Capítulo
21 do livro inédito
"Bernardo Guimarães, o romancista da
Abolição"
Professor em
Congonhas
do Campo e em Queluz Armelim
Guimarães
O presidente da Província, quando menos se esperava, suprimiu a
cadeira de Retórica, Filosofia e Poética do Liceu Mineiro de Ouro
Preto. Bernardo Guimarães ficou desempregado. De trabalhos
forenses, nem queria ouvir falar! Valia-o, a ele e à família, a farta
mesa de D. Felicidade. Que felicidade!
Em 1870, deram-lhe
interinamente as cadeiras de Filosofia e de Português do colégio
de Congonhas do Campo [a cidade passou a se chamar apenas
Congonhas - nota do editor do site].Em 1873, obteve o poeta a
nomeação de professor de Latim, Francês e Filosofia do Colégio
de Queluz, cidade hoje chamada Conselheiro Lafaiete. Voltou para ele
o viver de cavalgante, às vezes sob chuva, por estradas lamacentas,
e os pousos de favor, em casas de velhos amigos – tinha-os por
toda aquela redondeza – nas quais permancia dois ou três dias.
Aliás, a vida assim não lhe era nada de dissabores.
Bernardo Guimarães
amava os passeios no lombo de cavalgaduras. Era um experiente
marialva. Montava e dominava animais xucros sem se lançar da sela,
com habilidades e destreza de meter inveja em muitos peões.
“Tinha o gênio do boêmio e participava o delírio ambulatório
de judeu errante, caminhando sempre;mas a feição do desagrado não
aprece no seus versos”, disse de Bernardo o escritor Artur Motta,
na “Revista do Brasil” (1920).
Queluz, onde agora
era professor, fora um dos cenários da revolução liberal de 41,
da qual, nos seus 17 anos, ele participara como combatente das forças
legalistas. E fora dali havia então poucos anos, que partira um
pelotão de cerca de 25 voluntários destemidos para engrossar a
primeira brigada mineira que partiria de Ouro Preto para a guerra
com o Paraguai. Era a cidade, pois, que estava na imaginação do
poeta, carregando-a de reminiscência, de saudade e de civismo.
E lá estavam, na
lendária Congonhas, as estátuas de pedra-sabão de Aleijadinho. O
que o romancista ajuizava a respeito dessas esculturas, sobre as
imperfeições que lhe causaram aquelas obras do imortal poeta, ele
o fixaria numa das páginas de “O Seminarista”. Bernardo não
gostadas das obras do escultor, seu conterrâneo.
Pois foi durante
esse novo período de judeu errante que lhe nasceu o segundo filho,
a 13 de janeiro de 1870. Era o Horácio. Tinha de chamar-se assim, já
que estava no Hamlet, ao lado de outro Bernardo...
Se, porém, um berço
lhe sorria, um túmulo o magoava profundamente. Falecera, então, o
mano padre Manuel Joaquim da Silva Guimarães. No ano seguinte,
outro sepulcro surgiria para entristece-lo: desaparecia Flávio
Farnese, al qual dedicou, à guisa de necrológico, um sentida
poesia, incluída que foi na “Novas Poesias”.
Embora pouco
compensador o magistério, Bernardo dele não se afastaria, nem em
troca de atrativos da Corte e dos engodos da magistratura. “O Sr.
Bernardo Guimarães – observa José Carlos Rodrigues na crítica
às “Lendas e Romances”, publicada no “Novo Mundo”, de
24-6-1872 – ufana-se muito em descrever os costumes de sua Província
natal, e, com toda a razão, prefere cultivar o belo, que há neles,
a inspira-se na vida de luvas e pelica de lenços almisacarados das
rodas parisienses da nossa sociedade”.
“Chamado para
fazer parte do corpo docente do Colégio de Congonhas do Campo –
recorda-se disso Carlos José dos Santos – deram-lhe a cadeira de
Filosofia. Ficou contrariado com o procedimento do Reitor do Colégio,
a quem pedira a cadeira de Português e Retórica. Na primeira aula,
estavam todos de batina, e Bernardo começou solenemente:
Vou pregar um sermão
de São Coelho
Com seu barrete vermelho.
