conduz o leitor a pensar em um ritual religioso. Tudo é perfeitamente preparado, como se fizesse parte de algo maior. Pode-se notar a ânsia de Jacinto por recriar o paraíso. A forma pela qual o banquete era servido, com vários criados

"(...) deslizavam, como sombras fardadas de branco, cinco criados e um pagem preto, à maneira vistosa do século XVIII.",

pratos que eram verdadeiras obras de arte e ascensores para pratos frios e quentes ajudavam, em sua forma de pensar, a montar um ambiente perfeito.

"(...) pela abundância das idéias novas – e juntavam sempre a raridade do sabor à magnificência da forma..."

É curioso o fato de Jacinto organizar tais banquetes e dar-lhes exatamente o nome de banquete de Platão. Ao analisar mais profundamente o uso justamente de Platão, chega-se a uma interessante interpretação. Considerando-se que o conto mostra Jacinto em três partes, cada uma destas pode ser comparada a um do três gêneros da República de Platão.

Na primeira parte, Jacinto se encontra na cidade e divide seu "palco" com a civilização. A partir daí, percebe-se uma fusão sujeito-objeto,

"Começava pelo cabelo... Com uma escova chata, redonda e dura, acamava o cabelo, corredio e louro, no alto, aos lados da risca; com uma escova estreita e recurva, à maneira do alfanje dum persa, ondeava o cabelo sobre a orelha; com uma escova côncava, em forma de telha, empastava o cabelo, por trás sobre a nuca... Respirava e sorria. Depois, com uma escova de longas cerdas, fixava o bigode; com uma escova leve e flácida acurvava as sobrancelhas ; com uma escova feita de penugem regularizava as pestanas. E deste modo Jacinto ficava diante do espelho, passando pêlos sobre o seu pêlo, durante catorze minutos."

sendo que o mundo envolvido ocupa maior espaço do que a pessoa que conta. O narrador não se distingue como entidade específica dentro da obra, e algumas vezes se confunde com o personagem. Apesar de serem desvinculadas entre si, a seqüência de ações sugere uma linearidade que deixa clara a vida de Jacinto até ali. Ao considerar tudo isto, chega-se à conclusão que o quadro apresentado se trata de um gênero dramático; excetuando-se que não ocorre em tempo presente.

Na segunda parte, o personagem é apresentado em um estado de pura emoção. Tudo o que ele sente interiormente se torna claro para o leitor.

"E quem não viu então Jacinto, senhor de Torges, acaçapado à borda da enxerga, junto da vela que pingava sobre o alqueire, com os pés nus encafuados nos grossos socos, perdido dentro da camisa da patroa, toda em folhos, percorrendo na metade do Jornal da Tarde, com os olhos turvos, os anúncios dos paquetes – não pode saber o que é uma vigorosa e real imagem do desalento!"

Ainda se nota uma fusão sujeito-objeto, porém o mundo parece ceder lugar aos sentimentos do personagem. Há grande intensidade de expressão durante esta parte transitória de Jacinto e, apesar de a narrativa possuir um tempo, os sentimentos dão a idéia de um presente eterno. O quadro apresentado se assemelha ao gênero lírico.

Na última parte, tudo se torna mais objetivo. Jacinto possui então uma história

"Não faz a barba. Nos caminhos silvestres pára e fala com as crianças. Todos os casais da serra o bendizem. Ouço que vai casar com uma forte, sã, e bela rapariga de Guiães."

e o narrador participa desta.

"Como ele ,recentemente, me mandou pedir livros de sua livraria..."

Tudo o que acontece parece bem mais lógico, e é narrado em tempo pretérito, caracterizando assim um quadro do gênero épico.

É interessante observar notar que, durante a descrição dos ascensores, o narrador nos fornece uma informação bastante curiosa:

"(...) ambos escondidos por flores tão densas e viçosas..."

Em meio a tanta civilização há um sinal de natureza, embora, exótica. É possível que o sedento Jacinto as tenha incluído do "cenário" do banquete de Platão de maneira inconsciente, já que ele estava tão imerso nas sombras do progresso... dos pessimistas. As flores representariam então o paraíso, pois fazem parte da natureza e não da construção humana. O narrador reforça esta idéia de retorno ao paraíso ao fazer uma associação aos jardins dos prazeres:

"(...) que era como se até a sopa saísse fumegando dos românticos jardins de Armida."

A necessidade de natureza é encontrada também no episódio do fonógrafo quando estão todos fora da casa.

"Era de madrugada. Um fresco bando de raparigas, de volta das fontes, passava cantando com braçados de flores:

Todas as ervas são bentas

Em manhã de S. João..."

As flores estão presentes em todo o conto. As exóticas demonstradas acima, as fantásticas, como as florestas de roseiras mais altas que carvalhos do sonho do narrador e simples como os cravos e a flor de trevo cultivados em Torges. Isso sem contar o nome da casa da cidade, Jasmineiro e o próprio Jacinto, que é o nome de uma flor cultivada nas cidades serranas.

