MATRIX OU O BEM CONTRA O MAL 04/06/2003 Fui ver o Matrix Reloaded e gostei muito, como também gostei do primeiro filme da série. Hesitei em emitir este comentário, pela mesma razão pela qual não comentei a película anterior: é uma obra ainda inacabada. Depois de ler uma dezena de comentários os mais idiotas sobre esse belo filme, decidi por fim dar o meu ponto de vista. A dificuldade maior está no fato de faltar a última fita da série de um filme que, a cada cena, amplia as informações para o espectador. Os Irmãos Warchowski fizeram uma bela fábula moderna, usando o que há de mais requintado nas técnicas de produção cinematográficas, falando de algo tão antigo quanto a humanidade, que é a questão religiosa, naturalmente enfocando-a sob o prisma da tradição greco-judaico-cristã. Também não tive acesso ao roteiro e só vi a segunda película uma única vez, o que não impede de ter uma visão de conjunto. Na condição de observador interessado em cinema, considero que a obra de arte tem que ser vista enquanto tal, independente das intenções dos realizadores. Vale o que é exibido e visto, o que se conseguiu produzir. Sinto que as críticas vazias dos que acompanham cinema para os meios de comunicação no Brasil, que eu li, devem-se a dois vieses insuperáveis nesses comentaristas. Em primeiro lugar, a ideologia antiamericana, que vê nas produções de Hollywood sempre uma manifestação menor da arte cinematográfica, o que, além de injusto, é falso. É politicamente correto objetar contra os americanos. Uma produção cujo custo supera a casa de centenas de milhões de dólares, usando o que há de melhor em técnicas de cinema, com um elenco de atores de primeiro nível, tem que ter no mínimo respeito. O segundo viés é a má formação dessas pessoas, que nunca estudaram história das religiões e religiões comparadas. Ora, toda grande obra de arte tem que falar desse assunto, senão deixa de ser obra maior. Matrix fala da nossa tradição, da salvação, da mitologia ocidental. Se você não tem esse conhecimento prévio e tende a olhar o mundo apenas com as lupas desfocadas de Marx e Freud, aí trava tudo e as críticas viram uma mixórdia incompreensível, porque seus autores não compreenderam o objeto analisado. O primeiro Matrix mostra um sujeito, Morpheus, que é uma espécie de João, o Batista, em busca do salvador, Neo. Esse personagem é um jovem com uma vida banal, até ser chamado. Não por acaso os nomes: o mundo do sono (sonhos) é a realidade da alma. Deus sempre falou com a humanidade através de sonhos e continua a fazê-lo, mesmo que a humanidade tenha perdido a habilidade de compreendê-los. O universo manifesto é uma ilusão, idéia que tem, concordemos ou não com ela, uma raiz na filosofia ocidental que vem desde Platão. A verdadeira realidade é a realidade da alma. As alegorias usadas pelo filme para falar do duelo entre o bem e o mal são muito apropriadas e criativas. Os críticos materialistas vêem as lutas de Smith e Neo como uma mera dança de lutas orientais estilizadas. Visto de perto, é. À distância, é bem outra a mensagem. Tão bem feitas são as cenas que atraem os jovens. Mas filmes de lutas existem aos montes e não atraem as multidões, donde se conclui que não é a luta, mas o que ela representa na psique das pessoas, o que as leva a querer ver o filme mais de uma vez. O sucesso não ocorre por acaso. Smith é uma excelente metáfora para o Diabo, cujo nome é legião. O mal tem sempre a mesma cara e se multiplica infinitamente. A luta interminável de Neo com Smith é a mesma luta que travamos nós, caro leitor, todos os dias, com a banalidade do mal. É uma luta que nos consome, nos cansa e que nunca acaba, do nascimento à morte. Achei essa alegoria perfeita para falar dessa verdade permanente e não vejo nessa plástica nenhum demérito, não obstante reconhecer que há nela um apelo mercadológico. E daí? O filme tem que se pagar. Achei perfeita também a visão de que a normalidade é composta pelos homens-massa, sem individualidade, meras sombras enfeitadas que circulam sobre a Terra. Quando alguém se torna um indivíduo, vira um pária, passa a viver nas cavernas (Zion), escondido, pois tornou-se diferente. Indivíduos não são tolerados, pois são ameaçadores, pensam e buscam o sentido da vida. É disso que fala Matrix. O mal tem nesses indivíduos o seu inimigo, que precisa ser destruído. O filme pode ser visto também como uma retratação do mistério da morte e do renascimento, que tem na figura de Cristo a sua plenitude. Neo só adquire superpoderes para enfrentar o mal quando morre e renasce, por um ato de amor. Da mesma forma, Trinity, o duplo feminino de Neo, morre e renasce pelo mesmo mecanismo, quando a mão de Neo lhe toca o coração. É a mais velha história mitológica da humanidade. O Diabo no Matrix Reloaded