Em Catalão, BG volta em
1854 para Ouro Preto
por Armelim Guimarães
(do livro inédito "Bernardo Guimarães, o romancista da
Abolição")
Como vimos no capítulo anterior [ver
BG no sertão goiano], Bernardo Guimarães em dezembro de 1854, ou meados de
1855, de acordo com alguns historiadores, voltou para a sua cidade natal. Ele
estava em Catalão (Goiás), para onde foi -- saído diretamente da Faculdade de
Direito de São Francisco -- exercer os cargos de juiz municipal e delegado de
polícia.
Uma das maiores satisfações de Bernardo Guimarães, neste retorno a Ouro
preto, foi receber a visita do poeta Aureliano José Lessa, bom amigo das
Arcadas paulistanas.
Escreve Basílio de Magalhães:
"Que Bernardo de Guimarães, por essa época, já estava de novo em sua
cidade natal, confirma-o a interessante anedota seguinte, que se me deparou
casualmente num trabalho de Couto de Magalhães, com o título de "Traços
Biográficos sobre poetas brasileiros", inserto na "Atualidade",
nº de 28 de novembro de 1861: Aureliano Lessa deixara, em fins de 1854 (mais
provavelmente em 1855), o cargo que exercera em Diamantina, e, montado numa
besta, dali seguiu para Ouro Preto, onde logo se encontrou com Bernardo
Guimarães, em cuja casa se hospedou".
E vem o caso, com a redação do informante da "Atualidade":
"Uma tarde, grande porção de povo parava na rua de São José e olhava
espantada para uma escada da casa onde morava o poeta. Não se podia distinguir
bem claramente qual era o objeto que atraía a curiosidade, e os transeuntes
diversificavam nas opiniões que davam. As discussões foram interrompidas por
um estrepitoso rincho; o objeto que estava na sacada era a besta em que
Aureliano viajava e que ali sido posta, dizia ele, para distrair-se de uma
profunda melancolia, que a havia atacado. Ele e Bernardo Guimarães, postados
atrás de uma rótula, gozavam, com estrepitosas gargalhadas, do pasmo dos
transeuntes."
Acrescentam outros que Bernardo, às ocultas, puxando o cabresto, obrigava a
cavalgadura a abaixar reverenciosamente a cabeça, fazendo mesuras aos
transeuntes que olhavam para a sacada.
E foi então que, em companhia de Aureliano Lessa, celebrou-se a ceia do peru,
para matar as saudades das ceias escolásticas da Paulicéia. Carlos José dos
Santos, no seu "Bernardo Guimarães na intimidade", é quem nos conta
o episódio. O romancista mineiro amava os ágapes e comezianas íntimas,
"nas quais, rodeado de amigos, pudesse conversar, recitar e ouvir versos.
Em certa ocasião, ceavam peru, ele e outros. Bernardo e alguns amigos colocavam
uma quadra de versos em cada um dos palitos que crivavam naquele assado. Eram
admiráveis essas improvisações de Bernardo; ele próprio declarou-se que
jamais se sentira tão inspirado, lamentando não haver guardando alguns desses
versos."
O Conselheiro Francisco Diogo Pereira de Vasconcelos criou o Liceu Mineiro de
Ouro Preto. Para a sua instalação foram preparados inúmeros e pomposos
festejos, com muita música e foguetório. Para expressar o reconhecimento do
povo ante tão notável melhoramento, uma comissão convidou o poeta para falar
em nome da comunidade ouro-pretana, no ato inaugural. E que seja um íntimo do
escritor quem nos reproduz o acontecimento:
"Convidado para falar na instalação do Liceu Mineiro, criado pelo Dr.
Vasconcelos, presidente de Minas, esqueceu-se (Bernardo) e ficou até as 4 horas
da madrugada, em uma soirée. José Catta Preta e João Roberto foram
acordá-lo e lembrar-lhe do seu compromisso para as noves horas do dia. Os
moços deram-lhe umas costas de cartas e pedaços de papel, e ele com tanta
eloqüência e erudição desenvolveu seu discurso que arrancou lágrimas ao
eminente estadista Vasconcelos. Salientou mais em suas eloqüências palavras a
solicitude e cuidado do excelso administrador pelos negócios atinentes à
instrução pública." (Carlos José dos Santos, op. cit., págs. 14 e 15).
