Do livro inédito "Bernardo Guimarães, o romancista da
Abolição"
BG no sertão goiano
Armelim Guimarães
Após ter concluído o curso
jurídico em São Paulo, em 1852, na Faculdade de Direito de São Francisco,
Bernardo Guimarães foi cumprir o seu quatriênio de judicatura em Catalão, no
sul de Goiás. Ficou ali seis anos.
De João Alphonsus, na "Revista do Brasil" (nº 35, de maio de 1941):
"Nomeado juiz municipal e delegado de polícia (ao mesmo tempo) de
Catalão, em Goiás, ali chegou sem ter gasto vintém na viagem: de fazenda em
fazenda, pagava a hospedagem com o poder criador de seu verbo. 'Cada fazendeiro
que o hospedava se encarregava de mandá-lo ao mais próximo, até que ele aqui
chegasse'" (de um artigo de W. Estelita Campos, de Catalão, no jornal
"Araguari")."
Catalão era, naquele tempo, uma cidadezinha morta, com suas casas muitos
dispersas, isoladas pelos desmedidos quintais, assombrados por árvores de
densas franças, fechados por muros de adobe ou cercas de taquaras,
entrelaçadas de trepadeiras, de chuchuzeiros ou de paina de cipó. Em grande
parte, ali vivia gente embrutecida, imbuída das mais absurdas superstições,
educadas então sob a lei da garrucha e da lambedeira, e que só abriu os seus
braços para receber a nova autoridade quando reconheceu que o delegado
recém-chegado era diferente dos demais, "bom de prosa", que não
policiava com ameaças e cadeias. Era um dotô novo, que topava um
desafio à viola ou ao violão, que entrava nas casas até dos mais pobres,
sentava em banquinhos na cozinha, aceitava café em canecas de lata.
[Nota do editor do site: o poeta Fagundes Varela (1841-1875) teria conhecido
BG em Catalão, cidade para onde aquele poeta se mudou em 1851, ficando lá por alguns anos.
BG escreveu um poema em homenagem a Varela]
Naqueles meados do século 19, o banditismo era generalizado nas plagas goianas
e adjacências, e os homicídios bárbaros, como os que, na cadeira de Bonfim,
acabavam de ser praticados por um grupo de mascarados, tornaram-se famosos e
incontáveis por toda aquela vasta região. A época era de temores, de pânico,
de perigos, de intranqüilidade, de sustos, mas também de coragem, de bravura.
Porém não era situação que pudesse preocupar, nem de leve, Bernardo
Guimarães. Ele quando menino e adolescente residira nos sertões do Triângulo
Mineiro, ali pertinho, e conhecia bem o povo da região. Com uma filosofia toda
sua, e ronha muito bem aplicada, nada havia que não superasse.
Bernardo sabia agir com o coração e hábil tato de estrategista. Comia inhame
com melado de rapadura no casebre do cangaceiro, filava o bom fumo goiano do
cabra facínora, ficava até tarde da noite ouvindo, atento, as epopéicas
façanhas do muladeiro destemido, as quais ele aplaudia e incentivava com
gostosas gargalhadas, e, à roda da fogueira, comendo batatas assadas ou jacubas
de farinha de milho, bebendo um golezito da "boa" com o capuava
foragido da polícia, e, usando magistralmente o dialeto da terra, também
contava as suas potocas e corumbambas, inventadas para divertir os turebas, e
acompanhava ao violão o marrueiro contador de prosa e valentias de improvisador
de modinhas.
Tornou-se ele muito logo um confidente, o oráculo, o ídolo daquela gente
labrega e intimorata. Fez sólidas amizades com sanguinários curimbabas de
muitos homicídios no costado, e com surungangas perversos e frios, comparado
aos quais o Lampião seria um santo homem.
Bernardo nos dá conta de algum costume e a compleição do povo catalano que
ele encontrou:
"No sertão, ao cair da noite, todos tratam de dormir, como os passarinhos.