O ponto forte do conto é o humor trazido pela ironia com que o narrador demonstra os fatos.

"... continham vinte e cinco mil volumes, instalados em ébano, magnificamente revestidos de marroquim escarlate."(...)

"percorri, buscando este economista ao longo das estantes, oito metros de economia política!"

"(...) Mas Jacinto e os seus filósofos, lembrando o que o experiente Salomão ensina sobre as ruínas e amarguras do vinho, bebiam apenas em três gotas de água uma gota de Bordéus (Chateaubriand, 1860)"

ou mesmo em cenas cômicas como a do fonógrafo, a imagem de Jacinto escolhendo a escova adequada para pentear os cabelos ou a reação do desajeitado Zé Brás, perguntado sobre os caixotes.

"(...) Os caixotes?! Nada chegara, nada aparecera. E na sua perturbação o Zé Brás procurava entre as arcadas do pátio, nas algibeiras das pantalonas... Os caixotes? Não, não tinha os caixotes!"

As leituras de Jacinto são significativas e mostram a evolução do personagem. Enquanto na cidade vivia

"(...) se repastando de Schopenhauer, do Eclesiastes e de outros pessimistas menores..."

nas serras ele possuía

"(...) o D. Quixote, um Virgílio, uma História de Roma, as Crônicas de Froissart."

D. Quixote, ilustra a vida de Jacinto na cidade. Assim como D. Quixote possuía uma vasta biblioteca (que seria a sua perdição), onde tinha acesso a todos os livros com histórias de cavalaria (homens lutando corpo a corpo) Jacinto possuía uma biblioteca imensa onde existiam

"(...) vinte e cinco mil volumes(...). Só sistemas filosóficos (e com justa prudência, para poupar espaço, o bibliotecário apenas colecionava os que irreconciliavelmente se contradizem) havia mil oitocentos e dezessete!"

Além disso, alguns dos episódios são quixotescos. Havia gigantes no lugar de moinhos:

"Ali, sobre o mármore verde e róseo do lavatório, havia apenas duas duchas (quente e fria) para a cabeça; quatro jatos, graduados desde zero até cem graus; o vaporizador de perfumes; a fonte de torneiras que rebrilhavam e botões de ébano que, de leve roçados, desencadeava o marulho e o estridor de torrentes nos Alpes (...) tarde amarga de janeiro em que bruscamente, dessoldada a torneira, o jato de água a cem graus rebentou, silvando e fumegando, furioso, devastador... Fugimos todos, espavoridos. Um clamor atroou o Jasmineiro. O velho Grilo, escudeiro que fôra do Jacinto pai, ficou coberto de empolas na face, nas mãos fiéis."

Um lavatório é transformado em gigante e diversamente do romance de Cervantes, quem sai todo machucado pelo monstro é o escudeiro. O próprio narrador coloca-se como escudeiro de D. Quixote quando, ao subir a serra atrás de Jacinto, vai no "burro de Sancho".

O Virgílio que Jacinto lê e que não nos fornece o título pode ser As Geórgicas, poema didático em quatro cantos inspirado por Augusto, que desejava incentivar o amor à terra entre os romanos, canta a agricultura e a criação. A obra constitui uma verdadeira epopéia das relações entre o homem e a natureza.

Uma outra possibilidade, talvez a mais satisfatória, é que a obra seja a Eneida, que recebeu este título porque o herói da história é Enéias, filho de Vênus. Na primeira parte do conto civilização, o personagem Jacinto tinha alguns pontos em comum com D. Quixote. O que o diferia deste último é o fato de Jacinto passar grande parte de seu tempo no Jasmineiro, e não ter feito a mesma "peregrinação" que D. Quixote. Ao conseguir se desvincular de sua vida na cidade, ele não mais se identifica com este personagem, pois é capaz de criticá-lo – o que não deixa de ser uma autocrítica, agora de Jacinto – e chega até a rir...

"Daí a pouco, através da porta aberta que nos separava, senti uma risada fresca, moça, genuína e consolada. Era Jacinto que lia o D. Quixote. Oh bem-aventurado Jacinto! Conservava o aguado poder de criticar, e recuperara o dom divino de rir!"

Desta forma, um herói mais condizente à sua situação seria mesmo Enéias. Sendo este filho de Vênus, leva-nos a recordar das duas partes do conto em que esta é citada:

" (...) No alto já tremeluzia uma estrela, a Vésper diamantina, que é tudo o que neste céu cristão resta do esplendor corporal de Vênus!"

