BG em
São Paulo (4)
(o tiranete das Arcadas)
por Armelim Guimarães
(do livro inédito "Bernardo Guimarães, o romancista da
Abolição")
O Dr. Prudêncio Geraldes Tavares da Veiga
Cabral, lente da Academia, entrava na sua casa, na rua São Bento, quando dois
"frades" dele se aproximaram para entregar-lhe uma carta. Tarde fria e
garoenta, que bem justificava aos "religiosos" o capuz enterrado na
cabeça e o xale que lhes escondia quase todo o rosto.
Entregue a missiva, os "frades" se afastaram apressados. Foi quando o
ranzinza catedrático, reparando nos leigos sapatos e nas calças brancas que
apareciam por debaixo das sotainas, deu pelo atrevido e profanador embuste.
A carta continha insinuações insultantes e mofas insolentes, em versinhos
muito ao sabor da troça acadêmica da época. E os "frades", virando
a esquina da rua Direita, ainda puderam ouvir parte das maldições vociferadas
pelo lente:
-- Canalhas! Truões! Vilões miseráveis!...
Os traquinas estavam cutucando onça com vara curta.
Sousa Ataíde, que nos conta esse episódio, lamenta não ter conseguido cópia
das provocantes rimas. Deduz, entretanto, pelo que logrou saber, que, pelo
menos, três pirraças havia para desesperar o mestre: alusões depreciativas a
seu projetado tratado de Direito Administrativo Brasileiro, grande parte do qual
já tinha ele expendido em aula; uma cacofônica broterada [Nota do editor do
site: referência a José Maria de Avelar Brotero, diretor e professor da
Academia que vivia trocando as palavras], que escreveram Veica Gabral; e, o que
era sem dúvida o pior, o mais grave dos insultos, um largo elogio ao compêndio
de Lobão.
Aí daquele que, nas Arcadas de São Francisco, citasse Lobão! Era contar com
bomba certa, irrevogavelmente...
"-- Mas, sr. Conselheiro -- ponderasse, embora, algum outro lente -- V.
Exª entenda que é um bom estudante...
--- Não pode ser!
-... aplicado, inteligente.
-- Não pode ser, já disse. Ele citou Lobão, está reprovado. Citou
Lobão!" (Almeida Nogueira, op. cit., 2º vol., pág. 43).
Veiga Cabral, como apóstolo de Têmis a serviço do magistério, era uma
desmedida aberração. O homem cometia as mais absurdas perseguições,
unicamente para satisfazer às suas antipatias, na maioria das vezes totalmente
tolas. Era um sadista mental, um tarado.
E como foi ele, com as suas exóticas manias, a asa negra de Bernardo Guimarães
na Academia de São Paulo, não é demais frisar-se sua doentia mentalidade, com
a menção de algumas outras excentricidades de injusto mestre, colhidas nas
"Tradições e Reminiscências", de Almeida Nogueira:
"Pedro Luís Pereira de Sousa, que seria logo
depois o eminente jornalista e consagrado poeta, foi um dos que caíram na
esparrela de mencionar o tratadista e excomungado pela Cabral. Foi Pedro Luís
excelente e brilhante aluno. Aconteceu, porém, que, por inadvertência,
havia citado um argumento de Lobão. Foi quando bastou, no conceito de Cabral,
para entornar-se o caldo.
"Indo nesse dia um dos colegas à caso do velho lente, deparou-se-lhe o
mesmo a dançar pela sala, cantarolando:
O Pedro Luís
Deu má lição!
O Pedro Luís
Citou Lobão!"
(3º vol., pág. 300)
Prossegue Almeida Nogueira:
"Estava o Conselheiro Cabral presidindo a uma mesa examinadora de
preparatórios. Eram doze os examinados. Correram os exames com altos e baixos,
como sói acontecer. No momento do julgamento, estando o Dr. Ribas a pesar o
merecimento relativo dos alunos, sentenciou peremptoriamente o Conselheiro
Cabral:
-- Todos reprovados!
-- Mas sr. Conselheiro...
-- Não há Conselheiro nem meio Conselheiro. Todos reprovados!
O Dr. Ribas insistiu, mas foram baldados os seus esforços. Teve de conformar-se
com a degolação geral de culpados e inocentes.
No dia seguinte, revelou-se muito inferior à primeira a turma examinada.
Tomando por bitola o julgamento da véspera, propôs o Dr. Ribas:
-- Bem! Agora, à vista do resultado de ontem, não há o que hesitar: todos
reprovados.
-- Não, senhor!, contestou o Conselheiro Cabral. Ao contrário: todos
aprovados!
-- Como assim, Conselheiro?!
