Sala de Física

Biografias


Henry Cavendish

  

 (1731 - 1810)

Na noite de 27 de maio de 1775, cinco distintos senhores cruzaram os portões de uma imponente residência londrina, sendo imediatamente conduzidos a uma construção lateral com a aparência de estábulo. Lá dentro, a luz das lamparinas incidia sobre inúmeros aparelhos de madeira e metal: era o laboratório de Lorde Henry Cavendish e esses cinco personagens foram os primeiros e últimos cientistas a visitar aquele lugar. Examinaram curiosamente os globos, as barras e os instrumentos variados que pendiam do teto de quase cinco metros de altura, espantados com o fato de que Cavendish tivesse conseguido realizar experiências tão precisas com instrumentos tão rudimentares e deselegantes.

O anfitrião era um inglês de meia idade, alto e magro, de voz vacilante e gestos tímidos - vestido de forma estranha para a época. Ele os conduziu a um lugar onde estavam dispostos os instrumentos necessários à experiência que todos desejavam testemunhar.

O assunto que levara aqueles cinco membros da Sociedade Real de Londres ao laboratório de Henry Cavendish era o centro de uma discussão, desencadeada dois anos antes, em torno de um artigo de John Walsh. Neste trabalho, o cientista estudava um tipo especial de peixe, achatado e semelhante à arraia, o torpedo - assim denominado por sua capacidade de entorpecer os seres vivos que o tocam (a palavra latina torpedo significa torpor). Ao encostar a mão nesse peixe, sente-se um tipo de choque que, para Walsh, era um efeito de origem elétrica. Porém, vários outros cientistas, principalmente Thomas Ronayne, opunham-se a essa idéia: como poderia haver cargas elétricas armazenadas em um corpo submerso em água salgada, que é tão boa condutora de eletricidade? Além disso, Ronayne apontava vários efeitos que, segundo ele, deveriam ser observados caso se tratasse de fenômenos elétricos.

(Torpedo marmorata)

A controvérsia acabou envolvendo Henry Cavendish, contra sua vontade. Ele tinha feito estudos sobre choques elétricos provocados por corpos com baixo grau de eletrização e esses trabalhos tinham sido citados por Walsh em defesa de sua opinião. Não querendo discutir o assunto sem uma sólida base de conhecimentos, Cavendish construiu um modelo em couro do torpedo e adaptou-lhe órgãos elétricos semelhantes aos do torpedo real. Após certificar-se de que obtivera a reprodução exata de todos os fenômenos elétricos causados pelo peixe, convidou várias testemunhas, entre elas o próprio Thomas Ronayne, para observar seu trabalho. Todos acederam ao convite e lá estavam, naquele dia, para presenciar a experiência com o torpedo artificial.

Ficaram completamente satisfeitos com o aparelho e, após receberem alguns choques, acabaram aceitando as detalhadas explicações e demonstrações de Henry: todas as testemunhas viram claramente que os choques recebidos deviam ser de caráter elétrico e que isso em nada contrariava as leis e os fatos então conhecidos sobre a eletricidade.

Pouco depois, Cavendish publicou um artigo, no qual descrevia e explicava essas experiências. Imediatamente, extinguiram-se as discussões sobre o torpedo. Nada mais havia a dizer.

Henry Cavendish descendia de uma das mais aristocráticas famílias da Grã-Bretanha. Seu pai, Lorde Charles, era filho de William Cavendish, Duque de Devonshire, e sua mãe, Arme Grey, a quarta filha do Duque de Kent.

Em 1731, Lady Arme foi passar alguns meses em Nice, a fim de se recuperar de uma doença. Foi lá, a 10 de outubro de 1731, que nasceu Henry. Ela morreria dois anos mais tarde, logo depois de dar à luz a Frederick, o único irmão de Henry. Por isso, os dois meninos tiveram toda sua formação diretamente orientada pelo pai.

Charies Cavendish era um respeitado cientista. Em 1727 tornara-se membro da Sociedade Real de Londres - a mais alta associação britânica de ciências - tendo administrado, posteriormente, o Museu Britânico. Interessava-se principalmente por Meteorologia, tendo sido o inventor de dois tipos de termômetro, capazes de registrar a maior e a menor temperatura ocorridas num certo intervalo de tempo.

Provavelmente, a personalidade científica de Lorde Charles influiu decisivamente sobre as inclinações e o temperamento de Henry.

(Universidade de Cambridge)

Pouco se conhece de sua infância e adolescência. Aos onze anos, foi enviado à escola de Newcombe, em Hackney; mas nada se sabe sobre suas atividades escolares nessa época. Aos dezoito anos deixou a escola, ingressando na Universidade de Cambridge que abandonaria quatro anos mais tarde (em 1753), sem tentar obter o diploma. Sua atitude foi movida pela antipatia a certos exames finais, que abrangiam discussões de textos religiosos, nos quais eram exigidas respostas rigorosamente ortodoxas. Não possuindo qualquer crença e não desejando simular uma falsa convicção, Henry preferiu não se submeter a esses exames.