As trevas e o silêncio são sagrados ao sono, que é o silêncio da alma. Só o
homem nas grandes cidades, o tigre nas florestas, o mocho nas ruínas, as
estrelas no céu, e o gênio na solidão do gabinete, costumar velar nessas
horas que a natureza consagra ao repouso. Meus companheiros eram bons e robustos
caboclos, dessa raça semi-selvática e nômade, de origem dúbia entre o
indígena e o africano, que vagueiam pelas infindas florestas que correm ao
longo do Paranaíba". ("Lendas e Romances", págs. 210 e 211)
Milton Pedrosa põe Bernardo a atravessar a nado as águas divisórias
interprovinciais:
"Byroniano como poucos foi de verdade Bernardo Guimarães. Se Byron
atravessara os Dardanelos para passar a noite com a amada na Turquia asiática,
o poeta do O devanear de um céptico, bom nadador,
nos seus tempo de solteiro, juiz municipal em Catalão, fronteira de Goiás,
estivesse o Paranaíba calmo ou envolto, atravessava-o a nado para dormir em
Minas Gerais". ("Vamos ler!", de 27-4-1944)
É possível que tal façanha acontecesse, mas e o barqueiro Cirino, um dos
companheiros do poeta e romancista? Pois Cirino lá estava, à beira do rio
sempre pronto a servi-lo com sua canoa.
"De bom grado -- diz Bernardo Guimarães falando de Cirino -- eu o
compararia a Caronte, barqueiro do Averno, se as ondas turbulentas e ruidosas do
Paranaíba, que vão quebrando o silêncio dessas risonhas solidões cobertas da
mais vigorosa e luxuriante vegetação, pudessem ser comparadas às águas
silenciosas e letárgicas do Aqueronte." (Lendas e Romances", pág.
211).
Para um jovem recém-formado, a vida no mato e no meio de jagunços não era
coisa fácil. Requeria têmpera e fibra, ou, então, muito jeito. Mas o jovem
bacharel mineiro sabia admiravelmente compreender a manha daquele povo e
harmonizar-se com ela, o que era o mais difícil.
"Graduado em Direito em 1852, doze anos após o irmão Joaquim
Caetano, na mesma Faculdade de São Paulo, Bernardo Guimarães
começou a galgar as asperezas da vida , mais cruciante para um moço pobre e
sem pai alcaide. Tinha de nascer de si mesmo, para lembrar-nos de uma expressão
de Tácito, criar-se na luta, sagrar-se no merecimento". (Escragnolle
Doria, "Bernardo Guimarães", no livro "Minas Gerais em 1925, de
Victor Silveira, pág. 409).
"Depois de entrar na vida prática, perdeu o gênio folgazão, tornou-se
taciturno e contemplativo, viveu em isolamento, curtiu as agruras da miséria,
deixou crescer a barba, tinha cabelos compridos, em desalinho, a roupa mal
cuidada e o desanimo do seu espírito. Perdurou-lhe o vício de intemperança,
contraído no tempo de acadêmico, para imitar Byron, Musset e Espronceda."
(Artur Motta, "Bernardo Guimarães", na "Revista do Brasil",
nº 49, de janeiro de 1920, pág. 58).
Azarado Bernardo Guimarães! Como tem sido incompreendida sua boêmia!
Não há quem fale dele que não o meta em borracheiras em todos os dias de sua
vida! Querem mesmo que ele seja o eterno pau-d'água, embora desmintam essa
exagerada acusação as excelentes obras literárias que ele produziu, só
possível a um cérebro sadiamente equilibrado. Lembrar as moafas de Bernardo e
citar Byron como padrão de sua vida, tornaram-se lugar-comum para todos os
maria-vai-com-as-outras, que desejam mencioná-lo sem conhecer realmente o
verdadeiro Bernardo Guimarães. Já se pode negar que, depois, ele sempre gostou
de um moderado aperitivo, e às vezes, de um bom vinho à mesa, hábito e prazer
iguais aos de tantos e tantos varões ilustres e respeitados, de inequívoca
moral. Por que Bernardo Guimarães deva ser um ente à parte? Só para
enxovalhá-lo?
