Meu pai é gay...

Minha

mãe é

Lésbica...

    Ganha corpo um novo tipo de família:   a composta de homossexuais   assumidos, que são pais por adoção,   inseminação e até mesmo pelo método   biológico tradicional.    (Fonte: publicação da revista VEJA)


       O diálogo a seguir se deu meses atrás, num barzinho paulistano,  entre Marina, de 16 anos, e Ricardo, de 21.    

       Marina: O que você faria se eu dissesse que já beijei uma mulher?   Ricardo: Continuaria a te amar do mesmo jeito. Mas por que isso  agora?   Marina: Nada, não é nada... Não estou falando de mim.     Mais segura depois dessa resposta, ela lhe entrega um bilhete, com  uma frase incisiva: "Minha mãe namora uma mulher". Diante da expressão de  surpresa do rapaz, ela explica: "Ainda é difícil para mim falar sobre  isso". Ricardo, então, a abraça e eles não demoram a mudar de assunto. O  namoro continua firme até hoje.    

       Marina pertence a um grupo que já se apresenta encorpado o  suficiente para chamar a atenção dos estudiosos de questões comportamentais  - o das famílias compostas de pais gays ou mães lésbicas (assumidos, bem  entendido). As configurações, aqui, são de três tipos. Há os que "saíram do  armário" depois de um casamento heterossexual e criam os rebentos do  relacionamento anterior ao lado de seus novos companheiros. Existem os  homossexuais (solteiros ou não) que adotam. E, por último, há as lésbicas  que se submetem a inseminação artificial. Ninguém se preocupou ainda em  medir o tamanho do fenômeno no Brasil, o que é quase um clichê. É possível,  no entanto, que ele esteja próximo do patamar americano. Nos Estados  Unidos, estima-se que 22% dos homossexuais assumidos tenham a guarda de  crianças. Nas cidades mais liberais, como Nova York e San Francisco, são  conhecidos pelo apelido carinhoso de "pink parents" (pais cor-de-rosa).    

       Esse gênero de arranjo familiar está menos incomum, mas não é fácil  para os envolvidos expor-se em sociedade. Tanto que a maior parte dos  entrevistados por VEJA só consentiu em falar se a revista usasse nomes  fictícios e os fotografasse de forma a não ser reconhecidos. Ter pai gay ou  mãe lésbica pode ser motivo de discriminação, velada ou não. É certo que,  nos dias de hoje, conta a favor da aceitação o fato de o conceito de  politicamente correto ter impregnado as relações sociais e, em latitudes  mais ao norte, até mesmo a legislação, graças ao empenho dos ativistas. Na  Dinamarca, na Suécia e na Noruega, a lei já admite casais homossexuais,  conferindo-lhes quase todos os direitos de que gozam os heterossexuais. Na  Holanda, a equiparação é total - trata-se do único país do mundo em que  dois homossexuais podem adotar uma criança, sem recorrer a subterfúgios. A  certidão de nascimento sai com a filiação "mãe e mãe" ou "pai e pai". No  Brasil, apesar das pressões para que seja reconhecida a união civil entre  pessoas do mesmo sexo, a lei ainda não ampara gays e lésbicas que dividem o  mesmo teto por amor. E muito menos lhes dá o direito de adotar ou registrar  em conjunto uma criança. Tal estado de coisas, evidentemente, só serve para  reforçar o preconceito. O resultado é que, no mais das vezes, pequenos e  adolescentes vêem-se obrigados a se comportar como se fossem cúmplices de  um crime. O que é aberto dentro de casa se torna um segredo fora dela. Para  amigos e colegas, a companheira da mãe vira "a prima da mamãe que mora em  casa" e o do pai, "um tio que vive com ele".    

