Vida e Obra de Bernardo Guimarães
  poeta e romancista brasileiro [1825-1884 - biografia]

 
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BG em São Paulo (4)
(o tiranete das Arcadas)

por Armelim Guimarães
(do livro inédito "Bernardo Guimarães, o romancista da Abolição") 

O Dr. Prudêncio Geraldes Tavares da Veiga Cabral, lente da Academia, entrava na sua casa, na rua São Bento, quando dois "frades" dele se aproximaram para entregar-lhe uma carta. Tarde fria e garoenta, que bem justificava aos "religiosos" o capuz enterrado na cabeça e o xale que lhes escondia quase todo o rosto.

Entregue a missiva, os "frades" se afastaram apressados. Foi quando o ranzinza catedrático, reparando nos leigos sapatos e nas calças brancas que apareciam por debaixo das sotainas, deu pelo atrevido e profanador embuste.

A carta continha insinuações insultantes e mofas insolentes, em versinhos muito ao sabor da troça acadêmica da época. E os "frades", virando a esquina da rua Direita, ainda puderam ouvir parte das maldições vociferadas pelo lente:

-- Canalhas! Truões! Vilões miseráveis!...

Os traquinas estavam cutucando onça com vara curta.

Sousa Ataíde, que nos conta esse episódio, lamenta não ter conseguido cópia das provocantes rimas. Deduz, entretanto, pelo que logrou saber, que, pelo menos, três pirraças havia para desesperar o mestre: alusões depreciativas a seu projetado tratado de Direito Administrativo Brasileiro, grande parte do qual já tinha ele expendido em aula; uma cacofônica broterada [Nota do editor do site: referência a José Maria de Avelar Brotero, diretor e professor da Academia que vivia trocando as palavras], que escreveram Veica Gabral; e, o que era sem dúvida o pior, o mais grave dos insultos, um largo elogio ao compêndio de Lobão.

Aí daquele que, nas Arcadas de São Francisco, citasse Lobão! Era contar com bomba certa, irrevogavelmente...

"-- Mas, sr. Conselheiro -- ponderasse, embora, algum outro lente -- V. Exª entenda que é um bom estudante...

--- Não pode ser!

-... aplicado, inteligente.

-- Não pode ser, já disse. Ele citou Lobão, está reprovado. Citou Lobão!" (Almeida Nogueira, op. cit., 2º vol., pág. 43).

Veiga Cabral, como apóstolo de Têmis a serviço do magistério, era uma desmedida aberração. O homem cometia as mais absurdas perseguições, unicamente para satisfazer às suas antipatias, na maioria das vezes totalmente tolas. Era um sadista mental, um tarado.

E como foi ele, com as suas exóticas manias, a asa negra de Bernardo Guimarães na Academia de São Paulo, não é demais frisar-se sua doentia mentalidade, com a menção de algumas outras excentricidades de injusto mestre, colhidas nas "Tradições e Reminiscências", de Almeida Nogueira:

"Pedro Luís Pereira de Sousa, que seria logo depois o eminente jornalista e consagrado poeta, foi um dos que caíram na esparrela de mencionar o tratadista e excomungado pela Cabral. Foi Pedro Luís excelente e brilhante aluno. Aconteceu, porém, que,  por inadvertência, havia citado um argumento de Lobão. Foi quando bastou, no conceito de Cabral, para entornar-se o caldo.

"Indo nesse dia um dos colegas à caso do velho lente, deparou-se-lhe o mesmo a dançar pela sala, cantarolando:

O Pedro Luís
Deu má lição!
O Pedro Luís
Citou Lobão!"

(3º vol., pág. 300)

Prossegue Almeida Nogueira:

"Estava o Conselheiro Cabral presidindo a uma mesa examinadora de preparatórios. Eram doze os examinados. Correram os exames com altos e baixos, como sói acontecer. No momento do julgamento, estando o Dr. Ribas a pesar o merecimento relativo dos alunos, sentenciou peremptoriamente o Conselheiro Cabral:

-- Todos reprovados!

-- Mas sr. Conselheiro...

-- Não há Conselheiro nem meio Conselheiro. Todos reprovados!

O Dr. Ribas insistiu, mas foram baldados os seus esforços. Teve de conformar-se com a degolação geral de culpados e inocentes.

No dia seguinte, revelou-se muito inferior à primeira a turma examinada. Tomando por bitola o julgamento da véspera, propôs o Dr. Ribas:

-- Bem! Agora, à vista do resultado de ontem, não há o que hesitar: todos reprovados.

-- Não, senhor!, contestou o Conselheiro Cabral. Ao contrário: todos aprovados!

