Boletim Mensal * Ano VI * Novembro de 2007 * N.º 56

           

 

FADO TAMBÉM É CULTURA  (14)        

 

Alfredo Antunes

Calca na guitarra para ouvires fados de Coimbra  (para regressares ao Cantinho calca no retrocesso)

 

Comadres e Compadres:

 Fizemos, na última vez, uma pausa na seqüência natural das minhas crônicas, para dedicarmos a Amália Rodrigues uma espécie de oração, lembrando os oito anos da sua morte. Hoje vamos retomar o fio deixado. E vamos, definitivamente, enfrentar o campo mais difícil e movediço: falar do Fado de antes da Severa. Daquele Fado, por vezes só adivinhado e não explícito, dos séculos ou milênios anteriores. Repito: não vou embarcar em hipóteses tontas nem fazer história de conveniência. Vou refletir, com vocês, sobre dados reais que apontam sempre para um Fado-identidade; para um Fado que não só é português, mas que só português poderia ser. Um Fado que se foi construindo com os séculos, até atingir as formações musicais e expressivas  dos Séculos XVIII e XIX, donde se modelou o Fado que hoje é cantado.

              Já disse que em 1415 se “cantavam fados”, durante o cerco de Ceuta. Já disse que as grandes travessias marítimas, desde os anos de 1400, devem ter gerado formas específicas de se cantarem as saudades e a distância. Já disse que a interação com a expressividade dos escravos negros do Congo, Angola, Brasil e outros, fizeram, em Portugal e nas ex-colônias, uma simbiose de novos ritmos e de novas formas de Fado. Já disse que 700 anos de herança árabe na Península Ibérica emprestaram aos nossos cantares influências inevitáveis. Já disse tudo isto. Mas sinto que devemos ir mais fundo e mais longe. Devemos ir às possíveis raízes que expliquem, um pouco melhor, este jeito português, de sermos, ao mesmo tempo, melancólicos e guerreiros. Este jeito de gostar de Fado e de termos coragem para enfrentar uma “pega de caras”. Venham comigo, Compadres, e tenham um pouco de paciência!

              Como sabem, o povo português é o resultado de uma milenar mistura de povos. Dois, no entanto, constituem as suas grandes raízes: os Celtas (líricos) e os Lusitanos (aguerridos). A tese mais insistentemente invocada para explicar a Saudade, nos portugueses, é a sua vinculação à raça céltica. Pois o mesmo poderemos dizer do Fado –seu equivalente musical. Conhecer um pouco dos Celtas, é conhecer melhor uma parte da alma portuguesa, e  melhor entender o significado do seu sentir e do seu cantar.

              Povo historicamente ensimesmado e sonhador, os Celtas terão agravado este seu pendor saudoso, devido ao nomadismo permanente a que a sua inaptidão política e econômica os condenava. Sem capacidade organizativa eficaz, essas gentes viram-se historicamente empurradas até aos últimos promontórios ocidentais, sempre longe da terra, e de frente para o mar. Numa dialética de dominadores e dominados, eles terão assimilado intimamente esse jeito de nomadismo e peregrinação. (Nos tempos modernos, a Emigração parece dar resposta a esta dupla vertente psíquica: o nomadismo por necessidade econômica, e o outro tipo de nomadismo, mais importante e mais radical: a busca do longe). Provenientes do Próximo Oriente e, sobretudo, das regiões do Danúbio e da Floresta Negra, na Europa Central, as gentes célticas já se encontram, desde o Séc. VII a.C., disseminadas entre o rio Mondego e o Norte da Escócia, como que enclausuradas entre o verde e a água. E se o meio ambiente constitui poderoso agente sobre o psiquismo das populações, bem podemos ver uma relação direta entre a melancolia das paisagens e o sentimentalismo céltico. E como único elemento, apontando a libertação: o mar!  A este propósito, é curioso observar a coincidência de nomes geográficos que bordeiam as costas ocidentais da Europa. Revelam eles, não só as origens comuns das populações, mas também a configuração semelhante dos lugares designados por tais nomes. Ainda hoje se podem ver no mapa nomes como Galloway, Galway, Gales, Gália, Galiza, Galácia...,que não passam de variantes dum mesmo vocábulo. (Quem, dos Compadres, não ouviu falar da Epístola de S. Paulo aos Gálatas? Ou no time escocês de futebol chamado “Os Galáticos”?). Digno, igualmente de atenção, é a repetição do nome “Finisterra”, simultaneamente em Portugal, Galiza, Bretanha e Grã-Bretanha (aqui com a versão inglesa de “Land’s End”). É esta a sua marca: gentes confinadas entre o fim da terra e o desconhecido. Para o galego Elias Tejada, a presença do mar na vida do Celta transcende a de simples confidente ou símbolo de distância. É, ao mesmo tempo, o suscitador de um vago sentimento de pânico perante o ilimitado, como se o mesmo fosse presa de espíritos e forças ocultas. É o despertador da Saudade e, possivelmente, de um cantar que lhe corresponde: o Fado! “A Saudade e o Fado -escreve Tejada-  são sentimentos de fronteira, de confins”. Esta “cobiça do longe”, tão céltica e tão saudosa, pode assumir formas desvinculadas de paisagens ou do indefinido do mar. Pode revelar-se num sentimento mais genérico a que os autores chamam de: “anseio do impossível”. Talvez seja mesmo a forma mais comum e englobante para caracterizar esta dominante  dos “celtas modernos”(os emigrantes portugueses, por exemplo); a saber: um desejo de além e de indefinido, em que parece ter mais importância a ação de desejar do que o objeto desejado.”Navegar é preciso, viver não é preciso”... São eles os arautos do “distante na distância”, do desejo pelo prazer de desejar, do anseio por não se sabe o quê... Tanto o Celta como o “português navegador” – adverte-nos Rodrigues Lapa – “têm como característica principal o desejo do impossível, a ânsia do infinito, a saudade, enfim”. E já, antes, António Arroio (1909) dizia: “O Fado é o sonho aventuroso da alma celta”. Ou: “ a Saudade do marinheiro à proa das caravelas”.

              Amigos. Fui um pouco longe! Mas não importa. Talvez agora seja mais fácil entender que, assim como a Saudade faz parte do ser português, também a sua correspondente expressão musical –o Fado- o acompanha de perto. É da sua índole, porque da índole das suas raízes primeiras. Um dia, a Severa disse: “O Fado sou eu!”. Talvez cada português pudesse dizer o mesmo: “O Fado sou eu”. Isto, porque o Fado –assim como a Saudade- é, repito, constitutivo do seu ser e das suas raízes mais longínquas... Talvez agora se entenda melhor a letra daquele fado que eu, de vez em quando, cito: “Não é fadista quem quer/ Só é fadista quem calha!”. E também se entenderá melhor que o Fado só pôde ter nascido num povo cujo pathos mais profundo transporta nas veias a melancolia,   o sonho desmedido e a    coragem sem limites. E já que “Fado também é cultura”, temos que continuar. Falaremos de coragem, na próxima.

Até lá!