    A VONTADE DE TER UMA FAMÍLIA - "Quando eu e Marcos completamos quatro anos vivendo juntos,  veio a vontade de ter um filho. Montamos enxoval para adotar um bebê. Foi  um susto para toda a família. Como poderíamos criar um filho sem uma mãe?  Mas eu fui criado para ter uma família: filhos, gato, cachorro,  passarinho... Adotamos Débora com 5 meses. Foi uma experiência tão feliz  que, seis anos depois, adotamos Lara. Elas lidam muito bem com nossa  orientação sexual. Quando Débora foi para a escola, isso a abalou um pouco.  Ela notou que os coleguinhas tinham um pai e uma mãe e ela tinha dois pais.  Dizemos a elas que nos amamos e é isso que une uma família. Eu sofri e  sofro com a discriminação e não quero que isso se repita com minhas filhas.  Nós as preservamos ao máximo e as preparamos para enfrentar as diferenças."   Renato, empresário (na foto, de sobretudo preto)      

       Além de obstáculos nas relações sociais, não é raro que filhos de  pais homossexuais enfrentem problemas de ordem emocional, principalmente  quando se encontram na adolescência. Afinal de contas, esse é o período em  que a sexualidade desabrocha e quando referências masculinas e femininas  bem definidas ajudam a sedimentar a identidade de cada um. "É importante  que pais homossexuais estejam cientes dessas questões e, se for preciso,  não hesitem em procurar ajuda", recomenda a psicóloga Edwiges Ferreira  Silvares, da Universidade de São Paulo. As situações mais delicadas são as  que decorrem de um pai ou uma mãe que assume a homossexualidade após  terminar um casamento heterossexual. Como é praxe a mulher permanecer com a  guarda, há mais lésbicas morando com filhos do que gays. Por causa dessa  proximidade, elas têm mais dificuldade em abrir o jogo. Mas os  especialistas aconselham que, vivendo ou não ao lado dos filhos, pais e  mães falem abertamente de sua orientação sexual - sem entrar em minúcias, é  claro, assim como heterossexuais também não devem descrever o que fazem na  cama. Quanto mais cedo a criança souber, mais fácil será para ela assimilar  a notícia e encarar as manifestações preconceituosas.    

       Trata-se de uma reviravolta na psicologia. Até pouco tempo atrás, a  maioria dos profissionais dessa área recomendava que se escondesse tudo dos  pequenos. Por causa disso, um sem-número de crianças e jovens teve seus  traumas amplificados. O depoimento da bióloga Regina, hoje com 26 anos, é  exemplar de como é um erro tentar ocultar o que não pode ser ocultado.    

    PAI É PAI E NADA MAIS - "Conheci meu filho em um orfanato do Rio, em meados de abril  de 1997. Já na primeira visita, aquele menino franzino, de apenas 1 ano e 6  meses, me chamou a atenção. Foi amor à primeira vista. Lembro-me de tê-lo  tomado nos braços e dizer: 'Eu vou mudar a sua vida e você vai mudar a  minha'. Quando o conheci, sua certidão registrava apenas o nome da mãe.  Pai, desconhecido. Hoje, ele é filho de Angelo Barbosa Pereira e mãe  desconhecida. Faz quatro anos que ele chegou e posso garantir que minha  qualidade de vida melhorou. Não acho relevante o fato de eu ter orientação  homossexual.   Não vejo diferença entre mim e outros pais. Um pai não é  homossexual, nem heterossexual, nem médico, nem bicheiro, nem nada. Pai é  pai e nada mais. Minha sexualidade nada tem a ver com a dele. Se um dia ele  perguntar com todas as letras, responderei com todas as letras. Não há  bondade na adoção. É ato de amor ou não é nada. Se falo sobre isso  abertamente, é para incentivar outras pessoas a fazer o mesmo."   Angelo B. Pereira, professor e tradutor de inglês e alemão    