Depois de uma curta viagem, o jovem Cavendish decidiu fixar-se na casa de seu pai e dedicar-se ao estudo científico. Primeiramente tornou-se auxiliar de Lorde Charles, mas logo iniciou pesquisas próprias sobre o calor, que abrangiam, principalmente, observação dos pontos de fusão, dos calores específicos e da expansão de corpos aquecidos. Grande parte de seus trabalhos nos campos da Química e da Eletricidade foi feita nesse período.

Em 1760, tornou-se membro da Sociedade Real de Londres e, desde então, passou a assistir a todas as suas reuniões. Às quintas-feiras sempre jantava com o presidente e outros membros da entidade, mas nessas ocasiões praticamente não se pronunciava sobre coisa alguma -- mesmo quando interrogado.

Essa era apenas uma das características de sua estranha personalidade: não tinha amigos íntimos e não se relacionava com seus familiares; não frequentava reuniões sociais e detestava mulheres; a maior parte de seu tempo, Henry o gastava no seu laboratório ou na biblioteca, sozinho ou com seu ajudante Richard. Pouquíssimas vezes, em toda sua vida, convidou alguém para visitá-lo; a única vez que foi registrada a presença de outros cientistas em seu laboratório foi por ocasião da experiência com o peixe elétrico artificial.

George Wilson, seu biógrafo, afirma que "ele quase não tinha paixões ... Seu cérebro parecia ser apenas uma máquina de calcular ... Para ele, o Universo consistia simplesmente em uma multidão de objetos que podiam ser pesados, numerados e medidos; e a vocação para a qual se considerava chamado era justamente a de pesar, numerar e medir tantos objetos quantos conseguisse durante sua vida. . . " O lema da família Cavendish era Cavendo Tutus (que significa "tomando-se cuidado, nada há a recear"): esta idéia parece ter acompanhado Henry durante toda a sua vida. Em suas pesquisas ele sempre tomava as maiores precauções, não por hesitação, mas por reconhecer as dificuldades do trabalho de investigação da natureza. Abominava o erro como se fosse a transgressão de uma lei.

Foi essa falta de emoções, aliada à paciência e ao método, que permitiu a Cavendish realizar seus estudos de maneira objetiva, quase sem preconceitos, tomando tanto cuidado com as experiências que elas nunca precisavam ser refeitas.

Desde 1766, quando publicou seu primeiro trabalho - um estudo de dois gases pouco conhecidos na época, o hidrogênio e o gás carbônico -, manifestou-se em Cavendish a preocupação de tudo pesar e medir. Por isso ele pode ser considerado, juntamente com Lavoisier, um dos introdutores do método quantitativo na Química.


(Termômetro registrador de Cavendish)

O isolamento e a identificação dos diversos gases como substâncias distintas foram um dos maiores avanços da Química no século XVIII. Um dos primeiros passos importantes nesse sentido foi dado no início desse século, quando Stephen Hales desenvolveu uma "cuba pneumática", que permitia recolher, isolar e medir a quantidade de gás desprendido pelas substâncias aquecidas. Apesar do grande número de observações que realizou, obtendo quase sempre gases puros, Hales não chegou a reconhecer que essas substâncias diferiam entre si. Ele aceitava que só houvesse um tipo de ar e que as diversidades de cor, cheiro, inflamabilidade, etc. eram acidentais - devidas a "fumaças, vapores e espíritos sulfurosos".

Foi em meados do mesmo século que Joseph Black iniciou as pesquisas que iriam transformar completamente o conhecimento sobre a natureza dessas substâncias. Estudando o gás carbônico - que é produzido normalmente na respiração de animais e vegetais ou na queima de substâncias orgânicas Black mostrou que esse gás (que chamou de arfixo) podia ser facilmente obtido pelo aquecimento de certas substâncias, como a pedra de cal (carbonato de cálcio) e a magnésia alba (carbonato básico de magnésio).

Além das descobertas de Hales e Black, na época de Cavendish também se conhecia a existência de um gás produzido pela dissolução de fios de ferro em ácido sulfúrico: o chamado "ar inflamável pois, misturado ao ar, ele se incendiava. No entanto, nada mais se sabia a seu respeito. Foi Cavendish quem realizou, em 1766, o primeiro estudo detalhado sobre o ar inflamável, sendo, por isso, considerado o seu descobridor. Tendo produzido esse gás - que depois recebeu o nome de hidrogênio - a partir de diferentes substâncias, recolheu-o em uma cuba pneumática aperfeiçoada (que utilizava mercúrio ao invés de água), enchendo com ele várias bexigas secas de animais. Pesou-as a seguir, conseguindo mostrar que o hidrogênio é bem mais leve do que o ar.

