Capítulo
27
do livro inédito
"Bernardo Guimarães, o romancista da
Abolição"
"Pollice
Verso"
Armelim Guimarães
A fatalidade espelha-se no quadro de Gerôme. A Parca, empunhado a gadanha
à beira do leito de Bernardo Joaquim da Silva Guimarães, no sobrado do Alto
das Cabeças, em Ouro Preto, interroga as vestais do fadário, e elas decidem
voltando o polegar para baixo...
É Carlos José dos Santos quem nos
conta que tivera com o seu grande amigo:
"Além das lições que dava, de Latim, Francês e História, (Bernardo)
falava-me sempre do Evangelho. Um dia, não se exprimiu bem sobre o mistério da
transubstanciação de Nosso Senhor Senhor Jesus Cristo. Deixou, pela
fisionomia, transparecer que não compreendia. Pois bem: na madrugada do dia 15
(aliás, 10, de sua morte, apareceu-me em sonhos, dizendo-me:
Eis a Hóstia Sagrada
Feita de Nosso Senhor;
Trazida nas asas da morte,
Trazida nas asas do Amor!
"E eu perguntei-lhe, no sonho:
- Feita de Nosso Senhor, ou por Nosso Senhor?
- De Nosso Senhor, respondeu.
Morei sempre com Bernardo Guimarães e nunca pude aprender a fazer um verso.
Entretanto, esta noite, ele veio recitar esta quadra --e repeti os versos. No
mesmo momento, uma pessoa falou na rua ao Manuel dos Santos Leal:
-- Morreu Bernardo Guimarães.
"Ao meu coração católico
sincero, e sincero amigo do saudoso poeta, glória de Minas, é particularmente
grato lembrar que Bernardo Guimarães, ao pressentir aproximar-se a morte,
pedira fervorosamente os sacramentos da Igreja, que ele sempre respeitou e
admirou. Morreu, pois, como sábio verdadeiro, legando à posteridade em claro
exemplo de humildade cristã e um nobre modelo de filho obediente da Igreja de
Jesus Cristo." ("Bernardo Guimarães na Intimidade").
Realmente, Bernardo sempre foi católico convicto e sincero, e tinha grande
admiração pelo irmão Padre Manuel, pelo inatacável sacerdócio que este
sempre exerceu piedosamente com destacado devotamento à obra da
envangelização. Algumas brincadeiras que fez em cartas a amigos muito
íntimos, ou figurações em poemas -- como na Orgia
dos Duendes -- em que fantasia clérigos, não pode ser tomadas como
irreverências à Igreja, nem repúdio pela religião da qual nunca se
afastou.
Entre todos os mais íntimos amigos de Bernardo, nenhum, no seu fim de vida,
pode ser lembrado como figura mais curiosa que Francisco Felicíssimo de Paula
Xavier, capitão reformado do Exército e que fora, durante muitos anos,
ajudante de ordens dos presidentes provinciais. Por isso o vate de Vila Rica
sempre pilheriava com ele:
Chico, quando eu morrer, você há de me acompanhar como meu ajudante de
ordens...
"Esta frase - informa Carlos
José dos Santos - ele repetiu sempre. Coincidência interessante: ambos
faleceram no mesmo dia, um no princípio, outro no fim da mesma rua (rua das
Cabeças, hoje rua Alvarenga). O pessoal que tomou parte no saimento de Bernardo
passou pela casa de Felicíssimo, levando os dois juntamente, no mesmo préstito
fúnebre..."
Basílio de Magalhães assim
registra o acontecimento:
Falecendo ambos no mesmo dia 10 de
março de 1884, foi marcado o enterro para a mesma hora, de sorte que,
homenageados pelos amigos comuns, seguiu adiante o corpo de Bernardo Guimarães,
que teve, assim, por "ajudante de ordem" o do Tenente Francisco
Felicíssimo, sendo o do poeta inumado no campo santo da Igreja de São José, e
o do seu companheiro da última viagem no cemitério da Igreja de São Francisco
de Paula, que fica atrás daquela".
Essa singular coincidência foi confirmada por Raimundo Felicíssimo, sobrinho
do Capitão Felicíssimo (Tenente, segundo Basílio de Magalhães) e
funcionário da Secretaria do Interior do Estado de Minas Gerais, de acordo
também com Basílio.