Nos tempos da moura torta,
Viu-se um sapo de espadim
Que perguntava em latim
Pela casa da mosca-morta.
...............................................
Era a maio do
bestialógico que o
levava a essas brincadeiras.
Nunca o escritor de
Minas se sentira tão atraído pela natureza como nessa quadra de
sua vida. As viagens semanais a Congonhas do Campo ou a Queluz
avivaram-lhe o plectro e a imaginação. Delineara dezenas de
romances, dos quais poucos foram realmente escritos. As ideais
desfilavam apressadas em seu cérebro. Todas as suas histórias
teriam por cenário a natureza. Nada de salões e de grandes
cidades! Tudo seria mesmo no mato, no sertão, nas faisqueiras, nas
fazendas.
Ali não esta “a
própria natureza – pergunta Machado de Assis – opulenta,
fulgurante, vivaz, atraindo os olhos dos poetas, e produzindo páginas
como as de Porto Alegre e Bernardo Guimarães?” (Críticas Literárias”,
edição Jackson, página 75).
Dedicando-se agora
mais à prosa que ao verso, o romancista mineiro deitou, por uns
tempos, a um canto, a sua harpa, esquecendo-se das aguais de
Hipocrente, para empunhar a paleta do pintor. Notou-o Machado de
Assis.
Foi a época em que
Bernardo escrevia sem parar, às vezes até mesmo a cavalo, fazendo
de mesa o Atlas de Géographie de Grosselin-Delamarche, que ele
apoiava no santo-antônio d sela. Distraía-se tanto nessas tarefas
que, às vezes, segundo Sousa Ataíde, o animal “ficava à
deriva”, levando-o por outro caminho, e “quando o romancista
imaginava estar chegando a Congonhas ou a Ouro Preto, é que
percebia estar em outra localidade, na qual, no entanto, sempre
havia amigos que lhe garantiam hospedagem, de braços abertos e a
qualquer hora”.
Em 1871, publicou
três histórias, enfeixadas em um só volume a que deu o título de
“Lendas e Romances”, lançamento de H. Garnier.
O primeiro destes
trabalhos é “Uma história de quilombolas”, sobre o qiaç asso,
opina José Carlos Rodrigues: “Este romance, como o
“Garimpeiro”, é notável pelo vigor e riqueza das cores, em que
o autor pinta os seus quadros de vida do campo e da roça, no
Brasil”. (“Novo Mundo, de 24-6-1872).
Nesta obra, Jacques
Raimundo colheu vocábulos para o seu estudo “O Elemento
Afro-Negro na Língua Portuguesa”. Mateus Cobra e Anselmo gostam
de uma mesma beldade, a Florinda, daí o drama de aventuras e mil
peripécias no quilombo do Zumbi Cassange. Parte desta obra foi
vertida para o francês por Victor Orban.
O segundo trabalho
é a “Garganta do Inferno”. baseado numa lenda corrente em
Lavras Novas. É a história sinistra de Lina. Segundo assevera Basílio
de Magalhães, foi baseado nesse conto que Otávio compôs o drama
“Sonhos Funestos”, publicado em 1895, na “Revista
Brasileira” e editado em volume pela Casa Laemmert. A Lina de
Bernardo é a Luísa de Rodrigo Otávio; Gertrudes, a Mariana;
Daniel, o Fernando. Frederico dos Reys Coutinho inclui esse trabalho
do vila-riquense entre os “Mais belos contos de Amor”, edição
de 1945, da Editora Vecchi.
A terceira parte de "Lendas e Romances" é um
interessantíssimo conto intitulado "A Dança dos Ossos".
Cirino, o barqueiro do Paranaíba, conta como foi a aparição do
esqueleto de Joaquim Paulista, à beira do caminho. Teria Bernardo
Guimarães encontrao a inspiração na visão bíblica de Ezequiel?