A importância desse trabalho foi imediatamente reconhecida e a Sociedade Real agraciou o cientista com a medalha Copley.

Na segunda metade do século, as descobertas experimentais a respeito de gases foram se sucedendo rapidamente. Em 1772, Daniel Rutherford mostrou que no ar totalmente viciado pela respiração de animais ou pela queima havia, além do gás carbônico, um outro "ar", irrespirável - hoje conhecido pelo nome de nitrogênio. Aquecendo óxido de mercúrio, Priestley obteve um novo "ar" - o oxigênio -, constatando também que este gás alimentava o fogo e a respiração dos animais melhor do que o ar comum. Estava preparado o caminho para o reconhecimento da composição da água e da atmosfera.

Todas essas experiências, no entanto, eram interpretadas erroneamente devido a predominância da teoria do flogístico nos meios científicos da época. Segundo esta teoria, haveria uma substância - o flogístico - que abandona os corpos no momento de sua combustão. Assim, a maioria dos cientistas supunha que as substâncias orgânicas eram, em grande parte, constituídas por flogístico, visto que praticamente não deixavam resíduo ao se queimarem. Acreditava-se também que o flogístico contido nos alimentos era libertado no organismo dos animais, aquecendo-os, escapando, a seguir, pela respiração. Como se sabia que tanto a combustão como a vida cessam quando sujeitas, por algum tempo, a um volume limitado de ar, explicava-se esse fenômeno pela suposição de que o ar seria capaz de conter apenas uma certa quantidade de flogístico e que, uma vez saturado, ele impediria a queima e a respiração, impedindo a saída do flogístico do combustível ou do animal.

Apesar de profundamente convicto da validade da teoria do flogístico, Cavendish ajudou a derrubá-la. Uma de suas maiores contribuições para o advento da nova química foram suas experiências sobre a composição do ar, que descreveu em artigo publicado em 1784.

Ao mesmo tempo que realizava seus estudos sobre a química dos gases, Henry Cavendish dedicava-se a muitos outros assuntos: magnetismo terrestre, Eletricidade, Dinâmica, Astronomia, Meteorologia, Matemática. Cavendish é um exemplo do que se chamava "Filósofo Natural" no século XVIII homens que se ocupavam com os assuntos que mais lhes interessavam, nos vários domínios do conhecimento.

Em seu primeiro artigo sobre Eletricidade, publicado em 1771, Cavendish estabeleceu claramente, e pela primeira vez, a diferença entre carga (ou quantidade de eletricidade armazenada em um corpo) e tensão (ou força com que esta eletricidade tende a deslocar-se). Se uma mesma quantidade de eletricidade é colocada em dois corpos semelhantes, mas de volumes diferentes, no menor deles a tensão elétrica será maior do que no outro. Da mesma forma, se em dois corpos semelhantes a tensão elétrica for igual, o maior deles conterá mais eletricidade. Quando dois corpos eletrizados são unidos por um condutor, eles acabam ficando com a mesma tensão elétrica, qualquer que seja o ponto ou a forma pela qual se faz a união: as cargas se distribuirão neles conforme suas respectivas capacidades elétricas.

Além de estabelecer essas ocorrências e desenvolver um tratamento matemático adequado aos fenômenos elétricos, Cavendish também foi o primeiro a medir experimentalmente as capacidades elétricas de corpos de diversos materiais, formas e tamanhos. Mostrou que, para corpos de formas iguais, a capacidade é proporcional ao comprimento do objeto: se dois corpos semelhantes são unidos por um fio, a carga que cada um armazenará será proporcional ao seu tamanho. Mediu igualmente a diferença de capacidade entre condutores de formas diferentes e observou que, nesse caso, o material que os constitui não influi em nada. Também provou que a carga elétrica se distribui apenas na superfície externa dos corpos metálicos, não havendo eletricidade alguma na superfície interna de uma esfera oca - por mais finas que sejam suas paredes e por maior que seja seu grau de eletrização. A partir dessa observação, constatou que a força com que as partículas de eletricidade se repelem deve diminuir em proporção ao quadrado da distância que as separa.

Essa foi a primeira determinação precisa da lei das forças entre cargas elétricas. No entanto, como o francês Charles Coulomb publicou antes de Cavendish o resultado de experiências em que chegava às mesmas conclusões, a ele atribui-se a determinação dessa lei.