Por essa quadra de sua vida, passou Bernardo Guimarães alguns meses em Araxá.
Ali compôs Uma filha do campo, em fins de 1855, e
Lembrar-me-ei
de ti, em princípios de 1856, a primeira dessas poesias incluída no volume
"Poesias Diversas" e, a segunda, na coleção "Evocações".
Era lá, na aprazível Araxá, que existia o Pau da Binga, sob o qual se
realizavam sessões macabras, com vampiros, esqueletos, tábuas de caixão
mortuário, rito que fez Waldir Costa lembra-se da mefistofélica Chácara dos
Ingleses da Paulicéia, e das folias ali pontificadas pelo brincalhão de Ouro
Preto:
"Contam os cronistas que mais tarde, sob a cúpula do Pau da Binga, uma
nova sociedade se formou e celebravam seus ritos metuendos. Os macumbeiros
associavam-se sob o nome de mondrongo, numa irmandade de feitiçaria, nos moldes
das celebérrima Epicuréia, fundada em São Paulo por Bernardo Guimarães, o
romancista, e seus contemporâneos de escola." ("Araxá -- Da
Maloca ao Palácio", edição de Joaquim Oliveira, 1950, pág. 35).
Comparação malpropícia. Não cabe estabelecer semelhanças entre as bruxarias
de mera pândega acadêmica com o satanismo.
Em princípio de 1856, o poeta voltou para Ouro Preto para dar aula no Liceu
Mineiro.
Foi de volta de Araxá que o poeta se encontrou com o professor Carlos José dos
Santos, que seria seu íntimo companheiro e bom amigo em Ouro Preto. O próprio
Carlos dos Santos é quem informa em seu opúsculo:
"Conheci-o em 1866, já como professor de Gramática, Filosofia e Retórica
do Liceu Mineiro. Suas aulas eram boas e muito freqüentadas. Em certa ocasião,
como tivesse alunos para apresentar a exame, escreveu sem seu relatório:
Quanto a alunos, nicles!
São uns vilipêndios;
Quando não têm cobre
Vendem os compêndios!"
Santos conta outro episódio:
"Lecionava Filosofia o Dr. Lagoa. Seus alunos: Dr. José Filipe Correia,
Cândido de Oliveira e eu. Saímos juntos do Liceu para nossa casa, na subida da
rua das Cabeças. Os dois companheiros pouco se demoraram. Retiraram-se.
Bernardo, que morava defronte, apresentou-se logo e fomos para a horta, muito
bem tratada e, portanto, atraente. Nas relvas que bordavam um lindo canteiro,
estenderam lenços e assentaram-se. Houve algum silêncio. Bernardo rompeu:
-- Lagoa, disse ele. Estou morto.
-- Que diabo! e você está falando!...
-- Hoje o Manuel Olinto matou-me. No momento que estabelecia um código para os
maçantes, ele mesmo o infringiu, maçando-me por espaço de uma hora."
Transcreve então Carlos dos Santos, a seguir, uma quadra-mote que o Dr. Lagoa
naquele instante propôs a Bernardo, em tom de desafio. Prontamente o
vila-riquense respondeu com a sua glosa, improvisando, com tão extraordinário
humorismo, uma crítica ao nariz do Dr. Lagoa, que este se retirou enraivecido.
Foi ainda quando voltava de Araxá que o vate encontrou, em Ouro Preto, seu
grande amigo Flávio Farnese, então advogado na capital da Província mineira,
e que se achava ali, naqueles dias, no desempenho do cargo de procurador fiscal
de Minas Gerais e, ainda, no de promotor da comarca. Dentro em pouco, iria
Bernardo conviver com ele na Corte (Rio de Janeiro).
Cerca de dois anos viveu então Bernardo em companhia do pai. Passou esses meses
lecionando no Liceu de Ouro Preto e escrevendo muito, em prosa e em verso.
Em 14 de junho de 1858 desaparecia o venerando João Joaquim da Silva
Guimarães. Estava com 81 anos.