Outra coincidência:
O último trabalho poético de Bernardo Guimarães, escrito alguns dias antes de
morrer, foram umas estrofes necrológicas dedicadas a outro Felicíssimo -- o
Monsenhor José Felicíssimo do Nascimento, virtuoso e culto sacerdote e ilustre
parlamentar, então recentemente falecido. Alphonsus de Guimaraens Filho, que,
no livro "Poesias Completas de Bernardo Guimarães", faz anotações
históricas desses "últimos versos", os inclui no referido volume,
encerrando toda a obra poética do ate vila-riquense. [Íntegra
do poema]
Insiste Carlos José dos Santos em afirmar que Bernardo Guimarães era religioso
e temente a Deus. "Era crente sincero e católico convicto. Não perdia
missa, e ficou, certa vez, muito nervoso, porque, durante a estação da
missão, sem o querer, distraidamente, parodiou, durante todo o tempo,
mentalmente, os cânticos de uma devota que estava perturbando o silêncio
religioso da solenidade".
Assim escreveu Horário Guimarães, o filho mais velho do escritor:
"Dele só sei dizer que era um bom e um desambicioso. Tendo concorrido para enriquecer o seu editor, morreu, entretanto, paupérrimo. Residiu algum tempo em Queluz de Minas, como professor de latim, contando-se entre seus alunos o Vidigal famoso, que hoje contribui por aí à justiça como juiz de direito ou municipal. Transferindo-se para Ouro Preto, sua popularidade aí era espantosa. A ex-capital era por essa época uma vasta e bulhenta confederação de repúblicas de estudantes, e à convivência destes, entregava-se meu pai - examinador perpétuo de preparatórios no Liceu Mineiro - preferindo-a dos políticos, que evitava sempre que podia. Os estudantes adoravam-no, disputavam-no, e não só os estudantes como o povo, grandes e pequenos. Quando morreu, em um afastado arrabalde, e o seu funeral foi uma apoteose.
Era tão bom, tão bom que, segundo um contemporâneo que o biografou, levou para o túmulo o segredo de ter vivido 59 anos sem ter feito um só inimigo.
Belo Horizonte, 12-8-1925 - Horácio Guimarães"
"Faleceu o poeta e romancista mineiro em plena posse de suas faculdades
mentais. Estirado no leito, alto, espadaúdo, bonitão, com a bela barba que
todos conheciam, ei-lo a queixar-se de pontadas no fígado. Cólicas eles as
tinha, de vez em quando. Desta vez, porém, era o fatal tumor da preciosa
glândula, resultado do ardor com que empunhara, desde os tempos da Paulicéia,
a bandeira byroniana -- The best of life is intoxication. Dessa clássica
exageração nenhum cronista se esquece!
Em dado momento, vira-se para a
esposa solícita ao seu lado:
-- Teresa, sinto-me um tanto fraco. Vai arranjar-me mingau. Preciso viver para
os meus filhos.
"A esposa desvelada rumou para o interior da casa e, em cinco minutos,
regressava com o saboroso mingau que as suas mãos pressurosamente haviam
preparado. Empertigo, hirto, Bernardo Guimarães já não vivia. O
extravasamento foram fulminante". (Milton Pedrosa, "Vamos Ler",
edição de 27 de abril de 1944).
"É morto o mavioso poeta Dr. Bernardo Guimarães, glória da Província de
Minas." Assim noticiava "O Itajubá" de 22 de março de 1884. No
número seguinte, o jornal, de 29 de março, fazia a transcrição de longo
necrológico da "Província de Minas", com enaltecedores encômios à
obra do pranteado mineiro.
"Numa de suas composições mais jocosas, Bernardo Guimarães descreveu o
próprio enterro:
Quatro velhas de saia de baeta,
Irão na frente tocando clarineta.
Observa Vianna Moog:
"Castro Alves morreu com vinte e quatro; Junqueira Freire, com vinte e três; Casimiro de Abreu, com vinte e três; Álvares de Azevedo, com vinte; o que foi mais longe, Fagundes Varela, chegou a trinta e quatro. Gonçalves Dias atingiu à excepcional idade de quarenta e um anos. E Bernardo Guimarães, que atingiu quase a casa dos sessenta, esse foi um Matusalém."
("Bandeirantes e Pioneiros", 1954)
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