assume a forma de um sujeito afrancesado (Merovingian), O nome não é casual. Os monarcas da cultura merovígia mantiveram as suas práticas pagãs e são uma peculiaridade no mundo cristão europeu. São uma boa representação do poder mundano diabólico e também não casualmente a esposa do personagem chama-se Perséfone, aquela que foi raptada pelo senhor dos reinos inferiores, Plutão, uma das mais antigas representações do Diabo. Não pude deixar de associar também a francofonia do personagem às recentes (e antigas) posições políticas da França no cenário mundial, sempre contra os americanos. A espetada aqui foi muito oportuna. A França, de fato, tem sido maléfica, ficando contra os interesses maiores do Ocidente. No Matrix Reloaded aparece um novo personagem, ampliando a mensagem religiosa, que é o demiurgo, suposto criador do universo manifesto nas versões neoplatônicas ou gnósticas da mitologia ocidental. Neo diante do demiurgo é uma das cenas mais notáveis e desnorteantes. Se o filme acabasse aqui, eu diria: os irmãos Warchowski falharam feio. O gnosticismo é uma doença que acompanha a alma ocidental desde a origem e tem raiz diabólica. Acompanhando a trajetória da narração do filme, todavia, acho que seremos favoravelmente surpreendidos pelo epílogo. Os roteiristas sabem o que fazem e acredito que o mito demiúrgico será desmascarado. É esperar para ver. Uma cena eu achei que ficou fora de lugar, que é a dança em que a multidão de Zion faz, com muita insinuação erótica, durante o coito ritual de Neo e Trinity. Mas nada é perfeito. Ainda espero o epílogo para ver se há sentido para a mesma. Respondendo a pergunta que os críticos não conseguiram responder: Matrix fascina porque fala da alma, do mito ocidental, da mesma história tantas vezes reescrita usando agora de técnica, talento e profissionalismo aplicados ao cinema. Não são as lutas marciais, a beleza dos jovens atores, os efeitos especiais, a alusão à informática e a intensa ação que segura o espectador atendo. Tudo isso, eu diria, é quase uma normalidade em qualquer filme que tenha a pretensão de se consagrar. Matrix se distingue por ir além disso, uma vez que coloca toda a nossa tradição dentro da técnica cinematográfica, em uma trama bem urdida, ainda que incompleta para o público espectador. Caro leitor, veja o filme sem qualquer preconceito. É ótima diversão, que fala de nós mesmos e de nossa rica tradição. --------------------------------------------------- 'MATRIX' DO IMPOSTOR 18/06/2003 Volto ao filme, agora para fazer a crítica à crítica do impostor-mor da imprensa brasileira, Arnaldo Jabor. Seu comentário publicado ontem nos jornais é sobre o Matrix Reloaded, o de sempre: um misto de arrogância, ignorância, antiamericanismo, despeito para com a indústria cinematográfica mais próspera do mundo, niilismo militante, propaganda anti-Bush, tudo em poucos parágrafos. Claro, Jabor não entendeu o filme. Três exemplos: (1)"Os dramas gregos tinham uma função: buscavam a regulação do desejo na polis . Estes filmes buscam a abolição do Desejo e da esperança". Essa frase é um verdadeiro atestado de ignorância. Os dramas gregos falavam da alma do Homem e do processo de revelação da ordem divina, coisa que o freudismo de orelhada de Jabor nem sabe o que é. Quem leu meu texto anterior sobre o 'Matrix' sabe da ênfase que o filme tem na questão religiosa, que passa ao largo do desejo (entendido como concupiscência) e aponta para um epílogo de redenção, uma apologia à tradição greco-judaico-cristã. (2) "O mundo de Bush quer acabar com a grande qualidade da boa democracia americana: a enorme capacidade de se auto-reformar. A nova ideologia da qual Bush é um sintoma quer paralisar qualquer reformismo democrático, se adiantando com uma falsa "denúncia" de direita, excludente, boçalizante, negando a complexidade e a diferença". Que diabos tem a ver Bush com o 'Matrix'? Em uma breve cena aparece a sua foto, associada a Hitler, o que no mínimo mostra que a equipe de produção do filme é democrata e, portanto, injusta com ele. O filme nada fala de formas de governo e menos ainda de democracia. É um caso para se levar ao hospício! Politizar o que não é politizável, é isso que Jabor tenta fazer, pois seus acanhados conhecimentos e seu enganoso referencial de mundo não lhe permitiram produzir mais do que essa cacofonia politicamente correta. (3) "Filmes como "Matrix" mostram que surgiu uma nova mercadoria: a liberdade". Ora, 'Matrix' não fala de sistemas econômicos e, portanto, não fala de mercadorias. A liberdade que tenta expressar é a liberdade do Espírito, algo que Jabor também não sabe o que é. O duelo do Bem e do Mal, é essa a essência do filme. Onde Jabor vê duelos de lutas marciais ele não consegue enxergar a metáfora desse eterno combate