O Auge do Preconceito: Carentes e Homossexuais

(Matéria publicada pelo "Folhateen" em 18/12/2.000) - Augusto Pinheiro



Jovens gays e de classe baixa que sofreram preconceito da família, contam suas histórias e têm esperanças no futuro.

        "O mais difícil é olhar para trás e saber que estou nesta vida porque a minha família não me apoiou", desabafa o jovem gay Jarbas da Anunciação Sardinha, 20, que abandonou o conforto da casa dos pais aos 15 anos e virou morador de rua. "Fugi por causa do preconceito: meus irmãos me batiam, me xingavam, meu pai mandava eu andar como homem."

         A história de Jarbas representa a intolerância e preconceito vividos por outros jovens homossexuais, como alguns que fizeram por seis meses o curso gratuito de teatro do Centro Acadêmico de Estudos Homoeróticos da USP, o Caehusp.

         O contato com os pais se resumia ao telefone e "era frio", como diz. "Eu falava que estava bem, que estava morando na minha casa, camuflava tudo, não dizia a verdade. Eles perguntavam se eu estava gostando de mulher. Eu dizia que não queria falar sobre isso", revela.

         Ele só reencontrou o pai em junho deste ano, em um supermercado em São Paulo, onde voltou a morar em dezembro do ano passado. "Ele reclamou das minhas pulseiras, disse que eram de mulher. Ele disse que eu tinha que voltar para a igreja, que eu tinha uma pombajira. Discutimos. Depois, deixei ele lá e saí."

         Hoje, Jarbas mora em uma estação de metrô, tem apenas um lençol e suas roupas, faz bijuterias que são vendidas por uma cooperativa e tira R$ 15 quinzenalmente. "Um grupo de espíritas dá marmitex e sopa para a gente.", diz com seu jeito alto astral, de quem não desanima diante de tantas adversidades. "Quero voltar a estudar e trabalhar com manicure. Quero me formar em medicina e ser pediatra." Mesmo levando "essa vidinha legal", como chama, ele diz que está sendo melhor que em casa: "a minha sexualidade não está escondida. Posso fazer o que quero. Apesar dos pesares, estou gostando."

         A colega de curso Donina Almeida, 18, chegou a ser expulsa de casa quando a mãe descobriu há alguns meses que ela era lésbica. "Falou para eu ir morar com meus amigos. Me xingou, falou que, se meu pai soubesse, ia me matar", lembra a caçula de cinco filhos.

         A garota dormiu cinco dias nas rua e na casa de amigos. Depois teve que pedir para voltar. A convivência na casa de três cômodos, em uma favela da Diadema, é terrível. "Minha irmã não fala comigo há três anos. Não deixa eu comer o que ela faz, não deixa eu tocar em nada do que é dela. Parece que eu tenho uma doença", revolta-se.

         Ela conta que uma outra irmã, evangélica, diz que ora todos os dias para que ela consiga um namorado. "Coitada", resume. Depois que o curso do Caehusp, Donina passa as manhãs procurando emprego. "já entreguei currículo em vários lugares, mas não achei nada. Aceito até trabalhar em casa de família", diz a garota, que cursa o ensino médio à noite. "Já falei para a minha mãe que, quando conseguir um emprego, vou sair de casa."

         A renda da casa vem do trabalho da mãe, que vende cachorro quente, e de um irmão, que trabalha em um supermercado. Doninha não tem dinheiro nem para comprar um passe. Pega carona nos ônibus. "O motorista está enjoado de tanto ver a minha cara", diz. Ela vai passar o Natal com um tio, em Minas Gerais. "Em casa, só tem briga".

                

Donina sofre com a discriminação em casa  Alex tem orgulho de ser gay e quer ser dançarino

         Outro que não vai passar o Natal com a família, que não vê há anos, é Alex Chagas, 22, natural de São Bernardo do Campo (SP). Os sofrimentos do rapaz foram bem além do preconceito de ser homossexual: foi abusado sexualmente aos 6 anos por um tio, apanhava do pai alcoólatra, se envolveu com drogas aos 8 anos.

         "Só conheci minha mãe aos 9 anos, quando fui para a casa dela, no interior de Minas Gerais. Quando estávamos nos envolvendo, ela morreu", lembra.

         Ele ficou morando com a avó e, aos 11 anos, fugiu depois que foi pego "fazendo coisa" com um primo. "Começaram a me olhar de uma maneira totalmente diferente. Antes, era o Alex trabalhador. Depois disso, eu não prestava. Fugi, fui andando até Belo Horizonte, em um trajeto que, de ônibus, leva quatro horas." A partir daí, passou por várias unidades da Febém, em Minas Gerais, Bahia, Ceará, Pernambuco, Rio de Janeiro e São Paulo. Só saiu aos 19 anos. Durante esse período, teve parceiros fixos, mas não revelava a homossexualidade.

         "Hoje, se perguntarem, falo que sou gay. Tenho dignidade. Quero trabalhar. Meu sonho é ser dançarino", conta o rapaz, que mora com um amigo, numa favela na região do Campo Limpo (zona sul de São Paulo), e, em troca de comida e do teto, faz a faxina da casa.

Esperança

Teatro eleva astral

         "Aprendi a ter auto-estima", diz Alex Chagas, 22, um dos 25 alunos do curso de teatro do Caehusp (Centro Acadêmico de Estudos Homoeróticos da USP- leia mais em Projeto Somos e Assoc. Diversidade), que acabou há três semanas. Com o apoio da capacitação solidária, financiado por empresas privadas, o curso ofereceu a jovens, entre 16 e 21 anos, a maioria gay e de classe baixa, capacitação profissional. Eles receberam refeição diária, vale-transporte e bolsa de R$ 50/mês.

         "As aulas envolveram interpretação, maquiagem, expressão vocal, mas tb. houve um bloco sobre cidadania, prevenção às DSTs e Aids", diz o coordenador, Elias Lilikan. No final, a turma desenvolveu esquetes com temas como preconceito e prevenção - um serviço que o Caheusp oferece a empresas que queiram melhorar a situação desses jovens. Para o aluno, Jarbas Sardinha, 20, que fugiu de casa e mora na rua, "o mais importante foi o apoio das pessoas". "Acho tb. que a minha vida foi um exemplo para eles: tem que pensar duas vezes se quiser se assumir para a família."

Análise

Como revelar?

         Assumir a homossexualidade para os pais nem sempre é uma boa idéia. "Não há fórmula de bolo para essa situação", explica a psicóloga Maria Cristina Antunes, pesquisadora do Núcleo de Estudos de Prevenção da Aids da USP e professora da Unicastelo. "Existem pais extremamente rígidos, que não aceitam e vão criar um clima de perseguição em cima do jovem".

         Para ela, o primeiro passo é olhar para dentro de si mesmo e perguntar "por que eu quero contar?". "Tem que pensar no custo-benefício da situação, no que pode acontecer", diz. O melhor é sondar o território, tocar no assunto antes de falar. "Tem de sentir o clima, ver se há espaço."

         Ela lembra que não é o nível sóciocultural dos pais que vai garantir a aceitação. "Conheço o caso de uma garota que é filha de uma juíza e de um pesquisador. Ela contou que era lésbica e, hoje, é vista por eles como uma doente", diz. "Às vezes, é melhor esperar quando tiver independência emocional, afetiva e financeira para contar aos pais".