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Biografias


Hiparco

  

 (190 a.C. - 120 a.C.)

No tempo de Hiparco a filosofia pitagórica havia estabelecido um preconceito meramente especulativo: o de que os astros descrevem movimentos circulares perfeitos. E havia também o preconceito aristotélico, segundo o qual a natureza dos corpos celestes é imutável. Meteoritos e cometas não eram tidos como fenômenos astronômicos, mas atmosféricos, coisas deste mundo imperfeito e não da eterna impassividade celeste.

Foram idéias como essa que Hiparco refutou, com base nas observações efetuadas ao longo de uma carreira científica de mais de trinta anos, provavelmente entre os anos 161 e 127 a.C. No curso desses trabalhos, Hiparco viria a desvendar um novo campo da matemática, a trigonometria.

Todas as fragmentárias informações sobre a obra, a vida e a pessoa de Hiparco originam-se de obras de terceiros. As possíveis monografias que escreveu sobre os assuntos de seu interesse foram perdidas, exceto um trabalho insignificante. Esse remanescente de uma obra presumivelmente vasta é um comentário sobre "Fenômenos", um tratado de astronomia escrito por Eudóxio de Cnido, contemporâneo mais jovem de Platão. O comentário estende-se ao poema astronômico de Arato de Soles, uma descrição de constelações. Salvo esse trabalho menor, o único conhecimento que se tem da obra de Hiparco está refletido em escritos posteriores, especialmente nos de Estrabão e de Ptolomeu.

Da vida de Hiparco sabe-se apenas que nasceu em Nicéia, em data desconhecida, e que trabalhou em Alexandria e Rodes. Nem mesmo o local em que existiu o observatório fundado por ele, em Rodes, pôde ser estabelecido; mas sabe-se com certeza que desenvolveu ali importantes atividades de 128 a 127 a.C.

Há numerosas referências a Hiparco no Almagesto, obra em que Ptolomeu reuniu o conhecimento enciclopédico da época. Há citações de muitas descobertas e generosos elogios à diligência científica de Hiparco. É principalmente através dessa obra famosa de Cláudio Ptolomeu que se puderam reconstituir partes do pensamento e das descobertas de Hiparco.

À primeira vista, pareceria inadmissível que um astrônomo inteligente e dedicado como Hiparco pudesse adotar a concepção geocêntrica do universo. Muito antes de Hiparco, astrônomos como Seleuco e Aristarco de Samos já haviam proposto a idéia de que a Terra se inclui num sistema planetário que tem o Sol como corpo central.

Mas essas teorias não poderiam ser confirmadas apenas pelas observações imperfeitas da época. Os heliocentristas, além disso, não tinham como contestar as interpretações dadas pelos geocentristas a fenômenos como a variabilidade do brilho e da velocidade dos astros, nem as mudanças aparentes de direção nas várias estações do ano.

A partir de observações sistemáticas, com os recursos da época, só seria possível deduzir racionalmente que a Terra fosse o centro do universo, e Hiparco cometeu esse erro, posteriormente difundido por Ptolomeu. Só no século XVI, depois de controvérsias que se estenderam até o século seguinte, é que a concepção heliocêntrica acabaria por se impor.

Uma prova de que Hiparco não adotou a concepção geocêntrica por preconceito (como tantos astrônomos posteriores) foi a coragem com que derrubou um preconceito aristotélico.

Em 134 a.C., surgiu uma estrela nova na constelação do Escorpião. Nova, na moderna terminologia astronômica, é uma estrêla "temporária". Distante e invisível, uma nova aumenta repentinamente seu brilho, torna-se visível e altera a configuração estelar durante algum tempo. Mas sua aparição é efêmera como uma vela que aumenta a intensidade de sua luz antes de apagar-se, brilho passageiro da nova corresponde um súbito aumento no consumo de sua energia, uma explosão deslumbrante muito breve.

Hoje, as novas são fenômenos relativamente comuns, diante da capacidade de observação aumentada pelos telescópios. Mas na época era algo que simplesmente não se admitia. Segundo o pensamento de Aristóteles, o céu era imutável em sua natureza íntima. Nessa esfera, tida como eterna e incorruptível, não poderiam surgir e desaparecer estrelas.

Hiparco rejeitou essa noção, diante do aparecimento da nova de Escorpião. Na época, era uma afirmativa comparável à de se dizer, hoje, que partículas atômicas elementares como o próton e o elétron podem sumir de repente. A atitude de Hiparco equivalia a "provar o contrário" daquilo que era admitido pelo consenso científico da época.

Convencido de que a esfera celeste não era imutável, Hiparco dispôs-se a fazer um mapa estelar, um catálogo onde pudesse registrar a luminosidade apresentada por cada estrela em sua época. A idéia era a de que a configuração dos astros poderia sofrer outras alterações além das periódicas, já conhecidas. E que essas alterações talvez só estivessem passando despercebidas pela lentidão com que se processavam.