Como causo do Cirino, vem o da vaca, na estrada, à noite, que deu a
ilusão de dois negros carregando um defunto numa rede. Já neste
século, o primoroso estilista Hugo de Carvalho Ramos, contista
goiano. nas suas "Tropas e Boiadas", reproduziria, sem
cerimônias, sob o título de "À beira do pouso", esse
episódio imaginado por Bernardo Guimarães, aproveitando-lhe
integralmente todo o entrecho. Plágio indubitábel, não há
dúvida.
Remetidos ao Garnier os originais de "Lendas e Romances",
principia imediatamente Bernardo uma outra novela. Agora é "O
Garampeiro". Aproveita o escritor os lugares que conhecia nas
suas andanças pelas bandas de Catalão. Elias é o novo herói, que
se torna garimpeiro para merecer a mão de Lúcia, a filha do
orgulhoso Major.
Esse romance foi
vertido para o francês por Victor Orban. Para o teatro, adaptou-o
Joaquim Costa Mattos, com o título de "Artur e Leonor",
representado pela primeira vez em 1896, na cidade de Barbacena.
"Além disso, "O Garimpeiro" já teve a honra de ser
posto em filme cinematográfico", observa Basílio de
Magalhães.
Esse romance, no dizer de Sílvio Romero, "é uma narrativa
local, é romance de costumes. Tem boas páginas descritivas,
regulares quadros de gênero. Deste número é a 'cavalhada', que
corre logo no segundo capítulo". Na Bagagem, palco das cenas
emocionantes do romance, e onde Simão colhiai os diamantes, foi,
realmente, naquela época, uma região muita rica de gemas. Lá se
encontrou, em 1853, a célebre "Estrela do Sul", que deu
nome ao lugar, bem como o diamente de Dresden, dividido nas
"custosas pedas que fulgem hoje dos escrínios de um príncipes
indiano", e ainda o valioso diamante de coroa de Portugal,
"maravilhosa luminosa, achada nas grupiaras da fabulosa
região, e o número nunca visto de pedas catadas nas margens"
do "milionário curso d'água" do lugar. (Waldir Costa,
"Araxá", 1950, página 138).
Vê-se, pois, o
cuidado de Bernardo Guimarães em emprestar aos seus romances a
realidade do cenário. "A cidade de Patrocínio, no Oeste de
Minas, situada no alto de um espigão, ao pé da serra do Cruzeiro,
donde se divisam, em todas as direções, os mais deslumbrantes
panoramas, mercê dessa riqueza de aspectos topográficos, já teve
a honra de ser descrita peo grande romancista mineiro Bernardo
Guimarães, que ali fez desenrolar parte do enredo de uma das suas
histórias mais populares, "O Garimpeiro". (Maria de Melo
chaves, "Bandeirantes da fé", capítulo 18).
Em
poder do escritor Moacir Andrade ficou uma carta de B. L. Garnier,
dirigida a Bernardo Guimarães, datada de 28 de março de 1872, na
qual dá notícias sobre o lançamento de “O Garimpeiro” e dos
minguados pagamentos de direitos autorais. Essa carta foi
transcrita, na integra, no suplemento literário de “A Manha”,
de 14 de março de 1943.
Entre
as muitas edições de “O Garimpeiro”, inclui-se a lançada pela
Editora Brasil-América (Ebal) S/A, do Rio de Janeiro, em formato de
revista, e “em quadrinhos”, o que foi uma novidade.
Um
dos maiores estímulos para prosseguir, teve-o Bernardo Guimarães
com o prometedor sucesso de “Lendas e Romances”. Naquele
tempo, uma venda de dois mil exemplares constituía um best-seller.
Animou-se o romancista a remeter ao Garnier um outro volume da
histórias várias. De uma assentada escreve a novela
“Jupira”, um dos melhores trabalhos do prosador ouro-pretano,
que ajuntou à crônica histórica “A Cabeça de Tiradentes” e
à novela “A Filha do Fazendeiro”, enfeixando tudo isso em um
outro volume, com o título de “Histórias e Tradições da Província
de Minas Gerais”, volume também aparecido em 1872.