"(...) através dum sonho jovial e erudito, ao planeta Vênus"

Além disso, Enéias passa por todos os infernos até que consegue chegar nos campos elísios. O mesmo ocorre com Jacinto, que não possuiu vida até sua chegada em Torges, seu paraíso. Ao final da Eneida, Enéias se casa e funda uma cidade às margens do rio Tigre. Mais tarde, esta cidade vem a ser Roma – o que explica, desde já o terceiro livro na estante de Jacinto. Apesar da menção deste livro ser anterior à parte do conto em que o narrador informa que Jacinto vai se casar, esta parte se encaixa perfeitamente à sua história. O narrador antecipa que

"Decerto crescerá ali uma tribo, que será grata ao Senhor!"

A Cidade e as Serras, Torges se torna Tormes, que é um rio da Espanha – assim como havia na Eneida o Tigre.

Tomando-se a História de Roma, em breves pinceladas, tem-se uma civilização com conquistas cada vez mais numerosas de terras que, ao chegar ao ápice do desenvolvimento nos tempos de Augusto inicia, na queda do Império Romano um retorno à vida rural, pois viver na cidade torna-se impraticável. É o início da Idade Média. Fazendo-se um paralelo seria fácil perceber o interesse de Jacinto na História de Roma.

O quarto livro que Jacinto lê são as Crônicas de Froissart. A idéia de volta a Idade Média não poderia ter sido deixada mais clara. Jacinto está em um local

"(...) onde ainda resta uma torre do século XV..."

e cita um escritor da mesma época.

Finalmente, resta fazer algumas considerações a respeito do romance de Eça de Queirós, A Cidade e as Serras, por tratar-se de uma ampliação do conto "Civilização".

Embora seja uma metalinguagem da mesma história contada em gênero diverso, o autor modifica algumas características importantes do conto.

Um coisa a ser dita sobre o narrador é que, enquanto no romance ele é José Fernandes apresentado desde o primeiro capítulo, no conto o seu nome é citado apenas uma vez e camuflado em um pensamento filosófico.

"Mas que nos importava, de resto, que aquele astro além se chamasse Sírio e aquele outro Aldebarã? Que lhes importava a eles que um de nós fosse José e o outro Jacinto?"

Ficando ainda nos nomes, o da cidade no conto não é citado e a casa da província é Torges. No romance a cidade é Paris e a quinta é Tormes (que é o nome de um rio da Espanha, afluente do Minho).

O narrador d’A Cidade e as Serras conduz a história, mas Jacinto tem também a sua tese a demonstrar. No conto, o narrador indica todos os caminhos. Jacinto aparece apenas como uma cobaia de observação.

CONCLUSÃO

Sobre a reflexão e conseqüente nova tese de Jacinto sobre Schopenhauer e o Eclesiastes, especialmente sobre esse último:

"(...) o israelita, o homem dos Cantares, o muito pedantesco rei de Jerusalém, só descobre que a vida é uma ilusão aos setenta e cinco anos, quando o poder lhe escapa das mãos trêmulas, e o seu serralho de trezentas concubinas se torna ridiculamente supérfluo à sua carcaça frígida."

chegamos à conclusão de que Eça de Queirós, pelas palavras de Jacinto, acaba cometendo o mesmo pecado do homem dos Cantares. Só depois de viajar por vários países por motivos diplomáticos, como um cavaleiro andante; depois de provar todo o conforto da civilização; depois de ter criticado a sua pátria, que afinal tinha o seu próprio modo de viver, especial e único; depois de ter entrado em contato com o mundo intelectual e cultural acumulado até o final do século XIX.; só depois disso tudo e, talvez, querendo para si um pouco de sossego, resolve mudar os seus valores, elegendo o campo e o contato com a natureza como o próprio paraíso que os Jacintos tanto procuram.

E se pensarmos em Jacinto, livre das intenções do narrador José Fernandes, ou do autor Eça, podemos concordar com Antônio José Saraiva:

"(...) O romancista não se demorou o tempo suficiente para ver até quando Jacinto suportaria este novo entretenimento."

 

BIBLIOGRAFIA

 

 

CÂNDIDO, Antônio – Livro do Centenário de Eça de Queirós – "Eça de Queirós entre o Campo e a Cidade" – Edições Dois Mundos – Livros do Brasil, LDA – Lisboa – Livros de Portugal, LDA – Rio

 

CERVANTES, MIGUEL – Don Quijote de La Mancha – Ediciones Olimpia – 1993 – España

 

ESCOREL, Lauro – "Eça de Queirós, Contista" – Livro do Centenário de Eça de Queirós – Edições Dois Mundos – Livros do Brasil, LDA – Lisboa – Livros de Portugal, LDA – Rio

 

MOISÉS, Massaud – O conto Português – Cultrix, Editora da Universidade de São Paulo – SP, 1975

 

QUEIRÓS, José Maria Eça – A Cidade e as Serras – Clube do Livro – São Paulo, 1977

 

SARAIVA, Antônio José – As Idéias de Eça de Queirós – Editorial Inova Limitada – Porto, 1946