Nos saraus de Otaviano
Armelim Guimarães
(do livro inédito "Bernardo Guimarães, o romancista da
Abolição")
Em 1863, regressando de Catalão, sertão de
Goiás, enojado da política e da politiquice trambiqueira, e já enfastiado de
tramitações forenses, permaneceu algumas semanas em sua velha Ouro Preto. De
lá partiu para a Corte. Iria tentar novamente o jornalismo. Em janeiro de 1864
já estava novamente no Rio de Janeiro. Prova-o a sua poesia Sirius, escrita
naquele mês e ano na capital do Império. Nessa composição, incluída no
volume "Poesias Diversas", o citaredo mineiro se manifesta apavorado
com o calor da urbe carioca, com o verão bravo que principiava, a canícula
senegalesca que passava de 40 graus:
Canícula feroz em céu de bronze
Frenética esbraveja;
E contra nós de seus ardentes fogos
Todo o furor dardeja.
.....................................................
Nem uma nuvem, que amorteça os raios
Que vibra o sol ardente;
A esfera se tornou urna de fogo,
Fornalha incandescente.
Debaixo deste ar quente e pesado
O mar no leito ofega,
E se espreguiça lânguido na praia,
Que tépida fumega.
Até as ramas dos copudos bosques
Perderam seus frescores;
E a brisa frouxa mal meneia as asas
Repassadas de ardores.
A noite não traz mais nas asas úmidas
Benigno refrigério;
E com abafador espesso manto
Cobre nosso hemisfério.
A água da fonte, que serpeia morna,
Já nos não mata a sede:
E nem fresco repouso achar podemos
Na preguiçosa rede.
Mudo e triste co'as asas descaídas
Arqueja o passarinho;
O viandante exausto desfalece
Em meio do caminho.
O pobre lavrador esbaforido
A custo brande a enxada;
E de estéreis suores em vão rega
A terra abraseada.
............................................
E já não há sorvete, banho ou ducha,
Que um pouco refrigere
O fogo que o malvado sol dos trópicos
Sem compaixão desfere.
Sirius, tu que és a estrela mais
formosa
Do cristalino assento,
A jóia mais brilhante que se engasta
No azul do firmamento,
Por que tanto flagelas com teus fogos
A triste humanidade?
De um povo que em suores se derrete
Por que não tens piedade?
.............................................
Mas por piedade, ó Sirius, não nos queiras
Matar a fogo lento."
Se o estilo no Rio de Janeiro tanto o castigava, a ponto de a torreira carioca
levá-lo a compor um poema, em compensação a metrópole imperial o deslumbrava
com seu cenário natural, com suas enseadas e praias e encantos insuportáveis,
com seus morros pitorescos e picos escarpados, e seu mar, esse colossal
ornamento que não existe no sertão.
Sentiu-se o poeta atraído pela beleza da baía de Botafogo, e compôs, naquele
mesmo ano de 64, o longo poema de sabor épico, em 12 partes ou cantos, e não
faltando as alusões mitológicas conforme o gênero exigia, com pintou, em
versos brancos em "À baía de Botafogo", esse encantador quadro vivo
da paisagem do Rio:
"Golfo sereno que no teu
regaço
A fronte espelhas de escalvados serros,
E soluçando pelas curvas praias
Límpidas ondas preguiçoso estiras;
Vales sombrios de perene esmalte,
Que em caprichosos giros coleando
Vos escondeis nas dobras da montanha
Entre muralhas de empinadas rochas;
Lindas encostas, cômoros viçosos,
Que o rico manto de verdura e flores
Alardeais à luz de um céu formoso;
Negros penhascos, arrojados píncaros,
Que mergulhais as enrugadas frontes
De luz dourada em vislumbrante pego;
Dizei, não éreis vós mansão querida
Do gênio, que Deus pôs guardando a entrada
Das vastas solidões americanas?
Não era aqui seu templo?... estes penedos
Que se perdem no azul do firmamento,
Quais os braços da terra, que estendidos
Como em solene prece a Deus se exalçam,
Não eram os altares sacrossantos
Sobre os quais a opulenta natureza,
Que o seio anima ao trópico fecundo,
Aos céus erguia as oblações da terra?
....................................................
Por esses troncos vagas hamadríadas
Recatam seus encantos; essas fontes
No seio abrigam náiades mimosas,
Que sem temer os atrevidos faunos
Os torneados membros de alabastro
Tranqüilas banham no cristal brilhante.
Se o triste Acteu aqui surpreendesse
Diana a se banhar na clara fonte,
Não fora transformado em feio lobo,
Nem pelos cães famintos devorado;
Mas primeiro de amores morreria.
Não é mister aqui que o belo Adônis
De suas rotas veias verta o sangue
Para dar cor às pudibundas rosas.
