BG em São Paulo (1)
(de Ouro Preto para a
Paulicéia)
por Armelim Guimarães
(do livro inédito "Bernardo Guimarães, o romancista da
Abolição")
Em janeiro de 1847, Bernardo Guimarães despediu-se do seu pai, João Joaquim,
este já então nos seus bem vividos 70 anos de idade, para estudar em São
Paulo, de cuja Faculdade de Direito o irmão Joaquim Caetano já obtivera o
"canudo" de bacharel.
Para companheiro do novo acadêmico, deu-lhe João Joaquim um prestimoso
escravo, o Ambrósio, crioulo ainda moço, sadio e espadaúdo, e de inteira
confiança de seu senhor.
Pela primeira vez saía Bernardo Guimarães de sua Província natal. A longa e
cansativa viagem empreendida de Ouro Preto a São Paulo, feita em lombo de
burro, ficaria indelevelmente gravada na sua lembrança. Os pousos pelo caminho,
a visão paradisíaca do alto da Mantiqueira, o planalto piratiningano...
O bardo mineiro acabava de sair do calor da religião e da sadia moral
adquiridas nos seminários e no lar para cair logo num tacho cheio do gelo do
cepticismo, para encarangar-se com o frio do materialismo demolidor, para
engolfar-se nas estroinices que trazem a algidez do espírito, para entregar-se
à vagabundagem e a viver algum tanto excêntrico. Que novo Bernardo sairia
dali!?
Esse vazio desastroso em sua alma, essa derrocada mental sofrida com o novo
ambiente e as novas influências, ele os revelaria em versos em O
devanear do Céptico, em Ao meu aniversário e em
outras poesias.
Bernardo estreou logo as suas "filosóficas" gargalhadas na terra dos
bandeirantes ao deparar com o seu fadário, que vivia a pilheriar com ele,
perseguindo-o com a sombra do patíbulo. Em Ouro Preto residira numa casa junto
ao Largo da Forca, no alto lúgubre das Cabeças. Agora, ali em São Paulo, já
lhe haviam arranjado uma casa na Rua da Forca, que saía do largo do mesmo
nome... Era a penúltima casa, próxima do Largo da Cadeia, ao lado da Igreja
dos Remédios.
Ao Largo de São Francisco estava a Academia de Direito.
Paulicéia patriarcal
A cidade renascia toda acadêmica. Era, segundo escreveu o próprio romancista
no livro "Rosaura, a Enjeitada", "a
Paulicéia antiga e patriarcal", "que conservava ainda quentes as
cinzas de Diogo Antônio Feijó, que ainda escutava os ecos das vozes
patrióticas e eloqüentes de Antônio Carlos e Martim Francisco, e que ainda
não pranteava sobre o túmulo de dois ilustres cidadãos, modelos venerandos de
patriotismo e virtudes cívicas -- Vergueiro e Paula Sousa.
"Ainda então a cidade de São Paulo conservava certos laivos de sua
primitiva simplicidade, e posto que fosse já, relativamente à época, uma
cidade assaz populosa, e o núcleo de um grande movimento intelectual, parecia
respirar-se ali ainda a aura tradicional dos tempos de Amador Bueno."
Naquela São Paulo que Bernardo
encontrou -- diz ele na mesma obra -- ainda o "remanso e o silêncio
reinavam por toda parte; a rua era um deserto". As extensas várzeas
alagadiças cortadas pelo Tamandateí separavam "a cidade propriamente dita
do arrabalde de São Brás. Essas várzeas, banhadas então por um brando luar,
formavam outro deserto, mais vasto e aprazível, e pelas janelas abertas os
estudantes podiam expandir as vistas e aspirar as auras frescas e balsâmicas
que se elevavam dos vargedos".
Aí está o painel da cidade de São Paulo, tal como a encontrou Bernardo
Guimarães nos meados do século XIX.
No seu "O Incrível Bernardo Guimarães", estampado na
"Gazeta-Magazine" de 23 de março de 1941, diz Antônio Constantino:
"Ao vir à Paulicéia, Bernardo, inexperiente, porém decidido, se achou no
ambiente de perspectivas desalentadoras. Desconhecia os segredos da cidade
acadêmica, tudo lhe parecia melancólico. À noite, aumentava a amargura. Quase
escuridão, ruas sonolentas dos lampiões agonizantes e retratada por Vieira
Bueno nas memórias de noventa anos. "Colocadas de longe em longe -- narra
ele -- e só nas ruas principais, a luz desses lampiões, alimentada com azeite
de peixe, difundia uma claridade mortiça, que só alumiava um pequeno espaço,
projetando longas sombras movediças quando o vento balouçava os
lampiões". A cena de recanto fúnebre devia ao final das contas agradar o
temperamento de Bernardo Guimarães."