Outro importante trabalho do cientista inglês nesse campo foi a realização da primeira comparação experimental da facilidade de várias substâncias em conduzir eletricidade. Nessa investigação, ele fez várias descargas elétricas, de mesma intensidade e força, atravessarem tubos contendo substâncias diferentes. Recebendo os choques causados por essas descargas, foi modificando o comprimento ocupado por cada substância dentro do tubo, até receber choques iguais de todas elas. Concluiu-se, então, que suas resistências deveriam ser iguais mas que, naquele momento, o material que conseguisse proporcionar um mesmo choque através de uma maior quantidade de matéria seria, proporcionalmente, o melhor condutor. Os resultados obtidos por Cavendish nessas experiências são incrivelmente precisos. Ele se adiantava alguns decênios em relação a Ohm, a quem se atribui comumente a descoberta de que a rapidez com que a eletricidade atravessa um condutor é proporcional à tensão elétrica que a impulsiona. Além disso, em seu estudo sobre o torpedo, Cavendish provou que quando vários condutores são ligados, ao mesmo tempo, a um corpo eletrizado, a descarga não passa apenas pelo que apresenta menor resistência, mas se distribui entre os vários condutores; entretanto, a fração que passa em cada um deles é tanto maior quanto menor for sua resistência.

(Casa e laboratório de Cavendish)

De todas as experiências realizadas por Cavendish, no entanto, a que lhe trouxe maior fama foi a determinação da densidade da Terra.

Em princípio, não há grande dificuldade em calcular essa grandeza. De acordo com a lei da gravitação de Newton, é possível comparar as massas de dois corpos medindo suas atrações gravitacionais sobre um terceiro objeto. Assim, comparando-se a força de atração da Terra com a atração gravitacional de um outro objeto de massa conhecidas é possível calcular a massa do Planeta terrestre. A maior dificuldade decorre do fato de ser mínima a força gravitacional de objetos Pequenos. Para sua medida, é necessário utilizar uma balança extremamente delicada e impedir que surja algum outro efeito secundário capaz de perturbar a experiência da força de atração.

O aparelho empregado Por Cavendish nesse estudo, uma balança de torção, não era de sua autoria: fora projetado por John Micheil, um sacerdote que morrera antes de poder útilizá-lo. Cavendisb montou e aperfeiçoou o instrumento, conseguindo medir a atração gravitacional criada por uma bola de chumbo. Depois de fazer correções para compensar os erros devidos às correntes de ar, efeitos magnéticos e outras forças, acabou Por concluir que a densidade média da Terra é 5,45.

Atualmente, admite-se que esse valor seja um pouco superior ao calculado por Cavendish: 5,53. A diferença entre as duas cifras, no entanto, é menor do que 2%.

A determinação da densidade da Terra foi o último trabalho importante realizado pelo cientista. Nessa época, ele já se afastara de Londres, mudando-se Para Clapham. Vivia cada vez mais isolado, sendo considerado um feiticeiro por seus vizinhos. Os poucos visitantes que entravam em sua residência descobriam que a mobília e a decoração eram quase exclusivamente compostas de aparelhos científicos e livros. O andar superior havia sido transformado em um observatório astronômico e embaixo havia um laboratório de Química e uma oficina.

Já próximo dos oitenta anos, Cavendish ainda conservava seu vigor intelectual. Em fevereiro de 1810, no entanto, adoeceu. No dia 24 desse mesmo mês chamou seu criado e anunciou-lhe que ia morrer dentro de poucas horas. Ordenou-lhe que saísse, mas que retomasse dentro de um certo tempo e, caso se confirmasse sua previsão, comunicasse o falecimento a seu herdeiro, Lorde George Cavendish. O criado retirou-se mas, preocupado, violou o desejo de seu patrão e voltou ao quarto do doente. Este censurou-o e pediu-lhe que obedecesse à ordem recebida. Desta forma, retomando ao quarto na hora marcada, constatou que Henry Cavendish realmente estava morto.

Se, durante sua vida, os trabalhos que divulgara já eram elogiados em todo o mundo, a admiração dos meios científicos cresceu ainda mais quando se verificou que os artigos publicados por Cavendish formavam apenas uma pequena parte de seus estudos; a maioria permanecia inédita, em manuscritos guardados por seus parentes.

Logo que esses manuscritos começaram a ser examinados, notou-se que Cavendish havia se adiantado muito a seus contemporâneos e que, por não divulgar. seus resultados, havia furtado à ciência do século XVIII uma evolução mais rápida.

Cavendish, porém, pouco se importava com o julgamento e a opinião de seus colegas e era completamente indiferente à fama científica. Nunca se apressou em divulgar suas investigações; mesmo as que foram publicadas permaneceram antes engavetadas por anos, e só foram expostas como uma especial concessão aos outros cientistas. Ele fazia suas pesquisas por puro prazer pessoal. Porém, seja qual for a avaliação que se faça da personalidade de Henry Cavendish, um fato é inegável: como cientista, ele foi uma das figuras mais notáveis de seu tempo. 

www.saladefisica.cjb.net

ÍNDICE BIOGRAFIAS

ÍNDICE GERAL