Boletim Mensal * Ano VI * Março de 2008 * Número 68

           

 

FADO TAMBÉM É CULTURA (26)

 

Alfredo Antunes

            Amigos! Esta minha utima crônica sobre o “Fado de Lisboa” será feita de retalhos: retalhos simples, mas carinhosos, que melhor poderão guiar meus Compadres até ao último apeadeiro do sentimento!

            Com a popularização -  via Teatro e outros meios -  o Fado, ainda no Séc. XIX,  logo se espalha pela Lisboa inteira, quer nas serenatas estudantis, quer na voz magoada dos cantadores de rua, muitos deles cegos, que o faziam por uma simples moeda no pires: fado triste, popular... mas limpo.

             Nos níveis superiores, ultrapassa, de imediato, as fronteiras urbanas de Lisboa, e sai pelo país afora. Primeiro, pela costa aristocrática: Estoril, Cascais, Sintra, Ericeira, por onde tinham pouso, ou veraneavam, os fidalgos e a alta burguesia. (Devido a variantes novas,chamavam a este Fado de“ fado saloio”). Depois, foi indo, cada vez mais longe: Mafra, Setúbal, Coimbra, Porto, Póvoa, e outras cidades. Dão-nos notícia disto, os apelidos de famosos cantadores ou guitarristas, tais como:Alfaiate de Mafra, Cantador de Setúbal, Eusébio Calafate do Porto,  Cego Monteiro de Coimbra, e assim por diante. Levado também pela fidalguia provinciana, o Fado começou a adentrar-se nos solares e palacetes do Norte onde, como nos diz Camilo, “os fidalgos queriam ir dar-se ares extravagantes de marialvas fadistas!”. Mas, apesar de longe, este Fado será sempre a  “ triste canção do sul” -  nas palavras de A. Pimentel (1901). Quer isto, por exemplo, dizer que o Fado que, durante várias gerações, se foi cantando em Coimbra é, ainda, o legítimo Fado de Lisboa: um Fado que traduz sempre a profunda crença numa sorte previamente marcada pelo Destino.Nos finais de 1800 cantava um estudante coimbrão: “ Não te canses a estudar/ Toma tento com a morte/ Que passar ou não passar/É tudo questão de sorte!”.Em Lisboa, pela mesma época, a fadistagem, não apenas a aristocrática mas,  a de muitas classes populares, concentrava-se nos chamados Retiros.             Ou seja, em locais “retirados” do Centro, lá para os lados do Lumiar, da Calçada de Carriche e do Campo de Santana. Eram os locais onde aconteciam as populares “esperas de gado”, a que me referia em crônicas anteriores. Só que agora, não existem mais os tais “fados dançados”, com aquele viés desregrado e velhaco.Agora canta-se um Fado, mais Fado de verdade! Fado limpo e mais bonito! Agora, até a Mouraria “Está mais limpa, está mais séria/ Mais fadista cem por cento!”. Mas, com o tempo, estes belos “Retiros”, com suas desgarradas ao luar “fora de portas”, foram perdendo força e freqüência. As mudanças sociais do fim do século mudaram também os hábitos lisboetas. Apareceu o automóvel (luxo para poucos); vão rareando as sieges, as tipóias e boleias; vai a bela Lisboa perdendo muito do seu romantismo boêmio. Não havia já como ir para os “Retiros” distantes. E aí, começam a surgir as chamadas “Casas de Fado” (também apelidadas, marotamente, de “casas de sofrer”!).E serão estas Casas que , a modo de “santuários de ancestrais emoções”, preservarão, não o Fado em si – que este é da Raça, e não morre! -  mas esta maneira nova de cantá-lo, que o século da Severa inventou e que ainda perdura, no essencial, até nossos dias. Mas, Compadres, confesso que chego a ter pena de se terem perdido os “Retiros fora de Portas”, os “Retiros das Esperas”. Tenho, sobretudo, pena de se terem perdido os românticos boleeiros de Lisboa, que eram já parte integrante da fadistagem e da boêmia... Estou a lembrar-me, por exemplo, daquela alegre canção do filme“ A Severa”(1931), a qual, sobre um boleeiro chamado Timpanas -  e numa gíria bem saloia -  dizia:”Calça azul e bota alta/ A reinar com toda a malta/É o rei das traquitanas/ O Timpanas// Com pinóia na boleia/ E chapéu à  paduéia/ Faz juntar o mulherio/ No Rossio//Quando leva as bailarinas/ Do teatro ao Lumiar/ Bailo eu e baila a Céu/ Com as pilecas a bailar// O boleeiro de Lisboa/ Não é lá qualquer pessoa/Que as pilecas dão nas vistas/ São fadistas// Cavalos de alta escola/ O das farras toca viola/ E o da sela, que é malhado/ Bate o fado// Já andei em tanta ´spera/ Já levei tanto boléu/ Já conheço tanto os bois/ que lhes tiro o meu chapéu!...”.

            É isso aí! Por esta “pintura” poética, dá para sentir bem o garridismo deste personagem romântico, que era o boleeiro, numa Lisboa de 160 mil habitantes (dentre os 4 milhões que tinha Portugal), em finais de 1800! Tudo muda! Até o Fado! Muda, mas  não se perde! E não se perde, porque esse caudal milenar  segue por dentro, pelos caminhos da alma! E quando se canta, em qualquer tempo ou lugar, ele é a soma de tudo aquilo que o foi formando. E se o Cantador for, de veras, fadista, consegue fazer explodir, em sua gestualidade apaixonada,toda essa fatal saga  de amor e  dor. Enquanto  sua voz canta os versos,  seu corpo dança o ritmo, e sua alma denuncia o destino. Todo o século da Severa está “agarrado” ao Cantador de hoje: quer a vertente popular – a das danças rituais, fados “batidos” e de “aparar”, cantos ao desafio, desgarradas e “corridos” – quer  a vertente elitizada, com seus eternos “fados- canção”. E em cada movimento que insinue ou simule alguma destas vertentes, o Cantador iluminado, vai  mostrar a quem com ele sofre e se alegra que, naquele momento, ele está sendo o último elo duma corrente ôntica e milenar que nos constitui como Raça e como  Povo!    Bem hajam, Compadres! Até à próxima!