Mal Bernardo chegara à Paulicéia, alguns bons companheiros, entre os quais
Ferreira do Vale, Bernardo Gavião, Paulo do Vale, Agostinho da Cama, João
Cardoso (Barão de Paranapiacaba), Cipriano Penelon e outros, se uniriam logo a
ele por sólidos laços de amizade.
E os estudantes formavam uma legião travessa a valer, divertida, que não temia
ninguém.
Escravos
E, para manter as esbórnias
acadêmicas de seus amos patuscos, os escravos desses estudantes tinham que,
muitas vezes, ir cavar dinheiro para eles, ajustando-se nas chácaras,
alugando-se em trabalho pesado ou fazendo outras sortes de serviços. O
Ambrósio de Bernardo ajudava o seu mui estimado "senhor" vendendo
biscoitos de farinha de milho ou de polvilho, sequilhos de araruta e outros
quitutes, de era exímio fabricante, nas escadarias da Misericórdia ou no largo
da Igreja do Carmo. "Não demorou para Bernardo arranjar-lhe, pouco depois,
uma porta de aluguel na rua das Sete Casas, improvisando-lhe uma tasca de
guloseimas", informa Luís Gomes de Sousa Ataíde em sua crônica "A
Orgia dos Duendes". Assim não sacrificaria tanto o seu dedicado
companheiro africano, "de cujo trabalho só se aproveitou, montando para o
mesmo uma vendola, cujos lucros, não considerável, ambos repartiam
fraternalmente". (Basílio de Magalhães, "Bernardo Guimarães",
pág. 21).
Anos mais tarde, Bernardo Guimarães, na "Rosaura, a Enjeitada", daria
ele esta informação: "A classe acadêmica, harmonizando-se com o meio em
que vivia, passava vida simples, folgaz e descuidosa, ainda mais do que é
ordinário entre essa extravagante variedade de gênero humano. Divididos em
grupos, os estudantes se derramavam por todos os bairros da cidade, e
chamavam-se repúblicas, como até hoje, as casas ocupadas por esses
grupos, e onde viviam na mais admirável igualdade e fraternidade. Nessa época,
havia entre os estudantes um certo espírito de classe tão fortemente
pronunciado que formavam deles uma corporação não só respeitada como temida
dos futricas, nome que se dava a todo cidadão estranho ao corpo
acadêmico."
São Paulo daquele tempo estava crivada de repúblicas. Na rua da Palha,
na dos Bambus, na da Constituição, na Glória, na São Brás só se viam repúblicas.
Bernardo acabava de instalar mais uma na rua da forca...
De Antônio Cândido (Aspectos Sociais da Literatura em São Paulo, em "O
Estado de S. Paulo", edição comemorativa do 4º Centenário, de 25-1-54,
pág. 78) colho o seguinte: "Estruturadas pelo princípio de origem comum (taubateanos,
mineiros, fluminenses) ou de comum interesse (troça, literatura, estudo), elas
(as repúblicas) eram a unidade básica da vida estudantil. Unidades não apenas
de pouso, mas de recreio e atividade intelectual. Nelas se originou muito
escrito, muito projeto literário. Pelos fins do decênio de 40 (1840), nelas se
reuniam para improvisar bestialógicos dm prosa e verso (gênero das mais alta
importância, cujas produções se dispersaram infelizmente quase todas) João
Cardoso de Menezes, Silveira de Souza, José Bonifácio, Aureliano Lessa,
Bernardo Guimarães, autor do estupendo soneto Eu vi dos
pólos o gigante alado. Das repúblicas, a sociabilidade literária se
expandia pelos grêmios, inaugurados pela "Filomática", o
"Ensaio Filosófico", 1850; o "Ateneu Paulistano",
1852..."
Arcadas de São Francisco
A Academia de Direito de São Paulo, no tempo de Bernardo Guimarães, era um
velho prédio, já bissecular. Construíra-o o Frei Francisco dos Santos em
1644. O comprido edifício de dois pavimentos, que foi, em 1828, adaptado para a
Faculdade, era conjugado às igrejas de São Francisco e da Ordem Terceira dos
Franciscanos, no Largo de São Francisco.
"Detenhamo-nos um momento no Pátio das Arcadas; aqui reside a alma da
Academia. Eram os Gerais, assim chamados, à moda de Coimbra, porque no claustro
se reuniam indistintamente todos os alunos. Pelo correr do tempo, a
contemplação insistente do recinto, em sua amplitude arejada e na sua
singeleza harmoniosa de suas linhas, foi apagando a reminiscência coimbrã.
