Um anjo à espera do
poeta
por Armelim Guimarães
(do livro inédito "Bernardo Guimarães, o romancista da
Abolição")
Augusto de Lima, conforme deixei lembrado em
capítulo anterior, asseverou que Bernardo Guimarães abandonou o Rio de Janeiro
e regressou ao rincão natal porque um "anjo" o esperava na velha Ouro
Preto. A afirmação é verdadeira. Bernardo, no Rio, já sabia que um
"anjo" o esperava à sombra das torres barrocas. Já na primeira vez
que estivera na capital do Império, lá pressentira que a outra metade de seu
"eu" ficara mesmo na cidade que lhe servira de berço, levando-o a
cantar, na Corte, a Saudade que o arrastava irresistivelmente a sua Minas
Gerais, curto poema, composto em 1858, incluído na coleção
"Evocações":
Vem, ó saudade, toma-me em teu carro,
Em teu regaço leva-me dormindo,
Entre fagueiros sonhos embalado
Por esse espaço infindo.
Leva-me além daquele erguido monte,
Que lá campeia quase que sumido
Nas brumas do horizonte.
Leva-me além; - oh! muito
além ainda;
Do eterno plaino largo campo fende;
E entre escalvadas serranias broncas
O carro teu suspende.
Aí nas abas de sombrio morro
Abate o vôo, e deixa-me nos braços
Daquela por quem morro.
Na lendária Ouro Preto, então a
capital de Minas Gerais, num sobrado da rua São José, em que morava o Dr.
Calixto José de Arieira, uma alegre jovem, moreninha, de cabelos negros, lia
apaixonadamente os "Cantos da Solidão", escritos pelo bardo
conterrâneo. Moça culta, com aquela educação fina dos idos tempos e
apreciadora profunda de poesias, deixando, após meditada leitura, o volume
sobre o piano, disse as suas companheiras, em tom profético:
-- São admiráveis estes versos. Ainda hei de conhecer o seu autor.
Dirigindo-se à Germana, sua irmã, esposa de Calisto, que parecia não se
preocupar com rimas e com harpas, a moreninha retoma o volume dos versos de
Bernardo e principia, em voz alta, com expressão e vida, a leitura do Primeiro
sonho de amor, procurando acordar em sua mana o sentido poético das belas
estrofes.
O Dr. Arieira, grande clínico e famoso cirurgião, seu cunhado, estava
aplicando umas sanguessugas num doente. Embebida na interpretação dos versos,
a moça não fugiria do risonho paraíso de Castália para servi-lo como
enfermeira ou auxiliar.
"As bichas iam saltar da bacia quando o cirurgião pediu:
-- Teresa, ajude-me aqui a segurar isso.
Mas a moça não ouviu, enlevada que estava na leitura dos "Cantos da
Solidão".
-- Ora, volveu o doutor, você está sendo criada com muito mimo. Não vá
acabar casando com um labrego.
-- Não tenha susto, retrucou Teresa, eu vou me casar é com o autor deste
livro.
-- E você o conhece?
-- Ainda não. Mas hei de me casar com ele!"
(Apud Suplemente ao nº 197 do 'Minas Gerais', 1925)
Esse episódio, que não é nenhuma fantasia romanceada, era inteiramente
confirmado por D. Teresa, que sobreviveria a Bernardo a Bernardo em nada menos
de meio século.
E tudo, naquele dia, não passou de animadas brincadeiras, de risos inocentes em
torno da sonhador de amores e de lirismos. Três dias depois, da sacada do
sobrado, a jovem vê passar, do outro lado da rua, um feio homem, de rota
casaca, barba mal cuidada, e que, sem olhar para o chão, caminha
distraidamente. Numa inesperada depressão da calçada, não encontrando apoio
para o pesado pé, e como se impulsionado por um vigoroso sopapo, o homem
cambaleou para a frente, num passo cômico e desastrado.
A moça, que o observa com curiosidade, e que não é outra senão a alegre
Teresa Gomes de Lima, sem o desejar deixa escapar, no entanto, uma estridente
risada, que logo a reprime levando à boca a delicada mão, arrependida do gesto
incivil. O homem feio -- Bernardo Guimarães, já se vê -- pára, olha para a
sacada, pronto para uma tirada malcriada, de que é hábil improvisador. Não
tem tempo para isso, pois, num relâmpago, a jovem risonha sumiu-se da sacada.
Pois se livrou de uma irreverência a senhorita Teresa, já que Bernardo
conquanto calmo e de fino trato, tinha, no entanto, quando se sentia
achincalhado, dos seus repentes desabridos. Conta-se que, em circunstâncias
idênticas, passando o poeta sob a sacada de um sobrado, no Rio de Janeiro, em
companhia de Flávio Farnese, algumas gárrulas moças, nela postadas, deram
estrepitosas gargalhadas. Bernardo deteve-se, olhou severo para as desairosas
beldades que o miravam e exclamou:
-- Oh! belo ornejo! Estou, porventura, vestido de capim?