Por estes vales Eco só repete
Festivos sons, sem nos lembrar a história
De seu nefasto amor; e nunca mesmo,
Ao mirar-se no espelho destas fontes,
Os Narcisos em flores se convertem,
Por mais que de si mesmos se namorem.
Pode Leda vagar por essas praias
Sem recear os disfarçados cisnes;
Nem os touros aqui por mar em fora
Soem levar as descuidadas ninfas.
Nestas fecundas, venturosas plagas,
Não têm domínio vingativos numes,
Nem malfazejas fadas nelas reinam
Aqui somente a próvida natura
Das engenhosas artes ajudada,
E sem auxílio de sonhados numes,
Prodígios gera, como a Grécia nunca
Em seus mais belos sonhos fabulara.
Vede aquele rochedo, que isolado
Com temeroso vulto se levanta
Por sobre as águas; __ atalaia eterna,
Que nos céus embebendo a fronte imóvel
Ampara as terras e vigia os mares.
Ei-lo campeia, qual o negro eunuco,
Ali postado, taciturno e quedo,
De harém vedado defendendo a entrada.
Junto a seus pés as ondas marulhosas
Com medonhos bramidos rebentando
Na rocha nua, as bases lhe debruam
De um cinto de alva espuma
Sobre "À baía de Botafogo", diz Sílvio Romero: "É a mais
significativa obra poética do nosso mineiro; é uma das melhores da língua
portuguesa". ("História da Literatura Brasileira", 1903, 2º
vol., pág. 230).
Assim, estranhando o causticante clima do Rio de Janeiro, mas enlevado com os
encantos da "cidade maravilhosa", lá estava Bernardo Guimarães em
1864 para, mais uma vez, tenta ali o panem nostrum quotidianum como
jornalista.
Desta feita, a Corte o recebia com viva curiosidade, não só por motivo da
popularidade de suas produções literárias, como ainda pelos recentes
acontecimentos de Catalão, então amplamente comentados entre a sociedade
carioca. [leia: De volta ao sertão goiano
(ou o "jubileu" em Catalão) ]
A "Atualidade" mudara de donos. Dirigia-a, agora, Lulu Barbosa, isto
é, Luís Barbosa da Silva, também advogado pela Academia de São Paulo. Seria
dois anos depois, em 1866, o Presidente do Rio Grande do Norte. Mais tarde
ainda, com o concurso de Bernardo Guimarães, realizaria Lulu Barbosa a
revolucionária "República", revista do Clube Republicano, a qual, em
pleno regime monárquico, tornava-se um empreendimento, sem dúvida, ousado e
perigoso.
Lafayette Rodrigues Pereira, o leal e sincero amigo do boêmio mineiro, já não
se encontrava no Rio de Janeiro; havia seguido para o Norte, pois aceitara a
administração do Ceará. Ao lado de Flávio Farnese, no mister da imprensa
periódica, estava, em compensação, o Pedro Luís de
Sousa. A "Atualidade" não parece ter vivido muito além dessa
época, e o convívio do bardo de Ouro Preto, na Corte, com o festejado épico
de Os Voluntários da Morte, não deve ter sido longo, pois Pedro Luís era bem
mais político que poeta.
O jornal de Flávio Farnese contou ainda com a colaboração de Limpo de Abreu,
informa Almeida Nogueira nas suas "Tradições e Reminiscências", no
vol. 3º, pág. 278.
Bernardo Guimarães, porém, desta feita não estava na Corte para trabalhar na
"Atualidade", mas para integrar a equipe do "Jornal do
Comércio", como cronista político, no Senado Federal. De juiz municipal e
delegado de polícia no Brasil central, agora se tornava comentarista de
atividades legislativas.
Foi quando o escritor mineiro fez amizade, e mesmo intimidade, com Machado de
Assis, seu colega de reportagens parlamentares.
Que seja o próprio autor de "Yayá Garcia" que nos fale a respeito:
"Estas minudências, agradáveis de escrever, sê-lo-ão menos de ler. É
difícil fugir a elas, quando se recordam coisas idas. Assim, dizendo que no
mesmo ano, abertas as Câmaras, fui para o Senado, como redator do "Diário
do Rio, não posso esquecer que nesse ou no ouro ali estiveram comigo Bernardo
Guimarães, representante do "Jornal do Comércio", e Pedro Luís, por
parte do "Correio Mercantil", nem as boas horas que vivemos os três.