na alma humana. A única coisa apropriada no texto é a citação da frase de Norman Mailer: "A shitstorm is coming". Sim, tempestades de merda são os textos obtusos que sua mente fétida tem produzido. Seu texto fede. Caro leitor, lamento pelos termos e pelo tema, mas para mim é difícil ficar quieto diante de tamanha intrujice. Sua crítica é uma aberração, um insulto à inteligência. ------------------------------------------------------ AINDA O MATRIX 23/06/2003 Recebi pela internet o ensaio Wake Up! Gnosticism & Buddhism in The Matrix, de autoria de Frances Flannery & Raquel Wagner (pode ser acessado em vários sítios da internet, como o www.unomaha.edu, no qual os autores mostram que o filme, nas duas primeiras películas, tem, simultaneamente, raízes cristãs ortodoxas, cristãs gnósticas e budistas. Esqueceram de mencionar as nuances fortes da mitologia grega, sem as quais o filme ficaria incompreensível. Na verdade, para um ocidental as visões gnóstica e budista, diante da ortodoxia cristã, se equivalem. A idéia da reencarnação está em absoluta oposição à idéia de ressurreição. Da mesma forma, a idéia de salvação por meio da interferência do Criador, que enviou o seu próprio filho Unigênito para realizá-la, contradiz a fórmula oriental de que se pode salvar pelo mero esforço pessoal. Este é importante para o crsitão, mas sem a graça de Deus nada aconteceria. Eu diria que essa associação do gnosticismo com o budismo faz parte da confusão religiosa do homem contemporâneo ocidental, que desde pelo menos o Renascimento vem tendo cortada a sua raiz com aquilo que é mais sagrado, a tradição que fala do Deus dos nossos pais. E, de certa forma, podemos dizer que o Mal, para o ocidental, pode vir travestido nessas fórmulas religiosas estranhas, um disfarce assumido pelo Negador. O epílogo do filme não poderá escapar a uma tomada de posição e poderá consagrar-se, ou não, de acordo com o caminho que escolher. Se optar pelo caminho reto, tornar-se-á a grande obra do cinema desde a cinematografia de Kubrick. Se não, será mais uma película de puro entretenimento, para divertir a faturar e, por que não dizer?, divulgar o mal e a mentira. O ensaio mencionado traz algumas observações muito interessantes, que escapariam àqueles que não dominam e não têm no inglês a sua língua-mãe. A idéia de que o nome Ander/Son, muitas vezes sublinhada por Smith, é uma forma de grafar a expressão bíblica "Filho do Homem", que aumenta o significado religioso da peça. Da mesma forma, notar que o apelido Neo é um anagrama de "One", o Um, é altamente significativo. O personagem principal, em processo de Individuação, deve ser visto como uma imitação de Cristo. Quero aproveitar aqui para explorar três pontos que deixei de lado nos textos anteriores, O primeiro é a questão da violência, o segundo a questão do poder e o terceiro é a estranhíssima cena em que Neo "acorda", saindo da máquina que lhe toma a energia humana para alimentar a Matrix. A questão da violência, que permeia toda a história, não é apenas comercial. A natureza é violenta, a vida é violenta, a existência é violenta. O próprio nascer e morrer são feitos de forma violenta, com dor. A imagem do uroboro, a serpente que devora a própria cauda, será talvez o maior símbolo dessa violência intrínseca à existência no universo manifesto. A divisão dos seres entre herbívoros e carnívoros é a condenação ao festim diabólico da carne, que exige a morte daquele que deve ser devorado. A última ceia de Cristo, em que pede que seja celebrada a Sua memória, dizendo "isso é o meu corpo e o meu sangue", não deixa de ser a consagração de um espetáculo antropofágico. O filme pratica a violência hiperbólica, mas ela é real, retrata o cotidiano. Alguém já disse que a história do Homem é a história da guerra. A cena inaugural do primeiro filme mostra Smith comandando a polícia e é ele mesmo um chefe de polícia. O mal está encarnado no poder de Estado. Quando Trinity, reagindo, liquida os policiais, ela não matou homens de carne e osso, mas sim, formas variantes de Smith. Matrix é controle e o Estado é controle. A mensagem não poderia ser mais clara: o Mal é o poder e está no poder. Por fim, a cena em que ele "acorda" é uma expressão plástica para a antiga idéia de que o Diabo precisa de sangue humano para sobreviver, é uma espécie de vampiro. Li algumas críticas mentecaptas fazendo conta da produção energética do corpo humano como sendo incapaz de sustentar qualquer coisa, vez que o consumido seria maior do que o produzido. O problema é outro, é simbólico: o Diabo precisa do sangue humano, sem o que não sobrevive. Sem a Humanidade, o Mal desvanece. É pelo Homem que o Mal confronta e nega Deus. Neo liberta-se do mal, que não poderá mais lhe sugar o sangue.É uma bela imagem.