“A
Cabeça de Tiradentes”, que vem em primeiro lugar, narra a lúgubre
aventura de um ardoroso devota da Inconfidência que, a desoras, com
um chuço, derribou do
poste de expiação a cabeça do mártir, para com ela correr e
sumir-se nas trevas. A história é verídica.
“A
Filha do Fazendeiro” é a bela Paulina, filha do Capitão Joaquim
Ribeiro, da Uberaba. Tudo aqui acaba em lamentável tragédia, com o
suicídio de Roberto, a morte de Paulina e o enlouquecimento de
Eduardo. “Romance para comover, e comover intensamente, “A Filha
do Fazendeiro” é uma jóia literária de apurado louvor”, opina
Dilermando Cruz no seu “Bernardo Guimarães”.
Termina
o volume com a histórica de “Jupira”. Aqui o escritor rememora
o cenário de Campo Belo, no Triângulo Mineiro, que ele conheceu
quando aluno dos padres Lazaristas. É o local onde ora se encontra
a cidade de Campina Verde. Baguari é um índio real, pois já se
disse que Bernardo conheceu de perto as malocas e as ocaras, no convívio
da Farinha Podre, sodalício ao vivo de que nenhum outro romancista
participou. “Jupira”, índia civilizada, liquida por ciúmes, ao
pobre do Carlito, que andava rodeando a Rosália.
“O
Seminarista”
Era
em Campo Belo que estava o seminário do Padre Leandro, que Bernardo
freqüentou. E nesse ambiente claustral se inspirou para compor
outro romance, “O Seminarista”.
Bernardo
aqui retrata o ordinando sem a vocação para o sacerdócio, em
malograda luta contra a carne, atirando ao convento pela caturrice
dos pais, um procedimento encontradiço naqueles idos. Eugênio,
seminarista, e Margarida amam-se, mas os pais do moço exigem-lhe a
ordenação sacerdotal. E fazem de tudo para que Eugênio não se
aproxime de Margarida, mas ele o faz às ocultas. Sabendo-o,
Francisco Antunes, o pai desnaturado, expulsa a humilde jovem de sua
fazenda, e manda ao seminário de Congonhas do Campo uma carta
mentirosa, em que dizia que a moça se casou com um fulano qualquer.
O
padre diretor comunicou a Eugênio a falsa notícia. Alucinado,
abatido pelo desespero, o moço aceitou a ordenação. Na véspera
de sua primeira missa, em Tamanduá, ele é chamado para atender em
confissão uma agonizante. Era Margarida! E é ela própria que lhe
revela ter sido mentirosa a notícia de seu casamento! No dia
seguinte, antes de iniciar o ofício, o recém-ordenado tem de
encomendar um cadáver. É o de Margarida! Não suportando tão
grande sofrimento, o Padre Eugênio, desvairado, já nos degraus do
altar, arranca do corpo os parâmetros, atirando-os longe, e
atravessa a multidão que, de joelhos, aguardava o início da missa,
sai correndo porta afora, transtornado pela demência, “louco
furioso”.
Grande
romance, uma das melhores obras do romancista de Ouro Preto. Se
assinada fosse por um Shakespeare, se extravasaria, atravessando
todas as fronteiras da intelectualidade universal, e hoje culminaria
ao lado das maiores concepções da arte literária que o mundo já
viu. Mas Bernardo não escrevia em inglês, e seus leitores não são
os mesmo do lendário dramaturgo de Stratford On Avon. Obra-prima, não
só pela segurança de estilo e das observações, como pela
realidade e originalidade dos fatos. “Não estarei longe de
acertar, asseverando que “O Seminarista” é a obra-prima de
Bernardo Guimarães, no gênero novelístico”, assim ajuíza Basílio
de Magalhães. “Este trabalho é bom, sendo o mais bem acabado de
Bernardo Guimarães”, opina João Alphonsus na “Revista do
Brasil”, de maio de 1941.
Foi
essa obra editada em 1872 pelo Garnier.
Dois anos depois, isto é, em 1874, Hugo Leal publicaria um
romance com o mesmo título.
