BG em São
Paulo (3)
(mudança para a casa das
Vidais)
por Armelim Guimarães
(do livro inédito "Bernardo Guimarães, o romancista da
Abolição")
Em 1851, Bernardo Guimarães deixou a república
da rua da Constituição e foi morar com as Vidais, na rua dos Bambus, numa casa
que ficava entre duas repúblicas, a dos companheiros Ferreira de
Resende, Evaristo e Bernardo Veiga, e a do Caetano Andrade Pinto, o moço
buliçoso e despudorado que chegou inteiramente nu na presença das Vidais.
Não havia nessa rua, segundo Ferreira de Resende, uma só casa que não fosse
ocupado por estudantes. "Era, portanto, uma rua exclusivamente
acadêmica." (Francisco de Paula Ferreira de Resende, em "Minhas
Recordações", Editora José Olympio, 1944, pág. 259).
Álvares de Azevedo foi, então, morar na rua da Consolação e, logo depois, na
Ladeira de São Francisco.
O boêmio das Alterosas, que já era um cábula inveterado, mais remisso ainda
se tornou nos braços das agradáveis Vidais.
Naquele tempo, o máximo de faltas tolerado na Academia era de 39. Uma falta a
mais impunha ao aluno um "R" e a conseqüência repetição do ano, o
que, na gíria da época, era "provar o ano".
De Francisco de Paula Ferreira de Resende, na citada obra, então vizinho da república
do poeta de Ouro Preto, são estas notas:
"O estudo, porém, era talvez a coisa de que Bernardo Guimarães menos se
lembrava; de sorte que o mês de outubro ainda estava longe, e ele já tinha
dado 38 ou 39 pontos. Era isto uma péssima recomendação para o exame; e o que
era pior, sem meios ou com muito pouco meios para estudar, bastava-lhe
entretanto que desse mais um ou dois pontos para que perdesse o ano. Mas o que
para Bernardo Guimarães um ano perdido com todas as suas conseqüências
comparado com as lânguidas delícias do sono da manhã ou com o seu constante e
sempre tão doce devanear de um céptico?!.
"Bernardo, portanto, nem estudava, nem acordava para ir à aula; e ele
teria com toda a certeza perdido o ano se não fosse um velho bedel da Academia,
o Mendonça, que, morando no Largo de Santa Ifigênia, e sentindo por Bernardo
Guimarães uma espécie de caritativa simpatia, tomou a si a penosa tarefa de
sair mais cedo para a Academia, passar pelas Vidais, e não continuava o
seu caminho sem que tivesse acordado o Bernardo e o levasse consigo."
(pág. 303)
Ao bom Mendonça, pois, muito ficou devendo o dorminhoco do poeta, já que era o
dedicado funcionário que o arrancava dos braços quentes das Vidais para
conduzi-lo, diariamente, ao seio turbulento das Arcadas.
Apesar de péssimo madrugador quando estudante, o auro-pretano imaginou tintas
para compor o seu Hino à Aurora, incluído nos
"Cantos da Solidão", obra com a qual, em 1852, em São Paulo, se
estreava em livro, poema este de meia dúzia de estrofes com que ele, talvez só
mesmo em sonhos, erguia sua taça ao rosicler denunciativo de Febo:
Rósea filha do sol, eu te
saúdo!
Formosa virgem de cabelos d'ouro,
Que prazenteira os passos antecedes
Do rei do firmamento,
Em seus caminhos flores despargindo!
Salve, aurora! - quão donosa surges
Nos azulados topes do oriente
Desfraldando o teu manto aurirrosado!
Um acontecimento de estucha, um furo de "intimidade familiar"
inteiramente estranho para os descendentes e colaterais de Bernardo Guimarães,
é o que o citado Francisco de Paula Ferreira de Resende, ilustre memorialista
campanhense, seu vizinho nos Bambus, conta nas "Minhas Recordações":
"Ora, nessa rua dos Bambus e perto da nossa casa moravam umas moças que
era muito agradáveis e que não era feias e cuja casa guardava um certo
meio-termo entre uma casa fechada e uma casa franca. Estas moças, que se bem me
recordo, se chamavam Vidais, viviam com a sua mãe que era uma mulher um pouco
pernóstica, mas que escrevia feijão com g cedilhado. Pois bem, esta casa das
Vidais era a casa onde Bernardo Guimarães morava e onde ele tinha um filho
chamado Benedito".
???!!!
Se não se trata de mais uma falsidade atirada na biografia do estudante de Ouro
Preto, esclareça-se que esse Benedito "fora de série" é um galho
fora da árvore genealógica dos Bernardos Guimarães. Não se conhece nenhuma
outra referência a ele.
"Desta época, um de meus amigos era Hilário, a quem Bernardo também
muito queria, talvez porque entre ambos não deixava de haver um certo ponto de
contato; e vinha a ser, que assim como Bernardo, também Hilário vivia sempre a
rir-se do mundo e nunca realmente o tomava a sério; de sorte que além daquele
freqüentar aos outros, uma ou outra vez não lhe deixava de fazer algumas
poesias. Lembro-me ainda que, tendo-lhe feita uma por ocasião do seu
aniversário natalício, quando a enviou, a acompanhou do seguinte bilhete:
Hilário, um dos sinceros amigos de Bernardo, era um moço doentio, de
compleição franzina, e não resistiu às moafas estudantis. A tuberculose o
ceifou na flor dos anos.