Essa catalogação de Hiparco, sucessivamente mencionada em obras posteriores, permitiu demonstrar, de fato, que a luminosidade de muitas estrelas se alterou no decorrer dos séculos. Como essas variações são irregulares e aparentemente caprichosas, não seria possível deduzir hoje qual a luminosidade de uma estrela séculos atrás. Para isso, seria preciso que as alterações se processassem com regularidade, de modo a permitir a projeção das diferenças apresentadas em certa seqüência de observações.

Deve-se a Hiparco, portanto, a informação que permite estabelecer que Betelgeuse, segunda estrela de Órion em luminosidade, era de fato a primeira; há mil anos, seu brilho superava o da Rigel hoje a mais luminosa da constelação.

 

(Órion)

Astronomia é uma ciência matemática. Já na antiguidade, em meio a observações elementares, os astrônomos sentiam necessidade de desenvolver métodos elaborados de medição. Freqüentemente problemas astronômicos requerem que certas partes de figuras geométricas imaginárias sejam deduzidas de outras, já conhecidas. Em geral isso se faz mediante estudo das relações entre os ângulos de um triângulo; ou seja, trígonometria.

Hoje, qualquer livro elementar de física dá tabelas de senos, cossenos e tangentes. Já em 1700, o desenvolvimento da análise infinitesimal permitiu aos matemáticos calcular o valor das funções trigonométricas.

Hiparco não dispunha de nenhum recurso semelhante. Ainda assim, entregou-se a cálculos demorados e tediosos para elaborar suas tabelas, que equivalem às modernas. O resultado foi uma obra em doze volumes. Segundo Téon de Alexandria, esse tratado continha uma teoria geral da trigonometria e algumas tábuas. Essas tábuas tomavam como base a divisão do círculo em 360 graus (idealizada e adotada pela primeira vez por alguém) e davam o valor das cordas dos diversos arcos, grau por grau.

Embora a obra tenha-se perdido, diversas citações de outros autores permitem concluir que Hiparco, muito provavelmente, foi o criador da trigonometria.

Duas vezes ao ano, o centro do Sol seciona o equador terrestre numa configuração geométrica que torna o dia e a noite iguais em duração, em todas as partes do planeta. Essa posição do Sol em relação à Terra (ou vice-versa) é o equinócio, a que os astrólogos e astrônomos sempre deram muita importância.

Hiparco, porém, percebeu que a posição da esfera celeste havia mudado em sentido longitudinal, em relação a observações efetuadas uns 150 anos antes por Aristilo e Tímocari.

Através de um aparelho que seria o precursor do teodolito moderno, Hiparco confirmou que a distância das estrelas não era fixa na esfera celeste. A partir dessas observações, deduziu que o plano da eclíptica - plano que contém a órbita da Terra deveria ter-se deslocado em sentido anti-horário. Ou seja, deduziu a precessão dos equinócios.

As conseqüências foram importantes. Corrigiu-se o cálculo do ano terrestre e, com essa medida de tempo reajustada, Hiparco pôde efetuar previsões de eclipses do Sol e da Lua com um grau de precisão jamais obtido anteriormente.

Mas nem sempre Hiparco acertava. A partir dos estudos de Aristarco de Samos, procurou estabelecer a distância da Terra ao Sol. Mas seu cálculo - 1200 raios terrestres - resultou muito inferior ao verdadeiro. Ainda assim, era tal a autoridade científica de Hiparco, que esse cálculo errado foi transcrito no Almagesto e continuou aceito pelos astrônomos do mundo até o século XVIII.

Dois mil anos atrás, as pesquisas científicas não eram tão disciplinadas quanto hoje, nem tão especializadas. O mundo do pensamento vivia uma fase em que os pensadores ocupavam seu talento em mais de um campo. Por isso, além da astronomia, Hiparco viria a deixar contribuições importantes também no campo da geografia e da cartografia. Inventou a projeção estereográfica e tentou estabelecer uma rede fundamental, em que todo o globo terrestre estaria representado graficamente e onde qualquer ponto pudesse ser localizado com aplicação sistemática da latitude e da longitude.

Infelizmente, é impossível avaliar hoje toda a extensão e o valor da obra deixada por Hiparco. Admite-se que tenha sido importante, pela influência que exerceu sobre cientistas posteriores.

Ironicamente, o prestígio de homens como Cláudio Ptolomeu, que o próprio Hiparco ajudou a estabelecer, tendia a ofuscar seu trabalho pessoal. Os livros da época eram muito caros, copiados um a um, por encomenda. Não se faziam estoques prévios como hoje. Livros como o Almagesto de Ptolomeu ocupavam quase toda a capacidade dos escribas, porque continha um resumo do trabalho de Hiparco e um vasto volume de outras informações. Assim, o mercado de livros rejeitava os livros originais de Hiparco, muito especializados, extensos e caros.

Pouco a pouco, o esquecimento foi engolindo a obra e a vida do grande astrônomo. Hoje, não se sabe sequer onde ou quando Hiparco morreu.

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