       "Meus pais se separaram quando eu tinha 1 ano. No momento em que meu  pai resolveu assumir sua orientação sexual, ele e minha mãe buscaram a  ajuda de psicólogos. Esses profissionais disseram a eles que não contassem  nada a mim nem à minha irmã, até que fôssemos adolescentes. Morávamos numa  cidade do interior paulista, onde todos se conheciam. Resultado: ficamos  sabendo por outras pessoas. Eu tinha 11 anos nessa época. Minha primeira  reação foi culpar minha mãe por não ter me dito antes. Me tornei uma  verdadeira 'aborrecente'. Nunca mais quis ter contato com meu pai, que se  mudara para outro Estado. Me recusava a receber as suas cartas e a atender  os telefonemas dele. Tive de mudar de escola por causa de uma garota que  vivia gritando 'Seu pai é gay!'. Quando comecei a namorar, achava que todos  os meus namorados eram gays. Cheguei a questionar a minha própria  sexualidade. A orientação sexual de meu pai era um segredo que eu levava  anos para contar a meus namorados. Era um segredo meu, só meu. Fiz três  anos de análise e acho que isso salvou a minha vida. Consegui respeitar meu  pai e até me orgulhar dele quando fiz 18 anos. Hoje sei que cada um é feliz  à sua maneira".    

       Gays e lésbicas que decidem pela adoção ou pela inseminação não têm  como esconder a verdade e revelam logo a natureza de seus relacionamentos  amorosos. Os problemas começam a surgir quando a criança entra na escola.  Há pais que evitam que seus filhos freqüentem a casa do colega que tem uma  família "alternativa" - como se a homossexualidade fosse uma doença, e  doença contagiosa. Quando ficam maiores, as crianças oriundas desses lares  não raro se tornam alvo de chacota ou de xingamentos. Francisco Ribeiro  Eller, de 7 anos, filho da cantora Cássia Eller, lésbica assumidíssima,  volta e meia chega com uma história chata. "Eu e minha companheira, Maria  Eugênia, conversamos muito com o Chicão sobre isso e achamos que ele segura  bem a onda. Quando acontece de na escola alguém gritar: 'Sua mãe é  sapatão!', ele responde: 'E daí?'. Acho que o amor supera essas coisas",  diz Cássia.    

       É bom frisar que ninguém se torna homossexual simplesmente porque  visita de vez em quando a casa do filho de um gay ou de uma lésbica. Embora  as referências externas sejam importantes, o desenvolvimento da sexualidade  está muito mais ligado ao psiquismo de cada um - um aspecto incontrolável.  Esse é um ponto de partida para os educadores na hora de enfrentar as  perguntas de pais preocupados com o fato de o amiguinho do filho ter dois  pais ou duas mães. Outro ponto que costuma ser levantado em tais ocasiões  são os riscos embutidos no contato com um suposto "estilo de vida  homossexual". Ocorre que gays e lésbicas que se propõem a educar um filho  levam um cotidiano tão estável e respeitável quanto o de qualquer casal  conservador. "Do contrário, por que constituiriam uma família?", argumenta  o psicólogo Antonio Carlos Egypto.

    NAMORADO... NÃO - "Minha mãe viveu durante dez anos com Cristina. No fundo, eu  sabia que elas eram mais do que amigas íntimas. Até porque no quarto delas  havia uma cama de casal. Evitava perguntar porque eu não queria saber. Um  dia, quando elas já haviam se separado, estava indo à padaria com minha mãe  e lancei a pergunta: 'Mãe, você não tem namorado?'. 'Namorado... não', ela  respondeu. Desci correndo do carro para não ter de ouvir o resto. Para mim,  era normal. Mas eu tinha muito medo dos outros. E também pensava: 'Será que  minha mãe vai ficar beijando outra mulher na minha frente?'. Mas ela sempre  me respeitou muito. Tinha 14 anos na época. Tive um namorado que vivia  fazendo piadinhas de gays e eu só pensava na minha mãe. Foi um alívio  quando meu namorado atual soube de tudo e levou numa boa."   Marina, estudante, filha de Márcia, gerente administrativa      