O incidente com a senhorita Teresa ocorreu numa tarde amena, de quietude apenas
quebrada pelo badalar vindo dos campanários das Virgens do Pilar ou do Carmo, e
de São Francisco de Assis. Germana, que, por trás da janela tudo observou,
opinou:
-- É realmente um mocetão!
-- Qual! Parece um caipira! -- exclamou Teresa.
-- Quê! Não sabes quem é ele?
-- Não.
-- Pois é o noivo que escolhestes!
É Bernardo Guimarães! É o peta dos "Cantos da Solidão", com quem
queres casa.
E o Dr. Laércio Prazeres, casado com Lívia, neta de Bernardo Guimarães, em
uma crônica que, depois de ter a confirmação desses fatos com a própria D.
Teresa, publicou em "A Noite" de 15 de agosto de 1925, assim concluiu:
"O coração de D. Teresa bateu agitado. Pouco depois, numa tarde perfumada
a flor de laranjeira, um belo e forte rapaz levava pelo braço à igreja uma
linda mocinha de cabelos pretos e olhos claros. D. Teresa realizava o sonho
íntimo de seu coração".
O episódio do idílio romântico de Teresa Guimarães tem muita semelhança com
o que ocorreu com a jovem Perronne d'Armentières, bela e nobre, também de 17
anos, que se apaixonou pelo poeta francês Guillaume de Machaut (1300-1377), sem
o conhecer, apenas seduzida pela leitura de versos deles. A diferença está em
que Perrone, ao conhecer pessoalmente a Machuat, estarrecida com o caquético
coringa que via, imediatamente desfez o seu amor, repudiando o velho de 60 anos,
feio como ele só, estrábico e reumático. E se casou com outro. Com Teresa
não foi assim; perseverou na paixão pelo autor dos versos que a inebriaram, e
se uniu ao seu "velho" de 42 anos.
Teresa era filha de Sebastião Gomes
do Val e de Felicidade Gomes de Lima, proprietários da fazenda da
Rancharia, onde residiam, cerca de duas léguas distante de Ouro Preto, à
margem da estrada que ligava a velha Vila Rica ao Rio de Janeiro.
Ninguém ia à capital do Império -- à Corte, como se dizia -- sem passar pela
fazenda do Sr. do Val. "Havia os pousos de parada e pernoite, sendo o
primeiro deles na fazenda da Rancharia ou de Dona Felicidade, antes de
atingir-se o Falcão, a Estrada Real; o segundo pouso no arraial de Cachoeira do
Campo..." (Eponina Ruas, Ouro Preto, Rio, 1950, pág. 203).
Sebastião Gomes do Val era português, nascido na Vila Nova de Santo Antônio
do Famalicão, do distrito de Braga. Viera ainda moço para o Brasil. Dinâmico,
entusiasta da agricultura e da pecuária, atirado ao trabalho, muito prosperou
nas lides da glebas e dos plantéis, tornando-se logo o senhor das férteis
terras da Rancharia. Dona Felicidade, sua carinhosa esposa, longos anos lhe
sobreviveu, falecendo quase centenária, com quase 95 anos. Era viúva quando se
casou com o Sr. do Val. Desses enlaces houve três filhos: Geraldo Gomes de Lima
(do primeiro casamento), Germana Gomes de Lima e Teresa, a admiradora dos versos
de Bernardo Guimarães.
Germana, conforme já se viu, era casada com o Dr. Calixto José de Arieira,
competente esculápio, um dos fundadores da Escola de Farmácia de Ouro Preto.
Do casal Arieira-Germana houve belas e talentosas filhas: Clarinha, que se casou
com Joaquim Júlio dos Santos, chefe de seção dos Correios em Belo Horizonte;
Honorina, casada com Antônio Murta. Uma outra filha casou-se com o
Senador Camilo Augusto Maria de Brito, presidente de Goiás em 1884 [Nota do
editor do site: Armelim não cita o nome dessa outra filha]
Teresa, às vezes, ia para a cidade, deixando a vida monótona da Rancharia,
para passar alegremente suas horas de folga dos estudos com a irmã Germana, no
sobrado da Rua São José, sobretudo agora, que acabava de conhecer o canto da
"Solidão".
Mas... e a risada galhofeira e descortês, na sacada da mansão de Germana?
Isto o próprio Bernardo depois explicaria: "Os lábios de moça amada são
como as pétalas de uma flor, que contém em seu cálice o veneno, que nos mata,
e o perfume, que nos embriaga. O sorriso é o perfume; a risada é o
veneno..." (Maurício, 1941, pág. 235).
A mocinha da Rua São José, de Ouro Preto, era tal qual queria o vate. Menina
alegre, de elevados sentimentos e de pronunciado pendor artístico. Além disso,
era morna clara, a cor da predileção dele, segundo ele próprio revela,
falando de Lúcia, a heroína de "O Garimpeiro": "- Sua tez era o
meio-termo entre o alvo e o moreno, que é, a meu ver, a mais amável de todas
as cores".