-- Sim, senhor, todos aprovados.
-- Com que justiça?
-- Qual justiça! É para mostrar que somos independentes."
(2º vol., págs. 44 e 45)
Quando um aluno tinha nome muito longo ou esquisito, era contar com a
perseguição do Cabral, com os seus fatais "RR" (reprovado), fosse ou
não um bom aluno. É de ver o que Almeida Nogueira deixou registrado sobre o
Benedito Rosculo Jovino de Almeida Aymoeré de Sousa Barué Tiquatira de Beré,
o Antônio Carlos Ribeiro de Andrada Machado e Silva, o Francisco de Mascarenhas
Camelo, o Antônio Simões da Silva Caim Atuá, os irmãos Padilha, todos
vilmente perseguidos e reprovados porque traziam nomes antipáticos ao Cabral,
que sempre ameaçava esses moços e cumpria a ameaça:
"-- No fim do ano havemos de ver... Lá os espero, os Atuás, Aymoeré,
Padilhas. Hão de ver, hão de ver. Desaforo!" (3º vol., pág.
230)
Idêntica ojeriza tinha o mestre contra os estudantes negros. É só ver o que
fazia com o Fogaça, a ponto de não admitir que se marcasse a presença do
rapaz na aula, não obstante estar na sala. (2º vol., págs. 47 e 48)
Também o Visconde de Araxá, nas suas "Fantasias e Reminiscências",
retratou esplendidamente o Cabral com o seu estapafurdismo e absurdas atitudes.
Pois foi com o intolerável e tirano Conselheiro Dr. Prudêncio Geraldes Tavares
da Veiga Cabral, com essa aberração psíquica, que Bernardo Guimarães ia
encontra-se no final do seu curso jurídico como um obstáculo na sua
trajetória de estudante.
Como não podia deixar de ser, o Conselheiro olhava com maus olhos ao travesso
poeta mineiro. Mastigava imprecações quando se referia às alegres ceias
escolásticas e aos versos bestialógicos:
-- Bernadices é que são! Esse palhaço há de pagar-me!
Mas o aedo montanhês, sabendo disso, no ano anterior havia tomado cautelas com
o perigoso catedrático. Procurou amenizar a situação. Mais por troça que por
temer a ameaçada bomba escolar, fora assíduo nas aulas do 4º ano, e elogiou
ardilosamente pela imprensa a apostilha de Direito Administrativo do implicante
mestre, e, com muita graça, metera o pau no Lobão.
Poucos anos mais tarde seria Couto de Magalhães quem haveria de alisar o Cabral
com esses mesmos estratagemas. É de Almeida Nogueira a revelação.
Fato foi que o estudante vila-riquense passou mesmo para o 5º ano sem o
"R" cabralino.
Acontece que, uma vez promovido, a atitude do moço de Ouro Preto passou a ser
outra, e possivelmente tenha cometido alguma imprudente provocação. E é bem
provável que um dos "frades" da rua São Bento tenha sido o bardo
mineiro. Pelo menos, o Cabral disso era convencido:
"-- Miserável! Há de pagar-me caro, o patife! Para monges desses calibre
tenho cá umas boas pílulas pretas, nos atos!" (Sousa Ataíde, op. cit.)
Bernardo estava zagunchando a terrível fera! O homem era um vingador
implacável. Pois até o grave Ferreira de Resende, que seria Ministro do
Supremo Tribunal Federal, o consignaria como tal nas "Minhas
Recordações" (págs. 268 e 271). Imaginara o boêmio da antiga capital
provincial mineira que, agora, no 5º ano, estaria livre do impertinente
professor, já que este não lecionava no último ano. Enganou-se o cantor da
solidão. Por coincidência desastrosa, ou porque o Cabral, por birra e revide,
tudo arranjasse para isso -- o que é bem mais acreditável -- a verdade foi que
o tonto do lente fez parte da banca examinadora do 5º ano.
Por causa disso, não se formou o boêmio no final de 1851, mas no início do
ano seguinte, em segunda época.
Bernardo Guimarães, boêmio e dispersivo como era, realmente não poderia ter
sido um acadêmico exemplar, um aluno ótimo. Nunca foi evidentemente dos que,
na sala de aula, procuravam os bancos da música, que, na gíria acadêmica de
então, significava os bancos mais próximos da cátedra. "Não pode ser
bom estudante", diz Basílio de Magalhães ("Bernardo
Guimarães", pag. 30), "quem se preocupava mais com as musas e as
diversões do que com os indigestos tratadistas de ars boni et aequi".
Mas isto não significava que ele fosse um negligente a ponto de nada estudar
nos apontamentos forenses dos velhos preceptores daquele tempo.