-- Como assim, Conselheiro?!

-- Sim, senhor, todos aprovados.

-- Com que justiça?

-- Qual justiça! É para mostrar que somos independentes."

(2º vol., págs. 44 e 45)

Quando um aluno tinha nome muito longo ou esquisito, era contar com a perseguição do Cabral, com os seus fatais "RR" (reprovado), fosse ou não um bom aluno. É de ver o que Almeida Nogueira deixou registrado sobre o Benedito Rosculo Jovino de Almeida Aymoeré de Sousa Barué Tiquatira de Beré, o Antônio Carlos Ribeiro de Andrada Machado e Silva, o Francisco de Mascarenhas Camelo, o Antônio Simões da Silva Caim Atuá, os irmãos Padilha, todos vilmente perseguidos e reprovados porque traziam nomes antipáticos ao Cabral, que sempre ameaçava esses moços e cumpria a ameaça:

"-- No fim do ano havemos de ver... Lá os espero, os Atuás, Aymoeré, Padilhas. Hão de ver, hão de ver. Desaforo!" (3º vol., pág. 230)  

Idêntica ojeriza tinha o mestre contra os estudantes negros. É só ver o que fazia com o Fogaça, a ponto de não admitir que se marcasse a presença do rapaz na aula, não obstante estar na sala. (2º vol., págs. 47 e 48)

Também o Visconde de Araxá, nas suas "Fantasias e Reminiscências", retratou esplendidamente o Cabral com o seu estapafurdismo e absurdas atitudes.

Pois foi com o intolerável e tirano Conselheiro Dr. Prudêncio Geraldes Tavares da Veiga Cabral, com essa aberração psíquica, que Bernardo Guimarães ia encontra-se no final do seu curso jurídico como um obstáculo na sua trajetória de estudante.

Como não podia deixar de ser, o Conselheiro olhava com maus olhos ao travesso poeta mineiro. Mastigava imprecações quando se referia às alegres ceias escolásticas e aos versos bestialógicos:

-- Bernadices é que são! Esse palhaço há de pagar-me!

Mas o aedo montanhês, sabendo disso, no ano anterior havia tomado cautelas com o perigoso catedrático. Procurou amenizar a situação. Mais por troça que por temer a ameaçada bomba escolar, fora assíduo nas aulas do 4º ano, e elogiou ardilosamente pela imprensa a apostilha de Direito Administrativo do implicante mestre, e, com muita graça, metera o pau no Lobão.

Poucos anos mais tarde seria Couto de Magalhães quem haveria de alisar o Cabral com esses mesmos estratagemas. É de Almeida Nogueira a revelação.

Fato foi que o estudante vila-riquense passou mesmo para o 5º ano sem o "R" cabralino.

Acontece que, uma vez promovido, a atitude do moço de Ouro Preto passou a ser outra, e possivelmente tenha cometido alguma imprudente provocação. E é bem provável que um dos "frades" da rua São Bento tenha sido o bardo mineiro. Pelo menos, o Cabral disso era convencido:

"-- Miserável! Há de pagar-me caro, o patife! Para monges desses calibre tenho cá umas boas pílulas pretas, nos atos!" (Sousa Ataíde, op. cit.)

Bernardo estava zagunchando a terrível fera! O homem era um vingador implacável. Pois até o grave Ferreira de Resende, que seria Ministro do Supremo Tribunal Federal, o consignaria como tal nas "Minhas Recordações" (págs. 268 e 271). Imaginara o boêmio da antiga capital provincial mineira que, agora, no 5º ano, estaria livre do impertinente professor, já que este não lecionava no último ano. Enganou-se o cantor da solidão. Por coincidência desastrosa, ou porque o Cabral, por birra e revide, tudo arranjasse para isso -- o que é bem mais acreditável -- a verdade foi que o tonto do lente fez parte da banca examinadora do 5º ano.

Por causa disso, não se formou o boêmio no final de 1851, mas no início do ano seguinte, em segunda época.

Bernardo Guimarães, boêmio e dispersivo como era, realmente não poderia ter sido um acadêmico exemplar, um aluno ótimo. Nunca foi evidentemente dos que, na sala de aula, procuravam os bancos da música, que, na gíria acadêmica de então, significava os bancos mais próximos da cátedra. "Não pode ser bom estudante", diz Basílio de Magalhães ("Bernardo Guimarães", pag. 30), "quem se preocupava mais com as musas e as diversões do que com os indigestos tratadistas de ars boni et aequi". Mas isto não significava que ele fosse um negligente a ponto de nada estudar nos apontamentos forenses dos velhos preceptores daquele tempo.