Bernardo sentiu-se só e vazio. Os irmãos estavam longe. O mano Jaques Joaquim,
desditoso jovem, já era falecido. Dona Constança, sua tão saudosa mãe,
também, havia muito, já se encontrava sepultada em terra sertaneja. Agora era
o velho pai que o deixava, para sempre, para ir ocupar um jazigo na pequena
necrópole anexa à igreja de São José, numa tarde triste e fria, momento em
que os sinos de São Francisco, do Rosário e do Pilar, choravam o passamento do
estimado e provecto parlamentar e também poeta. "Mas o tempo é o melhor,
senão o único consolador das mágoas passageiras da vida", diria o
próprio Bernardo no seu livro "O Seminarista".
Restavam-lhe, porém, os bons e leais amigos.
Pelo que se deduz da informação de Sousa Ataíde, deve ter sido por essa mesma
época que Bernardo passou, cavalgando o seu Cisne, por Cachoeira do Campo,
quando, então, ficou conhecendo a mãe de seu amigo professor Carlos José dos
Santos. E é Carlos mesmo quem nos conta esta passagem:
"Anos antes que o poeta Guimarães se casasse, observei que havia nele algo
de apaixonado. Indo ele a Cachoeira do Campo, muito simpatizou com minha mãe.
Perguntou qual o nome dela, e sabendo que se chamava Constança, muito se
alegrou:
-- Vou cantar esse nome em bonitos versos.
Não se lembrou mais e nem eu falei-lhe nisso. Soube, depois, que ele tinha uma
sobrinha com esse nome."
Natural foi que Bernardo Guimarães se enternecesse com a menção desse nome,
já que era o de sua falecida mãe, sempre presente na sua profunda saudade. É
estranhável, contudo, que Carlos dos Santos, tendo sido tão íntimo de
Bernardo Guimarães, ignorasse que a mãe do escritor também se chamava
Constança, nome que o poeta daria a uma de suas filhas.
Foi durante essa quadra que Bernardo
produziu sua primeira obra em prosa, uma novela baseada numa lenda goiana, que
ele intitulou O Ermitão de Muquém ou "História
da Fundação da Romaria de Muquém na Província de Goiás", subtítulo
acrescentado por influência do batismo dos dramalhões da época, que sempre
exigiam uma alternativa de títulos.
É a história do valentão
Gonçalo, que cometeu um monstruoso crime por causa da Maroca. E é Gonçalo
que, arrependido, torna-se em ermitão. Neste romance de estréia o autor ainda
está embevecido pelos sertões goianos.
Este romance já alcançou várias edições. A Editora Anchieta publicou
várias obras famosas em formato de revista. A publicação de nº 11, de
novembro de 1947, foi "O Ermitão de Muquém".
Para salientar o bom humor do boêmio de Vila Rica, Carlos José dos Santos
conta o seguinte episódio:
"A mucama de João Joaquim derrubou uma estatueta, um pastor tocando a sua
flauta. Um dia Bernardo a encontrou "chorando copiosamente por haver
quebrado o bibelô, que ela tinha sobre a mesa. Imediatamente, tomando um
pedaço de papel, [Bernardo] escreveu estes versos:
Aqui, em cima desta mesa,
Eu tinha um belo catita,
Com a carinha tão bonita,
Tocando o seu flautim...
Coitado do meu catita!
Que teve o mais negro fim...
Valei-me Senhor dos Passos!
Meu catita está sem braços,
Não pode a flauta tocar!
Uma tão triste dor
Hei de sempre lamentar..."
E acrescenta o memoralista:
"Vão os versos, que guardei de memória. É possível que tenha escapado
alguma incorreção, quebra de métrica etc., que o poeta não cometeria. Após
tantos anos, é natural alguma imperfeição, que deve ser atribuída à
memória do narrador e nunca ao excelso vate patrício."
No silêncio de uma tarde, no alto das Cabeças, estava Bernardo Guimarães em
seu escritório, dando os últimos retoques no romance de estréia, quando a
mucama lhe apareceu, para dizer-lhe que um cavalheiro acabava de chegar e se
chamava pelo "sô dotô". Era o coronel Antônio da Silva Paranhos,
seu amigo e admirador de Catalão. Vinha buscar o poeta.
De volta para Goiás? Nada disso! Paranhos queria-o na Corte.