Observou Artur Azevedo:
"Não foi, decerto, um estudante ideal; mas a inteligência e a memória de
tal modo supriam a falta de aplicação ao estudo das ciências jurídicas e
sociais, que nunca fez figura triste nos respectivos exames. Entretanto, por
vingança mesquinha de certo lente hemorroidário, perdeu, com uma
reprodução acintosa, um dos últimos anos de seu curso." (Apud Basílio
de Magalhães, op. cit., pág. 30).
Conforme já observou Basílio de Magalhães, a reprovação foi não em
"um dos últimos anos", porém "precisamente no último ano do
curso". É ponto que parece ter deixado dúvida aos biógrafos e cronistas.
Até mesmo Ferreira de Resende, contemporâneo e vizinho de república de
seu coestaduano, tropeçou nessa informação, hesitando quanto ao ano da
reprovação, se no 4º ou no 5º, admitindo ter o poeta repetido um destes, o
que não foi verdade. Conforme se verá, Bernardo não repetiu ano algum, não
obstante a reprovação, em primeira época, do "lente
hemorroidário", como o chamou Artur Azevedo.
Anos mais tarde, em 1882, numa carta ao Dr. Fernando Saldanha Moreira, de Juiz
de Fora, ao qual sempre escrevia pilheriando, dizia o escritor de Ouro Preto:
"Saúde e benção ao meu caríssimo confrade D. Saldanha Moreira, futuro
bispo de Constantinopla. Em segundo lugar devo participar a V. Exª que minha
esposa já deu à luz da publicidade mais um reverendíssimo volume macho, a 5
de setembro (deis alba notanda lapillo). Em quarto lugar, felicito a V. Revmª.
de não ter ainda morrido, o que seria deplorável. Em décimo lugar, envio-lhe
minhas congratulações episcopais por se achar nessa ilustre Paulicéia, de
recordosa emória, quer dizer, de tão memoriosa, ... ia dizendo saudaria
mimória..., arre! que estou quase como o bom e estimável Dr. Brotero, velho,
um dos homens da nossa antiga Academia, cujo nome venero sinceramente, e mais
alguns, porque, à exceção de um Jerônimo Prudêncio Tavares de Tal Cabral, a
quem Deus, digo mal, o diabo haja, todos me trataram com a atenção eu
merecia." (Apud Dilermando Cruz, "Bernardo Guimarães", pág.
182)
Aí está como o próprio Bernardo Guimarães, dentro todas as pessoas da
Paulicéia, distinguiu ao ranzinza do tiranete Conselheiro Cabral.
Mas o ouro-pretano não repetiu a ano.
Documenta Almeida Nogueira (Op. cit., 2º Vol., pág. 172):
"Tendo cursado o seu 5º ano em 1851, Bernardo Guimarães não se formou
nesse ano, com os seus colegas; fez ato na segunda época, a saber, em março de
1852, e então somente se bacharelou."
Em 15 de março de 1852, pois, Bernardo Joaquim da Silva Guimarães era um
sacerdote de Têmis. E não em 1853 ou 1854, como querem alguns cronistas.
É evidente que o boêmio das Alterosas, pouco aplicado e perseguido, não
defendeu tese para doutorar-se em borla e capelo.
Seu diploma só seria expedido em setembro de 1852. É autenticado, "em
nome da Congregação", pelas assinaturas do Dr. Manuel Joaquim do Amaral
Gurgel, como diretor da Academia; do Conselheiro Carlos Carneiro de Campos (3º
Visconde de Caravelas), como presidente do Ato; do Dr. José Maria de Avelar
Brotero, como secretário da Academia. Esse precioso documento foi conservado
pela já falecida e neta de BG D. Lívia Guimarães Alves dos Prazeres, que se
casou com Dr. Laércio dos Prazeres, casal que morava no Rio de Janeiro.
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O charuto
(ode)
Bernardo Guimarães
Vem, é meu bom charuto, amigo velho,
Que tanto me regalas;
Que em cheirosa fumaça me envolvendo
Entre ilusões me embalas.
Oh! que nem todos sabem
quanto vale
Uma fumaça tua!
Nela vai passear do bardo a mente
Às regiões da lua.
E por lá embalado em
rósea nuvem
Vagueia pelo espaço,
Onde amorosa fada entre sorrisos
O toma em seu regaço;
E com beijos de
requintado afeto
A fronte lhe desruga,
Ou com as tranças d'ouro mansamente
As lágrimas lhe enxuga.
Ó bom charuto, que
ilusões não geras!
Que tão suaves sonhos!
Como ao te ver atropelados correm
Cuidados enfadonhos!
Íntegra do poema.
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