No longínquo sertão goiano não se encontravam os melhores vinhos, não se
conseguia um "Chateau Margot" ou um "Sautern". Tinha-se que
contentar com um zurrapa de ignorada ou duvidosa procedência. Em compensação,
havia a excelente caninha dos alambiques da terra, de sabor que só mesmo os
hábeis goianos conheciam, do qual tinha o segredo. Como era a mesa ali servida
com companhia de tropeiros, Bernardo a reproduz no romance O
Ermitão de Muquém, na página 15 da edição de 1928.
Referindo-se ao romancista mineiro, assim escreveu Coelho Neto:
"Andejo e verdadeiramente amante da natureza e dos simples, o seu prazer
era trilhar as serenas estradas sertanejas, pousar nos ranchos onde soava a
viola, à beira do fogo contava históricas do velho tempo. É um dos primeiros
na escala dos escritores nacionalistas que trouxeram para a literatura as
belezas selvagens de nossa Pátria e os costumes de nossa gente do
interior." ("Compêndio de Literatura Brasileira", págs. 113 e
114, da edição de 1929, Livraria Francisco Alves).
Bernardo Guimarães em Catalão fora recebido de braços abertos pelo Coronel
Antônio da Silva Paranhos, formosa inteligência, cidadão daquela integridade
à antiga, chefe do Partido Liberal do município e fazendeiro de dilatado
prestígio político, tendo sido, por várias vezes, deputado provincial dm
Goiás e senador na primeira legislatura republicana. Paranhos era um português
culto e apreciador das belas-letras. Muito se afeiçoou ao vate de Minas, ao
qual franqueou a sua casa, proporcionando-lhe nababescamente hospedagem durante
o tempo em que o bardo ali esteve.
Era em casa do Coronel Paranhos que Bernardo entrava nas brincadeiras familiares
e nas rodadas inocentes do voltarete e da vermelhinha, de que participavam
também o padre e o boticário. Até algumas ceias e danças civilizadas o
ilustre anfitrião fazia realizar no enorme salão de sua residência, a que
"não faltava a quadrilha marcada em francês, o cotilhão, o minuendo e a
gavota, o que não era nada pouco para o lugar e a época" (Sousa Ataíde)
Uma tarde, em Catalão, Bernardo Guimarães recebeu a triste notícias do
falecimento, no Rio de Janeiro, de Álvares de Azevedo. Aquela noite passou-a
compondo um longo poema em homenagem ao amigo morto. Enviou-o imediatamente ao
"Jornal do Comércio", da Corte. Porém, por motivo que se ignora, tal
composição nunca foi publicada.
Malograva estava a idealizada antologia "As três liras", livro que
Bernardo, Álvares e Aureliano Lessa, inseparáveis amigos na época que
estudaram na Faculdade de São Francisco de São Paulo, pretendiam publicar.
Só então é que o bardo mineiro se lembrou de um baú que continha inúmeros
rascunhos de versos, inclusive alguns originais de Álvares de Azevedo, muitos
dos quais eram destinados às "Três Liras". Esse velho cofre
esquecera-o em seu quarto, na rua dos Bambus, em São Paulo. Escreveu ao
Hilário Gomes de Castro, pedindo-lhe a remessa daquele papéis. O portador
voltou com o recado de que as Vidais, na cada das quais BG morou por um certo
tempo na Paulicéia, meteram fogo em tudo aquilo, num assomo de asseio e
vandalismo.