Lúcio de Mendonça, em escrito de 1885, já fala das arcadas do antigo convento
como pormenor de arquitetura. Depois, arcadas converteram-se em figura
retórica, são todo o edifício. Mais tarde reclamam inicial maiúscula,
designam o conjunto material e espiritual -- são a própria Faculdade de
Direito de São Paulo." (Prof. A. Almeida, A Faculdade de Direito e a
Cidade, em "O Estado de S. Paulo", edição comemorativa de 4º
centenário, de 25-1-1954).
Quando Bernardo Guimarães lá chegou, o diretor da Academia era o 2º Visconde
de Goiana, que nunca tomou posse. Mau exemplo. Aliás, também tinha o nome de
Bernardo -- Conselheiro Bernardo José da Gama. Quem estava interinamente
respondendo pela direção era o português Dr. José Maria de Avelar Brotero. E
com Brotero estaria a Faculdade durante todo o qüinqüênio de estudos do moço
de Ouro Preto, às vezes revezando com Manuel Joaquim do Amaral Gurgel.
Brotero que foi a figura que mais gostosamente ficaria gravada na memória
do escritor ouro-pretano, pelo resto da vida. Nos últimos anos de sua
existência, o velho diretor e professor ainda seria a mola impulsiva de suas
mais felizes gargalhadas. Numa carta a Saldanha Moreira lembrar-se-ia
Bernardo do venerando Brotero, depois de cometer, pilheriando, algumas
broteradas.
O que havia de realmente gozado no mestre era o descuido que sempre cometia,
sobretudo no auge da eloqüência, de trocar as palavras da frase ou fazer
desastrosas inversões de sílabas. Tais trocas ficaram com a designação de
broteradas.
"Tornou-se célebre pelo trocados e sinalefas; suas distrações eram
pasmosas. Não havia estudante que em canhenho não tivesse anotado dezenas
delas. Quando o Imperador esteve em São Paulo e foi visitar a Academia, Brotero
trouxe pela mão um bedel velhíssimo e caduco, e, chegando-se ao Imperador,
disse com profunda reverência:
-- Senhor bedel, tenho a honra de apresentar a V.M. o Imperador mais antigo
desta Academia". (Vicente de Paulo de Azevedo, "Álvares de
Azevedo", edição promovida pelo Centro Acadêmico XI de Agosto, em
comemoração do centenário de nascimento de Álvares de Azevedo, São Paulo,
1931).
São muitos os exemplos, citados pelos alunos contemporâneos do ilustre
trapalhão: "Gado saltitando pelas árvores, passarinhos pastando no
campo", "navios de pavilhões acesos e morrões desfraldados..."
(Vicente de Paulo Azevedo, op. cit., pág. 198).
[Nota do editor do site: Brotero foi o primeiro professor -- então chamado
de lente -- da São Francisco. Ele deu a aula inaugural da escola, em 1º de março
de 1828, às 16 horas.]
Quando o poeta ouro-pretano chegou a São Paulo, já tinha feito, em sua terra,
todos os preparatórios. Os exigidos para a matrícula no 1º ano do curso
jurídico eram, então, os de latim, Retórica, Filosofia, Francês, Geometria e
mais Inglês e História, acrescentados pela reforma de 1834. Havia alunos que
tiravam esses preparatórios na própria Paulicéia, à sombra das Arcadas.
Entre os professores dessas "aulas menores" estava o mestre de
Retórica o Cônego Fidélis Alves Sigmaringa de Moraes. Residia no Largo da
Cadeia. Vizinho de Bernardo, tornou-se figura popular, não só pelo físico,
como também pela intransigências exageradas e pela impiedade para com os
examinandos de preparatórios. Causava pavor nos aspirantes ao colégio de
Têmis. Era "um padre gordo, já então um pouco idoso, toutiçudos, de cor
avermelhada, e que era, de mais disso, dotado de uma grande penca de beiços,
dos quais de baixo era muito caído". Quem nos dá esse retrato é Ferreira
de Resende, nas "Minhas Recordações", 1944.
Bernardo Guimarães, que não perdia de vista nenhum tipo caricaturável, fez do
cônego Fidélis o alvo de uns seus versinhos humorísticos e satíricos,
decorados pelos colegas e até por alguns futricas. "São rimas
extremamente jocosas", diz Luís Gomes de Sousa Ataíde. Sabedor dessas
quadrinhas provocadoras com que o bardo de Vila Rica, com chiste, lhe pintara as
beiçolas e a carantonha, o sacerdote nada mais fez senão, certa tarde, no
Largo da Matriz, brandir ameaçadoramente a bengala ao vate que, cautelosamente,
passava à distância.
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Bernardo Guimarães estudou
na Faculdade de São Francisco, que aparece
acima formando um conjunto com a Ordem
Terceira e com o convento de São Francisco de Assis. O convento foi reformado
em 1884. A foto é do site da faculdade.
Igreja dos Remédios
(em reprodução do século XVIII), perto da qual ficava a casa onde Bernardo
Guimarães morou em São Paulo.
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