“O
livro deixa-se ler docemente; não é atordoador e cheio de convulsões;
a ação corre serena e vai direta ao seu fim. Tem muita verdade
psicológica e muita exatidão de tintas nas cenas locais. Não tem
aquele aspecto doutrinário, escavador, científico, técnico, que
tem invadido o romance moderno, às vezes levado a tal exagero que
antes ler um tratado de
patologia, especialmente de moléstias do sistema nervoso e das
faculdades mentais, do que ler tais livros, que, afinal de contas,
nem ciência nem arte são. O nosso livro não tem aquele aspecto
demonstrativo de uma equação algébrica nem o tom realista de um
processo-crime. O romance é vazado nos velhos moldes. Mas tem
verdade, dessa verdade que impunha a um homem que tinha os olhos
abertos, como Bernardo Guimarães, e sabia observar, ainda que o não
ostentasse”, assim escreve Sílvio Romero em sua “História da
Literatura Brasileira”.
Basílio
de Magalhães, que compara “O Seminarista” ao “Eurico”, de
Herculano, faz este comentário: “Os capítulos 11 e 12,
concernentes ao mutirão e à quatragem e que se assemelham aos do
batuque e da briga do “Ermitão de Muquém”, são admiráveis de
fidelidade e de respeito à cor local”.
Bernardo
não fez, aqui, uma novela de simples ficção. A história, mais ou
menos, ouvira-a da tradição corrente na vila de Tamanduá,
atualmente cidade do Itapecerica. “Conheço – diz o mesmo biógrafo
– o cenário apainelado com cores reais por Bernardo Guimarães, e
em Itapecerica mostraram-me a casa onde residiu e faleceu Margarida.
Era uma das mais antigas daquela cidade, e já foi derribada e
substituída por um prédio novo”.
Sousa Ataíde diz ter visto, “num canto do cemitério de
Formiga, o tumulo de terra, encimado por uma velha cruz de pau, já
quebrada, abandonada e apodrecida” que, segundo lhe informaram,
era o de Eugênio.
Augusto
de Lima, e com eles outros intelectuais, crê que Bernardo Guimarães,
em “O Seminarista”, combate o celibato do clero. O próprio
romancista faz crer isso, quando põe esta exclamação na boca do
desditoso padre:
--
“Ah, celibato!... Terrível celibato!... ninguém espere afrontar
impunemente as leis da natureza! Tarde ou cedo elas têm seu
complemento indeclinável, e vingam-se cruelmente do que pretendem
subtrair-se ao seu império fatal!...”
A
verdade é que o escritor ouro-pretano jamais pensou em combater o
celibato clerical, e ninguém mais do que ele admirava e louvava o
sacerdote de vocação.
Duas
foram as obras de Bernardo Guimarães que tiveram relevante alcance
social e um objetivo altruístico: “A Escrava Isaura”, obra de
abolicionista destemido, e “O Seminarista”. Sua nobreza de propósito
não encontra outro exemplo, entre os demais romancistas nacionais,
que o possa igualar nessa feição de penetração doutrinária e
humanitária. Quem tem notícias do condenável procedimento dos
nossos avoengos, que supunham poder dominar e transformar a
natureza, o coração e o temperamento de seus próprios filhos,
impondo-lhes a sotaina, compreenderá e aplaudirá “O
Seminarista”, sem lhe atribuir campanha anticlerical ou de combate
à castidade sacerdotal.
Aos
seus amigos de Ouro Preto, o escritor não escondeu o seu verdadeiro
intento com a publicação do romance, com o qual se opunha a uma
distorção familiar da época. Vivia-se numa era patriarcal de
muita devoção e piedade cristã. Havia, então, pais que, para
alcançar uma graça, um favor do céu, um milagre, uma bênção do
Senhor, faziam a Deus ou a um santo a promessa da dar um filho para
o ministério do Altar, às vezes até mesmo antes de o filho
nascer, e isso sem atentarem para a vocação, carisma ou chamamento
do Alto. E para que esse voto fosse cumprido, exigiam severamente do
moço a ordenação sacerdotal, tivesse ou não tendência para o
culto divino, e empregavam, para tanto, se preciso, até a violência
ou perfídia, para não verem frustrado o compromisso assumido com
Deus. Pois era precisamente essa incompreensão e essa imposição
desumana daqueles pais de outrora que Bernardo desejou combater, e não
o celibato para o sacerdote de vocação.
