Boletim Mensal * Ano VII* Novembro de 2008 * Número 65

     

 

FADO TAMBÉM É CULTURA  (23)                

 

Alfredo Antunes

 

 

Amigos!. Antes de homenagearmos a Severa e o Vimioso, dizia eu, em minha crônica, que o Fado, no Séc. XIX devia considerar-se em duas etapas, ou duas vertentes: a 1ª. até à década de 60, mais ou menos, e a 2ª. até finais do século. Foi apenas uma forma didática que encontrei para melhor falar do tema. Até porque ambas as expressões fadistas continuaram convivendo paralelamente; ou seja: o velho Fado “batido” (misto de dança e canção) das estróinas dos tempos da “Severa” e dos”rufias”, e o Fado “limpo” (simplesmente canção), entoado, não só nos ambientes aristocrático-burgueses, mas já iniciando nos ambientes populares da Mouraria.

Vários fatores concorreram para esta “aristocratização” do Fado nas últimas décadas: o “marialvismo”, a substituição do “fadista” escroque por verdadeiros poetas e músicos de Fado, a profissionalização dos guitarristas, a subida do Fado aos palcos de “Revista” e o interesse comercial que o exótico estilo passou a despertar.

Falar de marialvismo é falar, antes de tudo, do famoso 4º.  Marquês de Marialva (D.Pedro de Noronha Coutinho), boêmio inveterado que, sem freqüentar o “bas-fond” de Lisboa (como farão posteriormente o Vimioso e outros fidalgos), criou um quase lendário ambiente de estróina nas lides das touradas reais. Foi, segundo a história, o maior cavaleiro tauromáquico do seu século, apenas imitado, décadas mais tarde, pelo Vimioso. A galhardia, nobreza e fascinação que este Marialva  inspirava, passou às gerações futuras como um ideal de “boêmia fidalga” a seguir-se.(Observação: quando Júlio Dantas (1901) encenou em teatro o Drama da Severa, tirado do romance, do mesmo nome, de sua própria autoria, a família Vimioso pediu que este personagem fosse substituído pelo do Conde de Marialva (descendente, à época,do velho 4º. Marquês)a Achavam “os Vimioso” que tal exposição em teatro seria desabonadora. Júlio Dantas concordou! Ridículo! E mais ridículo ainda quando se constata que esse tal de Conde de Marialva morrera em Paris, em 1823, quando a Severa tinha apenas três anos! E não me consta que, já nessa altura, se falasse em crimes de pedofilia!...). Mas continuemos.O “marialvismo” foi, pois, um fenômeno social em que a jovem fidalguia lisboeta  - “entalada entre preconceitos nobiliárquicos e religiosos;habituada a respirar uma atmosfera de sífilis, álcool e nicotina, e com os ouvidos bombardeados por termos como: adultérios, mancebias, sodomias, irmãs de Caridade, padres, lausperenes, touros e cavalos”  - se permitia vida solta de boêmia, fugindo aos códigos impostos pela classe. Tinha, como exemplo “inocentador”, o antigo Marquês de Marialva. Estes boêmios vivenciaram, primeiro nas vielas e tabernas, o “fado batido” e canalha. Depois foram, pouco a pouco, carreando-o,  já “limpo e comportado”, para dentro de seus próprios palácios, como novidade musical. Novidade que já começava a propagar-se, repito, entre as classes deserdadas da sorte: ou seja, o  fado-canção, ou, simplesmente: o Fado. Já em 1845  o  Vimioso apresentava a Severa, em seu  palácio do Campo Grande, para cantar, à guitarra, “fados-lamento” para os nobres e amigos mais íntimos. O exemplo foi seguido pelo Conde de Castello-Melhor, Conde de Anadia,  Conde de Oeiras,  Marquês de Fialho,  D. José de Almada e Lencastre,  D. António de Lacerda,  D. Fernando de Pombeiro, e muitos outros. Este tipo de fado-canção(como variante do fado-dança original, que ainda persistia nas tabernas e ambientes da ralé fadista), passa a chamar-se  de fado fino,  fado de salão ou fado elegante; e mais tarde de fado trinado. E seriam estes fados que, divulgados em partituras impressas, passariam dos pianos da burguesia e dos fidalgos para o “teatro de Revista”, com acompanhamento de grandes guitarristas, até à transformação final em produto de consumo com o aparecimento da discografia. (Estava tão “limpo” este Fado, que o próprio Bulhão Pato, em 1860, pensou em levar à ‘Quinta de Vale de Lobos’ um guitarrista-cantador para apresentar ao recluso Antero de Quental a novidade!).E tão longe ia este Fado-Canção nos meios aristocráticos e culturais que, logo após a inauguração do Teatro Dona Maria II, por seu Ministro da Cultura Almeida Garrett, se estreou um “quadro de fados”. Quadros estes que passaram a ser quase obrigatórios em todos os programas de arte e cultura. Começa-se, paralelamente, a policiar as prostitutas e afins, para “desocupar” os espaços que as damas burguesas pudessem freqüentar. O Fado foi, assim, também “expurgado de sua crueza e tom, às vezes canalha, original”.Não se permitiam mais aqueles fados produzidos nas baiúcas e “esperas”, cultivados “entre coxas” pelas prostitutas, as quais já nem às janelas podiam mais assomar. Os “marialvas” – esses “ vadios de estirpe nobre”, como lhes chamou B.Fogaça, em 1876 -  é que faziam a grande ponte. Quando desciam, obrigavam os cantadores a comportarem-se. Quando os faziam subir aos palácios, davam-lhes o aval de dignidade. Ficaram famosos os serões de fado no palácio do Marquês de Castello-Melhor (onde é hoje o Palácio do SNI, aos Restauradores). Levava para isso o maior guitarrista de Lisboa -  o João Maria dos Anjos que foi, mais tarde, professor de guitarra do Príncipe Real D. Carlos.

Resumindo: o Fado do Séc. XIX estruturou-se nas danças da viela, limpou-se nos salões aristocráticos e retornou à viela de origem, já feito Canção, e bem mais Fado, com dignidade, arte e nobreza...É Amália Rodrigues quem canta: “E a Mouraria/ Mãe do fado de outras eras/ Que foi ninho de Severas/ Que foi bairro turbulento/ Perdeu agora/ Todo o aspecto de galdéria/ Está mais limpa, está mais séria/ Mais fadista cem por cento//. Adeus tipóias/ Com pilecas e guizeiras/ Adeus rambóias/ Com cafés de camareiras/ Nada mais resta/ Da moirama que deu brado/ Do que a funesta / Lembrança do seu passado/ A Mouraria/ Que perdeu em tempos idos/ A nobreza dos sentidos/ E o poder duma virtude/ Salvou ainda/ Toda a graça que ela tinha/ Agarrada à capelinha/ Da Senhora da Saúde”...

Pois é! Compadres! Às vezes temos saudade, mesmo do que não era bom! A Mouraria perdeu-se, mas salvou-se a Capelinha. A Capelinha e...o Fado! O Fado de hoje! Um Fado novo, bonito, para, nele, cantarmos a Vida e o Destino! Até à próxima!