Observou Artur Azevedo:

"Não foi, decerto, um estudante ideal; mas a inteligência e a memória de tal modo supriam a falta de aplicação ao estudo das ciências jurídicas e sociais, que nunca fez figura triste nos respectivos exames. Entretanto, por vingança mesquinha de certo lente hemorroidário, perdeu, com  uma reprodução acintosa, um dos últimos anos de seu curso." (Apud Basílio de Magalhães, op. cit., pág. 30).

Conforme já observou Basílio de Magalhães, a reprovação foi não em  "um dos últimos anos", porém "precisamente no último ano do curso". É ponto que parece ter deixado dúvida aos biógrafos e cronistas. Até mesmo Ferreira de Resende, contemporâneo e vizinho de república de seu coestaduano, tropeçou nessa informação, hesitando quanto ao ano da reprovação, se no 4º ou no 5º, admitindo ter o poeta repetido um destes, o que não foi verdade. Conforme se verá, Bernardo não repetiu ano algum, não obstante a reprovação, em primeira época, do "lente hemorroidário", como o chamou Artur  Azevedo.

Anos mais tarde, em 1882, numa carta ao Dr. Fernando Saldanha Moreira, de Juiz de Fora, ao qual sempre escrevia pilheriando, dizia o escritor de Ouro Preto:

"Saúde e benção ao meu caríssimo confrade D. Saldanha Moreira, futuro bispo de Constantinopla. Em segundo lugar devo participar a V. Exª que minha esposa já deu à luz da publicidade mais um reverendíssimo volume macho, a 5 de setembro (deis alba notanda lapillo). Em quarto lugar, felicito a V. Revmª. de não ter ainda morrido, o que seria deplorável. Em décimo lugar, envio-lhe minhas congratulações episcopais por se achar nessa ilustre Paulicéia, de recordosa emória, quer dizer, de tão memoriosa, ... ia dizendo saudaria mimória..., arre! que estou quase como o bom e estimável Dr. Brotero, velho, um dos homens da nossa antiga Academia, cujo nome venero sinceramente, e mais alguns, porque, à exceção de um Jerônimo Prudêncio Tavares de Tal Cabral, a quem Deus, digo mal, o diabo haja, todos me trataram com a atenção eu merecia." (Apud Dilermando Cruz, "Bernardo Guimarães", pág. 182)

Aí está como o próprio Bernardo Guimarães, dentro todas as pessoas da Paulicéia, distinguiu ao ranzinza do tiranete Conselheiro Cabral.

Mas o ouro-pretano não repetiu a ano.

Documenta Almeida Nogueira (Op. cit., 2º Vol., pág. 172):

"Tendo cursado o seu 5º ano em 1851, Bernardo Guimarães não se formou nesse ano, com os seus colegas; fez ato na segunda época, a saber, em março de 1852, e então somente se bacharelou."

Em 15 de março de 1852, pois, Bernardo Joaquim da Silva Guimarães era um sacerdote de Têmis. E não em 1853 ou 1854, como querem alguns cronistas.

É evidente que o boêmio das Alterosas, pouco aplicado e perseguido, não defendeu tese para doutorar-se em borla e capelo.

Seu diploma só seria expedido em setembro de 1852. É autenticado, "em nome da Congregação", pelas assinaturas do Dr. Manuel Joaquim do Amaral Gurgel, como diretor da Academia; do Conselheiro Carlos Carneiro de Campos (3º Visconde de Caravelas), como presidente do Ato; do Dr. José Maria de Avelar Brotero, como secretário da Academia. Esse precioso documento foi conservado pela já falecida e neta de BG D. Lívia Guimarães Alves dos Prazeres, que se casou com Dr. Laércio dos Prazeres, casal que morava no Rio de Janeiro.
   

O charuto
(ode)

Bernardo Guimarães

Vem, é meu bom charuto, amigo velho,
Que tanto me regalas;
Que em cheirosa fumaça me envolvendo
Entre ilusões me embalas.

Oh! que nem todos sabem quanto vale
Uma fumaça tua!
Nela vai passear do bardo a mente
Às regiões da lua.

E por lá embalado em rósea nuvem
Vagueia pelo espaço,
Onde amorosa fada entre sorrisos
O toma em seu regaço;

E com beijos de requintado afeto
A fronte lhe desruga,
Ou com as tranças d'ouro mansamente
As lágrimas lhe enxuga.

Ó bom charuto, que ilusões não geras!
Que tão suaves sonhos!
Como ao te ver atropelados correm
Cuidados enfadonhos!

Íntegra do poema.