Posto que Bernardo Guimarães fosse mais velho que nós, partíamos irmamente o
pão da intimidade. Descíamos juntos àquela Praça da Aclamação, que não
era então o parque de hoje, mas um vasto espaço inculto e vazio como o campo
de São Cristóvão. Algumas vezes íamos jantar em um restaurant da Rua
dos Latoeiros, hoje Gonçalves Dias, nome este que se lhe deu por indicação
justamente do "Diário do Rio"; o poeta morara ali outrora, e foi
Muzzio, seu amigo, que pela nossa folha o pediu à Câmara Municipal. Pedro
Luís não tinha só a paixão que pôs nos belos versos à Polônia e no
discurso com que, pouco depois, entro na Câmara dos Deputados, mas ainda a
graça, o sarcasmo, a observação fina e aquele largo riso em que os grandes
olhos se faziam maiores. Bernardo Guimarães não falava nem ria tanto,
incumbia-se de pontuar o diálogo com um bom dito, um reparo, uma anedota. O
Senado não se prestava menos que o resto do mundo à conversação dos três
amigos." (Machado de Assis, "Páginas Recolhidas", edição M.
Jackson, 1946, págs. 150/151).
Em 1864, portanto, estava o poeta mineiro presente a todas as sessões do
Senado, de lápis em punho, anotando, para transformar em notícias, a fala da
alta casa legislativa do Império. Ao seu lado estavam Machado de Assis e Pedro
Luís. Com eles partia-se "irmamente o pão da intimidade", conforme
declara o autor de "Dom Casmurro".
"Decididamente, a carreira abraçada não se ajustava, de maneira alguma,
à índole do escritor", observou acertadamente um cronista do
"Correio da Manhã", de 10 de dezembro de 1955, na seção "Vida
de Escritores", falando de Bernardo Guimarães.
Bernardo, agora, não estava na Corte para "descer a ripa" nos mais
incensados literatos, mas nem por isso deixava de ser o independente de sempre.
Não se sujeitava a praxes, a escolas, a conveniências políticas, a
turíbulos... Esse sentimento de liberdade ele o proclamaria na dedicatória de
um retrato oferecido a seu amigo José Florêncio:
"Amigo, não faças caso
Deste retrato tão feio.
Ele é meu, e não alheio;
Eu sou um soldado raso;
Porém, se feio é o vaso,
O conteúdo é bonito...
Eu sou um pobre proscrito,
Que só, no meio da calma,
Solto um brado de minha alma:
-- Independência! -- eis o meu grito."<
Bernardo só não se sentia um independente diante da amizade. Era sinceríssimo
com os seus íntimos. Aí, então, se tornava pequeno, todo escravo. Já o
notara o presidente de Goiás, José Martins Pereira de Alencastre, por ocasião
do rumoros "jubileu" [leia: De volta ao sertão goiano
(ou o "jubileu" em Catalão]. Carlos José dos
Santos, alter ego do vila-riquense, no seu opúsculo "Bernardo Guimarães
na Intimidade", cita textos clássicos, de Cícero e de Ovídio; lembra
Pitágoras e São Jerônimo, tudo isso para bem salientar o amigo que foi o aedo
das Alterosas.
Além de Flávio Farnese, Machado de Assis e Pedro Luís, desta feita foi bom
amigo de Bernardo, no Rio de Janeiro, Francisco Otaviano de Almeida Rosa. A
residência de Francisco Otaviano, em São Cristóvão e, depois, no Cosme
Velho, era um estupendo silogeu, para o qual eram atraídos grandes amantes das
letras. O homem nem quis ser ministro, para não ver roubadas suas horas
consagradas às artes.
"Bem é que a política foi fenecendo dia a dia na vontade, na energia, na
fé, na inteligência de Otaviano, para que seu salão se tornasse cada vez mais
literário. Recordar os freqüentadores seria um nunca mais acabar de nomes:
Alencar, Macedo, Tavares Bastos, Machado de Assis, Paranapiacaba, Bernardo
Guimarães, França Júnior, Pinheiro Guimarães, Rozendo Muniz, Teixeira de
Melo, Joaquim Nabuco, Luís Guimarães, Joaquim Serra, José Bonifácio, Taunay,
Melo Moraes Filho, Salvador de Mendonça... uma academia." (Wanderley
Pinho, "Damas e Salões no Segundo Reinado", 2ª edição, págs. 238
e 239).
Naquela temporada na Corte, foi ainda bom amigo de Bernardo Guimarães o velho
Baptiste
Louis Garnier. Não era uma aproximação propriamente intelectual, mas
comercial.
O venerando francês, um homem probo e dinâmico, tornou-se o mais popular e o
mais conceituado editor daqueles dias, no Rio de Janeiro. Sua livraria ficava na
rua do Ouvidor, 71.
Os livros que editava eram impressos na França. "Os seus catálogos estão
cheios dos nomes principais, entre os nossos homens de letras. Macedo e Alencar,
que eram os mais fecundos, sem igualdade de mérito, Bernardo Guimarães, que
também produziu muito nos seus últimos anos, figuram ao pé de outros, que
entraram já consagrados, ou acharam naquela casa a porta da publicidade e o
caminho da reputação". (Machado de Assis, "A Semana", edição
Jackson, 1946, 1º vol., pág. 105).