       A lei brasileira permite que homens e mulheres solteiros adotem  crianças, sem fazer referência à sua orientação sexual. É nesse vácuo que  gays e lésbicas conseguem um filho. Os empresários paulistas Renato e  Marcos vivem juntos há dezessete anos. Quando sua união completou quatro,  eles decidiram adotar um bebê. Renato, então, tornou-se pai de Débora, hoje  com 13 anos. Depois foi a vez de Marcos adotar Lara, atualmente com 7. Cada  menina tem um sobrenome e, perante a lei, não teria direito à herança do  pai legal da outra. O casal contornou esse entrave, colocando todos os bens  da família em nome dos dois. "Ao não reconhecer a união civil de  homossexuais, a legislação brasileira cria esse tipo de imbróglio",  constata a advogada Ana Elisa Lolli, especialista em causas que envolvem  homossexuais.    

       Os desvãos da lei acabaram por semear uma batalha entre as correntes  moderna e conservadora da Justiça. Alguns juízes consideram a adoção de uma  criança por gay ou lésbica uma espécie de atentado à integridade moral do  menor. É um julgamento sem fundamento na realidade. Não há nenhum estudo  sério que prove ou mesmo insinue que filhos de homossexuais, biológicos ou  não, estejam mais predispostos a se tornar adultos perturbados. Na mão  oposta, cresce o número de juízes, promotores e assistentes sociais que  partem do princípio de que homossexuais bem posicionados social e  financeiramente estão aptos a criar um filho. "É 200.000 vezes melhor uma  criança amada por um pai gay do que vivendo na melhor instituição ou abrigo  do Estado", defende o juiz Siro Darlan, da 1ª Vara da Infância e da  Juventude do Rio de Janeiro. Desde 1998, ele já concedeu oito guardas de  crianças a homossexuais solteiros.    

    E DAÍ? - "Quando soube que estava grávida, quis ter meu filho e  continuar minha vida ao lado de Eugênia, com quem vivo há treze anos.  Chicão sente falta do pai, que morreu cinco dias antes dele nascer. Eu tive  um pai e uma mãe e sei quanto isso é bom. Nós conversamos muito com ele  sobre a nossa orientação sexual e acho que ele segura bem a onda. Na  escola, quando alguém grita: 'Sua mãe é sapatão!', ele responde: 'E daí?'.   " Cássia Eller, cantora.  

       Ao contrário da maioria dos casais heterossexuais de classe média,  que preferem adotar recém-nascidos brancos e absolutamente saudáveis, gays  e lésbicas não fazem restrição alguma a cor, idade ou estado de saúde.  Sabem como ninguém o que é ser vítima de exclusão e preconceito. Há quatro  anos, o professor carioca Angelo B. Pereira adotou P.P. O menino chegou a  sua nova casa com sarna, vermes, feridas pelo corpo e uma diarréia que  durou quatro meses. Hoje, P.P. freqüenta uma ótima escola, é cercado de  atenção e mimos e, acima de tudo, é amado pelo pai. "Paternidade não tem  nada a ver com orientação sexual", diz Angelo, autor de um livro sobre o  assunto, Estreitos Nós, ainda sem editora. Ele foi um dos primeiros  brasileiros a conseguir adotar uma criança declarando sua homossexualidade  ao juiz. Para tanto, passou por uma análise criteriosa feita por  assistentes sociais e só recebeu a sentença favorável após a Justiça  verificar que ele preenchia uma série de requisitos necessários para o  sustento e a educação de P.P.    

       O amor supera tudo, diz Cássia Eller. Supera mesmo. Basta acompanhar  a rotina doméstica dos empresários Renato e Marcos, os pais de Débora e  Lara. Eles podem ser tão "caretas" e protetores quanto um casal  heterossexual. E se recusam a dividir papéis: nenhum dos dois finge ser  mãe. Ambos são paizões, que impõem regras e sustentam discussões acirradas  em torno de horários e cumprimento de deveres. "Sempre lembramos a Débora:  você é uma das primeiras filhas de pais gays. É uma responsabilidade grande  para você também", ressaltam. Débora, Lara, Marcos e Renato são o retrato  de uma família feliz e só um pouquinho diferente.    


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