Quando não estava produzindo literatura, e fora das horas de expediente como
juiz municipal e como delegado de polícia, punha-se, de cócoras, a fumar
cachimbo ou cigarro de palha, à roda das fogueira ou do poiá de quintal, para
ouvir confidências de crimes, espontaneamente revelados pelos facínoras frios,
aos quais o poeta aconselhava muita prudência, pois "a justiça poderia
tomar conhecimento daquilo".
Em dezembro de 1854 – ou meados de 1855, segundo Sousa Ataíde – Bernardo
Guimarães regressou a Ouro Preto.
Os cabras goianos, como prova de grande e sincera amizade, oferecerem-lhe um
presente que lhe agradou: um belo cavalo branco, palafrém novo e alto, legítimo
frisão de linhas impecáveis, e todo arreado com sela de santo-antônio de
preta, nova em folha, e loro, caçambas, atafal e demais pertences ainda sem
uso, coxinilho artístico, luxuoso baixeiro e até um rebenque de castão de
marfim. E o lindo animal já tinha nome: era o Cisne. E o invejável corcel foi
o grande companheiro do escritor nesse seu regresso à terra natal. Tão bons
serviços lhe prestou, e tão
intensamente passou a estima-lo, que ele dedicaria um poema, o Adeus a meu
cavalo branco chamado Cisne, marcando mais um episódio curioso na vida de
Bernardo. Esse poema foi inserto nas “Poesias Diversas”, editadas em 1865.
Joaquim
Caetano, o irmão mais velho do boêmio menestrel, desde 1853 se encontrava
nomeada Juiz de Direito do Rio Grande, comarca mineira. O mano Manuel, que era
padre, ficara na Paulicéia, terminando o curso jurídico.
Artur
Motta, na “Revista do Brasil” (nº 49, de janeiro de 1920), assinala a
passagem de Bernardo por Formiga, no seu regresso de Goiás. As paisagens que o
romancista contemplou nesse largo percurso acham-se descritas por ele em “O
Garimpeiro”.
Conta-nos
João Alphonsus:
“Ainda
em novembro de 1942, na cidade mineira de Patrocínio, o escrivão do crime José
Elói dos Santos lamentou que não tivesse aparecido por lá dois anos, porque
encontraria ainda a casa da Quininha, onde Bernardo Guimarães passara oito
dias, oito noites, na sua viagem para o juizado de Catalão, em Goiás, em 1852
ou 1855 (em 55, quando de lá regressava). Homem de 60 anos, Elói se lembra de que o tabelião Quinca Pedro e
o contador José Marçal, este chefe da Corporação Musical Santa Cecília, já
falecidos, costumavam recordar a estada de Bernardo, recordando passagem de “O
Garimpeiro”, romance documentado nas datas diamantíferas que se estendem dali
para Coromandel, Monte Carmelo, Bagagem (hoje Estrela do Sul), até Catalão...
Que romance!” (“Posição Moderna de Bernardo Guimarães”, suplemente
literário “Autores e Livros”, de “A Manhã”, Rio de Janeiro, 14-3-1943,
pág. 133).
Eis,
finalmente, Bernardo Guimarães de novo em Ouro Preto, na sua lendária e
saudosa Vila Rica de antanho, onde foi encontra o velho genitor já bastante
abatido pela idade e por enfermidades.
Conquanto
quase octogenário, João Joaquim
da Silva Guimarães, estimado e influente chefe político, ainda tomara, em
1854, assento na Assembléia Legislativa da Província, para o biênio 54-55,
junto com o seu grande amigo Dr. Agostinho José Ferreira Brettas, com Francisco
de Assis Ataíde, com o Barão de Itavera, com Rodrigo José Ferreira Brettas e
com seu filho, padre Manuel Joaquim da Silva Guimarães.
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O poeta Fagundes Varela
(1841-1875), acima,
teria conhecido BG,
no sul de Goiás
Joaquim Caetano (1813-1896),
acima, irmão de BG, também
formou-se em Direito em SP
Álvares de Azevedo
(1831-1852), acima
morreu quando BG
estava em Catalão
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