Em 1865, Garnier lançou as "Poesias" de Bernardo, volume a que o vate
ajuntou as duas obras de versos publicadas anteriormente, os "Cantos da
Solidão" e as "Inspirações da Tarde", e mais ainda as duas
novas coleções das "Poesias Diversas" e "Evocações", e
ainda o poema "A baía de Botafogo".
Em Evocações, o vate de Ouro Preto "rememora uma caçada de veados e um
combate de touros, episódios em que tomou parte ou a que assistiu nos remotos
rinções de Goiás. É um poema longo e que revela a facilidade descritiva do
homem de talento, a quem a solidão inspirou e a quem a nossa natureza, pródiga
de cantos e cores, forneceu sons à tiorba e tintas de todos os matizes à
paleta". (Basílio de Magalhães).
Bernardo Guimarães não conseguiu adaptar-se à vida da capital do Império.
Ali nada o atraía, nem mesmo os salões elegantes, as reuniões de Otaviano, as
falas do Senado, o teatro, a Augusta Candiani no desempenho da
"Norma"; a Emília das Neves no seu famoso papel de louca; a Gabriela
da Cunha como "Dama de S. Tropez"; a Adelaide Amaral, no Ginásio,
vivendo a "Dama das Camélias"; o "Orfeu dos Infernos", de
Offenbach, no Alcazar; Tabachi e Pozzolini em "Ernani"... Nem ainda
memoráveis sucessos, tais como o balão de Wella, a estrada de ferro de D.
Pedro II, os festejos pelo casamento da Princesa Isabel com o Conde d'Eu. Nada
disso o atraía! Acima de todos esses belos acontecimentos da metrópole estava,
vinculado ao coração, à alma, ao sangue de Bernardo Guimarães, o viver
despreocupado dos sertões e das velhas cidades do interior mineiro.
Nem mesmo o jornalismo profissional casava com o temperamento do poeta.
Faltava-lhe, para isso, como bem disse Agrippino Grieco, "a flexibilidade
na pena e na espinha dorsal". ("Evolução da Poesia Brasileira",
1947)
No seu discurso proferido na Academia Brasileira de Letras, disse Augusto de
Lima:
"Cercado de amigos e admiradores, nada faltava aqui a Bernardo Guimarães
para prosseguir brilhante na sua carreira de jornalista ou literato. Mas de novo
o envolveu a lembrança do sertão, a nostalgia das suas montanhas natais, do
convívio patriarcal da sociedade ouro-pretana. Não houve meio de retê-lo
nesse vôo libertador da atmosfera de imprensa, que ele pintara com um pesadelo
nos admiráveis versos do Dilúvio de Papel. Um anjo o
esperava na terra natal..." (Suplemento Literário "Autores e
Livros" de "A Manhã", de 14 de março de 1943).
Realmente, havia um anjo à sua espera, na vetusta e lendária Ouro Preto, um
anjo que sobremaneira o admirava pelo talento e pela inspiração poética,
embora ainda não o conhecesse pessoalmente.
Além desse anjo, o torrão das alterosas puxava-o para lá pelo forte imã da
saúde, conforme no poema Nostalgia, composto ainda no Rio de Janeiro, em 1864:
Ah! por
que vindes me sorrir agora,
De meus campos natais doces lembranças,
E nest'alma, que em vão por eles chora,
Reavivar as mortas esperanças?
Por que me trazer à mente esmorecida
Miragens da ventura já perdida?...
...........................................................
A nuvem que desponta aurirrosada
Por trás daquela erguida serrania,
E a viração macia,
Que de lá vem de aromas saturada,
A vaga que com brando rumorejo
Na branca praia deposita um beijo;
São mensageiros que de lá me
envia
O meu país amado;
São vozes que à porfia
Me dizem com acento entrecortado:
"Volta aos teus montes, volta aos lares teus,
E à terra estranha dize eterno adeus.
"Vai; - lá sorri-te bela a
natureza
Trajada de esplendores
..............................................................
E estas tristes vozes dentro d'alma
Vêm ecoar-me em minha soledade,
E sem ao pensamento dar-me calma
Me fazem mais sentir cruel distância,
E avivam-me a saudade
Do formoso país de minha infância...
..............................................................
Brisas do mar, transponde as altas
serras,
Ide adejar no meu país amado,
E a essas longes terras,
De que hoje me separa um cruel fado,
Levai nestas endeixas
Minhas saudades, minhas tristes queixas.
O poema, composto de 24 estrofes, é um panegírico de seu "país
amado", isto é, de sua Minas Gerais, e a revelação da saudade que o
abatia.
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Machado de Assis (foto)
conviveu com BG no
Senado, no Rio, onde
ambos trabalhavam
como jornalistas
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