Teresa era muito mais moça que Bernardo. Em idade, poderia ser sua filha. O
poeta já andava pelas 42 primaveras, enquanto a leitora dos "Cantos
da Solidão" acabava de completar 17. O famoso boêmio foi um opsígamo.
O amor, dizia Bernardo Guimarães, "é uma chama que o sopro do destino
não pode apagar". ("O Garimpeiro", 1922, pág. 148).
Ele, de celibatário, tornou-se um apaixonado. Por isso escreveria: "Essas
almas, que do alto de sua impassibilidade parecem zombar do poder do amor,
quando chegam a amar, amam uma só vez e com todas as forças, e nelas o gelo da
indiferença é substituído por um fogo devorador. As tempestades açoitam com
mais violência os cabeços altaneiros e inacessíveis. Também as neves perenes
dos píndaros vulcânicos desaparecem submergindo debaixo de torrentes de lava
inflamada." ("A Ilha Maldita", 1931, pág. 133). Tudo isso foi o
que exatamente aconteceu com o autor dessas frases.
Julgava o vila-riquense que a mulher é "uma das mais velas e perfeitas
criaturas", "que Deus criou para amar e ser amada, a mulher que, sem o
amor, é como a caçoula de perfumes, a que o ministro do templo esqueceu-se de
comunicar o fogo santo, que os faz arder e subir em nuvens recendentes a beijar
os pés de Deus". ("O Seminarista", 1931, pág. 31).
Bernardo não se julgava com habilidade para atrair as moças. Ele próprio o
disse, disfarçando-se de Belmiro, na "Rosaura, a Enjeitada", pág.
18. Teve-as, no entanto, o bastante para completar a sedução de seus versos na
alma sonhadora de Teresa. "Seu noivado era interessante. Quem passasse das
sete horas até às nove pela Rancharia, residência de D. Felicidade, havia de
extasiar-se ouvindo o grande poeta brasileiro Bernardo Guimarães, ao clarão da
lua, com voz de tenor bem educada, acompanhado de sua noiva e das famílias dos
Drs. Aroeira e Arieira, na estrada via Rio de Janeiro, entoando canções as
mais belas." (Carlos José dos Santos, op. cit., pág. 20).
O casamento realizou-se em 15 de agosto de 1867, dia em que o vate completava 42
anos de idade. As cerimônias religiosas foram celebradas na igreja de São
José, de Ouro Preto, templo construído pela Irmandade do Senhor São
José dos Bem Casados.
Foi um grande dia de festanças, de assados, de doces, de licores finos, de
danças e de música, de fotos e muita gente na fazenda Rancharia. Como não
podia deixar de ser, lá estavam os Meneses, os Santos, os Andrades, os Moreiras,
os Cattas Pretas, os Lagoas, os Arieiras, os Aroeiras, o clero, as autoridades,
os Hortas, o Presidente da Província Desembargador Elias Pinto de Carvalho, os
Bretas em peso, os literatos e tanta gente mais.
Nada de convites para as festas nas fazendas mineiras! Naquele tempo, a gente
das Alterosas era como uma só família. "Nunca se soube o que é um criado
-- dizia Bernardo Guimarães -- ou o cordão de uma campainha para anunciar para
anunciar uma visita e muito menos um porteiro. Nos dias de regozijo e festa,
principalmente, as portas e janelas estavam francas para os passantes que
quisessem ver ou tomar parte no regozijo, sem que ninguém lhes embargasse o
passo, porque todos eram amigos e conhecidos íntimos." ("O
Garimpeiro", edição citada, págs. 97/98).
Como presente de casamento, o Presidente da Província efetivou o poeta nubente
nas cadeiras de Retóricas e de Filosofia, e ainda de Poética do Liceu Mineiro.
Era um meio de garantir-lhe o panem nostrum quotidianum.
Bernardo Guimarães soube tornar-se
dono de sua admiradora. "Casou-se de um modo romântico -- diz Agrippino
Grieco -- desposando, aos quarenta e dois, certa mocinha que o admirava e
sonhava -- curiosa coincidência -- casar-se com ele". ("Evolução da
Poesia Brasileira").
E Bernardo instalou-se na mansão de Dona Felicidade, numa infinda e doce
lua-de-mel, gozada na paz bucólica da Rancharia. Tempos depois deixou a
casa-grande para ir morar no histórico sobrado das Cabeças, que D. Felicidade
comprou do Padre Manuel da Silva Gatto, neto do sertanista Manuel de Borba Gatto.
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Foi na Igreja São José, em
Ouro Preto, que BG casou-se
com Teresa, em em 15 de
agosto de 1867. No cemitério
da igreja encontra-se a sepultura
do poeta e romancista
Solar onde BG foi morador com Teresa depois de
passar um período na casa dos sogros.
Dona Felicidade, sogra de BG
Neste prédio de Ouro Preto funcionou a primeira Escola de Farmácia do
Brasil; um de seus fundadores foi Dr. Calixo José de Arieira, casado com
Germana, irmã de Teresa, mulher de BG
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