Boletim Mensal * Ano VI * Outubro de 2008 * N.º 64

           

           

FADO TAMBÉM É CULTURA (22)

Alfredo Antunes

Amigos! Antes de acompanhá-los pelas últimas décadas do Séc. XIX -  quando o Fado-canção, finalmente,  firmou os recortes básicos da gestualidade e modo musical com que atualmente se canta – lembrei-me de dedicar minha crônica de hoje aos lendários Severa e Vimioso. Nada mais justo, já que foi esta dupla que marcou esse século fadista e o próprio Fado.

A Severa- Já falei dela, em crônica anterior. Limitei-me, naquele momento, ao essencial, para não dispersar o fio que me conduzia. Hoje direi mais. Sobretudo pelo respeito que sua memória nos merece e sua arte fadista simboliza. Não se trata de um mito. Foi uma mulher real. Muito real, e símbolo emblemático daquilo que se podia definir como sendo a verdadeira “mulher desditada e romântica”. Nasceu em Lisboa em 1820 e morreu, tuberculosa, com 26 anos de idade. Seus pais, Severo Manuel e Ana Gertrudes, eram de Ovar. A Gertrudes, sua mãe, tinha os apelidos de “Barbuda”(por ter muitos pelos na cara) e de “Severa”(não tanto por ser casada com um Severo mas, sobretudo, por ser mulher temível que “usava faca na liga”e mantinha sete tabernas na Mouraria, três das quais na Rua do Capelão).Com o tempo, o apelido “Severa” passou para a filha, que deixou de ser apenas a linda Rosa Maria, da Rua do Capelão, para tornar-se a grande Severa da História. Não é mito,  mas história, o que dela ficou no imaginário popular, já que encarnou todos os ingredientes do Fado  da primeira metade do Séc. XIX. Jovem prostituta, explorada pela mãe, tocadora de guitarra, desditada pelos amores proibidos, voz inconfundível de mezzo-soprano, alta, morena e sensual, olhos de moura peninsular, a Severa tinha ares de mulher lfatal e desafiadora. Topava qualquer desafio fadista, em qualquer recanto da velha Lisboa. Batia o Fado como ninguém, desde o escurecer até manhã alta, quer fosse nas “frescatas das  Hortas”,  nos “descantes das esperas de touros no Campo de Santana”, nas “noitadas do Campo Grande” ou nos “Retiros fora de Portas”; além das suas “entradas” nos salões da fidalguia boêmia. Juntava-se, com freqüência, aos “seus”, nas baiúcas sórdidas por onde vicejavam os “deserdados” da sorte: bebia vinho ruim e pagava rodadas a todos os presentes. Dava-se ao respeito e não tinha concorrente à sua altura. Rodeada sempre, quer pela escumalha da vadiagem, quer por fidalgos, toureiros, marialvas, guitarristas e cantadores, pelas noites de luar, esperas de touros, serenatas de fado e aventuras estúrdias, a bela Severa cantava a “poesia da desgraça” com voz enternecida, umas vezes, com requebros brejeiros e irônicos, outras. Seus amores “proibidos” com o Vimioso, completaram sua aura de símbolo do Fado. Adoeceu em sua casa da Rua do Capelão e foi morrer na enfermaria dum hospital. Morreu de tuberculose e de desgosto. Desgosto, porque, a essas alturas, já o seu Conde de Vimioso a havia deixada por outra  (de nome Joana, e que, curiosamente, tinha a mesma alcunha de “Severa”; esta, sim, verdadeira cigana, que mais tarde foi viver para Évora).Com a morte da Severa, a Mouraria  e o Fado ficaram de luto.”Chorai fadistas, chorai/ Que a Severa se finou/ O gosto que tinha o fado,/Tudo com ela acabou”. E ao final de um ano, de novo se cantava pela Mouraria: “Morreu, faz hoje um ano/Das fadistas a Rainha,/ Com ela perdeu o fado/ O gosto que o fado tinha”. Seus amigos gravaram, mais tarde, sobre sua campa rasa, no cemitério do Alto de São João: “Aqui jaz quem era o Fado!”.Que Deus a tenha!

O Conde de Vimioso. D. Francisco de Paula Portugal e Castro era o nome do 13º (e último) Conde de Vimioso. Nascido em 1817, começou suas rusgas boêmias pelas tabernas da fadistagem (sobretudo a da “Rosária dos Óculos, da Rua do Capelão) ali pelos 20 anos, quando se apaixonou pela beleza do corpo e da voz da nossa Rosa Maria. Amores, no começo, às escondidas. Depois, às claras, contrariando os códigos da honra fidalga e burguesa da Lisboa romântica. Foi, sobretudo, o ar atrevido e brejeiro da Rosa Maria que seduziram o jovem Conde. Tornou-se ele também exímio na arte de “bater do fado”, e  passou a acompanhar a bela Severa pelas estúrdias da noite, sem jamais perder a fidalguia (“Nunca levou aos lábios um quartilho, em tabernas”, atesta uma testemunha da época), mas sem abdicar de seus novos amores: a Severa e o Fado. Os amores entre um fidalgo e uma prostituta eram temas bem ao gosto romântico (lembremos os amores entre Simão e Teresa, no romance de Camilo “O Amor de Perdição”). Daí que se tornaram objeto de inúmeros fados, a partir de então. A família Vimioso era uma das mais nobres de Portugal. Descendente direta do primogênito do  1º. Duque de Bragança, conta, na sua história, nomes e feitos que foram verdadeiras lendas vivas.(Uma curiosidade: foi a Casa dos Vimioso que deu o lençol no qual foi amortalhado Camões). Mas restrinjamo-nos ao nosso 13º.Conde.Era Senhor da Casa de Valença, Conde de Vimioso e Par do Reino por direito hereditário. Casado com a viúva do 2º.Conde de Belmonte, 20 anos mais velha, encontrou neste matrimônio um espaço fácil para sua vida de boêmio galante.Foi o mais assombroso toureiro e cavaleiro do seu tempo (foi, inclusive, o criador da “sorte cara a cara”; hoje chamada “à estribeira”) ; exímio caçador, fortíssimo de braço, e valente soldado nas hostes de D. Pedro IV.Era bonito, elegante, carismático e sedutor:  “sempre – diz A. Pimentel -  o alvo dos mais calorosos aplausos e o ídolo das mais formosas damas que lhe disputavam as preferências em amores”.Consumiu-se rapidamente. Morreu aos 47 anos de idade. Assim como a Severa, também a morte do Vimioso  comoveu a Lisboa fidalga e fadista: “Chorai fadistas, chorai/ Ah! Chorai a mais não ser,/ Que doutro tão fino amante/ Não torna o Fado a dizer”.. Que descanse em paz!Até à próxima, Amigos!