Aqui aparece um engano de Felício Buarque. Diz este que Couto de Magalhães,
passando por Catalão, e encontrando Bernardo em uma casa sem nenhum conforto,
pedira ao Coronel Paranhos "seus bons ofícios, a fim de convencer o poeta
de sua colocação em melhor centro, porque pensava não se dever perder tão
grande talento nesse remoto sertão. O Coronel Paranhos, com o fim de
corresponder ao pedido, conseguiu, em 1859, levá-lo a título de passeio para o
Rio de Janeiro e lá o deixou entregue aos cuidados de Flávio Farnese, seu
colega do curso acadêmico e redator da "Atualidade", reputado órgão
partidário de então." ("Bernardo Guimarães", no
"Almanaque Alves" de 1917).
Mas isto se deu em 1858. e não em 1859.
Não obstante Felício Marque declarar-se escudado em Ricardo Paranhos, filho do
Coronel Paranhos, o equívoco é evidente. Houve aqui outro anacronismo na vida
do vate, reproduzido até por João Alphonsus na "Revista do Brasil"
(nº 35, de maio de 1941) e outros cronistas, erro já notado por Basílio de
Magalhães: "E o 'equívoco de Felício Buarque, ao dar esses episódios
como acontecidos em 1859, é o asseverar que, nessa data, Couto de Magalhães ia
assumir a presidência de Goiás, pois a posse do notável brasileiro em tal
cargo foi a 8 de janeiro de 1863". ("Bernardo Guimarães", pág.
37).
Um encontro de Bernardo Guimarães com Couto de Magalhães se deu realmente em
Catalão, e até com um incidente anedótico, mas depois, em fins de 1862 ou
janeiro de 1863, época em que o romancista havia voltado para aquela localidade
do planalto central. Couto de Magalhães encontrara-o, na verdade, num velha
casa sem o mínimo de conforto.
Pelo que se infere da informação de Souza Ataíde, o pedido do ilustre e
então futuro presidente de Goiás ao Coronel Paranhos foram feito
anteriormente, não em Catalão, mas em São Paulo, quando o culto autor de
"O Selvagem" ainda era estudante.
Couto de Magalhães, brilhante inteligência que depois tanto se notabilizaria
por suas obras e estudos, e que, então, cursava o penúltimo ano do curso
jurídico, sugeriu ao Coronel Paranhos (que, de passagem por São Paulo,
deveria, logo depois, ir à Corte) levar o vate mineiro para a capital do
Império, onde teria oportunidade de revelar ao público o seu gênio, que,
aliás, José Vieira Couto de Magalhães havia muito conhecia através da fama
que o boêmio deixara, na Paulicéia, de homem simples e dono de talento
admirável.
Assim foi feito. Paranhos, tendo de ir à Corte, não o fez sem primeiro ir a
Ouro Preto. Conhecendo de sobra o interior de Bernardo Guimarães, e certo de
que, de outra maneira, o escritor recusaria acompanhá-lo, o Coronel, simulando
muito tédio e aborrecimentos, pretextou necessitar de uma boa e amiga companhia
para o resto da caminhada, e sse amigo e companheiro ideal só podia ser mesmo
ele, Bernardo, com que poderia distrair-me, trocando idéias e ouvindo
divertidas histórias durante a longa viagem.
Bernardo, à vista de um favor a fazer, e como devia imensa gratidão ao
generoso e nobre Coronel Paranhos, consentiu, de boa vontade, em acompanhá-los
ao Rio de Janeiro.
Já lá estavam, no Rio, os versos das "Inspirações da Tarde" para
serem incluídos na segunda edição dos "Cantos da Solidão".
Levara-os Flávio Farnese.
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A foto acima, da coleção do
Museu da Inconfidência, é uma das primeiras tiradas de Ouro Preto. Foi feita
entre os anos de 1870 e 1875, sendo portanto da época de Bernardo Guimarães,
que nasceu em 1825 e morreu em 1884. Nesta foto, em primeiro plano vê-se a
rua Alvarenga, no bairro das Cabeças, no qual BG morava. À direita,
destaca-se parte do casario e, à esquerda, uma casa com vasto quintal.
Em segundo plano, à direita, aparece a Igreja do Pilar e o circo armado na
região Praia do Circo. Ao fundo, à direita, o Morro da Forca. À esquerda,as
igrejas de São José, Nossa Senhora do Carmo, Santa Efigênia e o prédio da
Casa de Câmara e Cadeia. No site Ouro
Preto de Ontem esta e outras fotos da mesma época poderão ser vistas em
tamanho maior e devidamente legendadas.
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