Porém que se não antecipe o túmulo...
Com Hilário, José Bonifácio, Aureliano Lessa, Álvares de Azevedo e, às
vezes, algum outro colega, Bernardo visitava sempre todos os arrabaldes
paulistanos. Já vimos que o Barão de Paranapiacaba havido sido um desses bons
andarilhos, acompanhante do aedo mineiro até à Ponte Grande, onde,
"envoltos em capa clássica", iam ouvir a "selvagem
orquestra" das águas contra os pegões de alvenaria. Na "Rosaura,
a Enjeitada", o próprio Bernardo fala desses passeios pelas vizinhas,
e nos oferece longos e estupendos retratos de São Paulo daquele tempo, e das
brincadeiras dos estudantes, quando iam chupar jabuticabas na chácara do Major
Damásio.
A não ser isso, os moços iam fazer literatura para a "Revista
Mensal" do "Ensaio Filosófico Paulistano", para os "Ensaios
Literários" e para a "Acaiaba", publicação de estudantes
fundada naquele ano de 1851, e "que teve grande influência no
desenvolvimento do gosto literário e que foi, em longo período, o escrínio de
primorosas composições da lira acadêmica." (Almeida Nogueira, op. cit.,
7º vol., pág. 87). Mereceu este período os encômios de Couto de Magalhães,
transcritos que foram por Almeida Nogueira em suas valiosas "Tradições e
Reminiscências".
Bernardo Guimarães, produzindo sempre suas páginas de humorismo ou de lirismo,
estava vivendo o período de grande intensidade intelectual da Paulicéia.
Depois de afirmar que o poeta mineiro é "uma das figuras mais
interessantes da nossa literatura", assinala Sílvio Romero essa quadra
máxima das Arcadas, dizendo sobre o vate vila-riquense:
"Cursou, como se viu, Direito em São Paulo, onde foi companheiro de
Álvares de Azevedo, Aureliano Lessa, José Bonifácio, Silveira de Sousa,
Félix da Cunha, José de Alencar e outros estudantes entusiastas e estróinas
daqueles bons tempos. Foi a época de maior efervescência romântica em nossas
academias. À poesia religiosa de Magalhães e à poesia cabocla de Gonçalves
Dias aqueles moços fizeram suceder uma poesia mais ampla, mais agitada, mais
compreensiva. Avantajaram-se aos seus predecessores em conhecer melhor as
literaturas estrangeiras, em preocupar-se mais das questões sociais, e em
cultivar mais a forma. Trabalharam em horizontes mais vastos e com armas mais
brilhantes. Entre eles distinguia-se Bernardo Guimarães por lirismo sereno,
plácido, confiante, quase bucólico." (História da Literatura
Brasileira", 2º vol., pág. 240).
Em 1851, viu-se Bernardo sem dinheiro. Como prosseguir nos estudos? O velho pai,
em Ouro Preto, em situação financeira muito precária, já não podia socorrer
o filho. Eis que providencialmente chegava a São Paulo, nessa conjuntura
crítica, vindo de Minas, o Capitão João Inocêncio de Faria Alvim, cunhado de
Bernardo Guimarães, casado com uma irmã do quintanista em apuros, D. Maria
Fausta. Esse Inocêncio e Maria Fausta foram os avós maternos de Alphonsus
de Guimarães, o consagrado poeta místico e simbolista. João Inocêncio
estava acompanhado os filhos Augusto Fausto Guimarães Alvim e Guilherme Caetano
Guimarães Alvim, que deveriam, na Paulicéia, ainda completar os preparatórios
para o curso de Direito, o que realmente se efetivou, tendo o primeiro
ingressado em 1853 e o segundo em 1854.
Foi, pois, o Capitão João Inocêncio que socorreu o cunhado em dificuldades, e
lhe emprestou o dinheiro para safar-se da aflitiva situação. Só muito mais
tarde é que Bernardo poderia saldar essa dívida. Quem disso nos dá notícias
é um dos íntimos do poeta ouro-pretano, o professor Carlos José dos Santos,
em seu opúsculo "Bernardo Guimarães na Intimidade", pág. 19.
"Não era possível obter repostas de suas cartas dirigidas ao Dr. Plácido
Farnese, no Rio de Janeiro. Um dia (Bernardo) escreveu-lhe:
"Flávia, tenho-te escrito muitas cartas, pedindo notícias das minhas
obras, que deverão estar em poder do Garnier [editor] e, como não as tenhas
respondido, concluo que não as tens recebido. Agora, te digo, que o indivíduo
que a esta violar é o mais ordinário que tem aparecido neste globo terrestre
e..." -- acrescentou mais coisas. Pouco tempo depois recebeu um volume,
contendo alguns exemplares de suas obras. Por sua ordem, vendi-as e
entreguei-lhe todo o produto realizado. Recebendo, disse-me:
-- Agora, Carlos, vou mandar este dinheiro a meu cunhado João Inocêncio Alvim,
ainda para pagamento de despesa com a minha formatura."
Conquanto boêmio, levando a vida muito a seu modo, Bernardo Guimarães foi
sempre correto e pontual para com seus compromissos financeiros.
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Francisco de Paula
Ferreira de Resende
morou numa república
na mesma rua
onde estava BG
Poeta Álvares de
Azevedo, um dos
inseparáveis amigos
de BG nas Arcadas
José Bonifácio
(o moço) foi outro
amigo de BG na
escola de Direito
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