Hernani
de Irajá, em “O Sensualismo na arte” procura descobrir tintas
de lascívia nesse romance
nem sempre compreendido, do qual transcreve uma trecho em que divisa
a luxúria ilustrativa do tema de sua obra. “Bernardo Guimarães
– diz ele -- menos
pormenorizador (que Júlio Ribeiro), mas, no entanto, igualmente
forte na maneira de tratar os assuntos, tem em “O Seminarista”,
que destacamos particularmente de seus outros romances, ´páginas
em que pinta bem ao vivo as fraquezas da carne.”
Contrariando
o habitual recato do romancista mineiro ao tratar de entrechos eróticos
em suas novelas, e criando, ao seu talante, uma cena de cabritismo,
o cinema, em obediência à preferência hodierna, acrescentou
ao “O Seminarista” um forte quadro de voluptuosidade, com
vistas na bilheteria.
Índio
Afonso
Em
seguida, escreveu B.G. “O Índio Afonso”.
Para
vingar a irmã Caluta, Afonso pratica as mais atrozes crueldades com
Toruna, o cabra que tentou violentá-la. é uma história de
banditismo, vivida nos sertões goianos. No prefácio, elucida o
autor que Afonso “é personagem real e vivo ainda”. E, por isso,
não revelaria o fim de seu bandido. Encontramo-lo, contudo em
Almeida Nogueira:
“Na
comarca de Bagagem teve (João Correia de Morais) de afrontar os
mais graves perigos na repressão ao banditismo que infestava aquela
zona. Houve ocasião de travar verdadeiros combates com os facínoras,
organizados em bandos armados e sob as ordens do célebre índio
Afonso, de legendária e romanesca memória. O herói de Bernardo
Guimarães perece na primeira dessas expedições, resistindo com as
armas não mãos às ordens legais do juízo para a prisão dele e
de seus companheiros. Esses fatos, cujo eco chegou ao Parlamento,
causaram grande emoção em toda a comarca de Bagagem e
circunvizinhanças, cuja população vivia aterrada pela fama e
feitos atrozes dos bandidos”. (“Tradições e Reminiscências”)
João
Correia de Morais, que assim deu cabo do índio Afonso, era sogro do
escritor Waldomiro Silveira.
O
jornal “Reforma” noticiou as façanhas do temido sicário,
referindo-se a ele como o “herói de um dos contos de Bernardo
Guimarães”, slogan, aliás, encontrado em todos os periódicos da
época. Mas o escritor, em resposta, nega a identificação do
famoso jagunço com o seu personagem, pois, conforme ele declara no
prefácio da novela, apenas se inspirara no célebre faquista.
“Tal
índio, personagem tirado da realidade, deu ao romancista certa dor
de cabeça, num incidente que serve para mostrar a sua honestidade
literária, a sua maneira de colher o material e de romanceá-lo, a
sua preocupação de exatidão com as paisagens. É que Afonso,
depois de posto no conto, viera a cometer um atentado horroroso,
acompanhado das circunstâncias mais atrozes e revoltantes”,
escreve João Alphonsus.
Que
o índio Afonso realmente existiu, confirma-o Cornélio Ramos em
“Catalão de Ontem e de Hoje”.
“Era
Bernardo Guimarães um bom nadador, nos seus tempos de solteiro,
juiz de direito em Catalão, na fronteira de Minas com Goiás,
estivesse o Paranaíba calmo ou revolto, atravessava-o a nado para
participar de pagodes roceiros do lado de Minas Gerais, onde afirmam
teria ele uma namorada que o trazia apaixonado.
“Índio
Afonso”
“O
romancista não tinha preconceito social; com a mesma facilidade com
que se relacionava com pessoas respeitáveis, misturava-se e
convivia com toda espécie de gente: boêmios, bêbados, pobres,
roceiros injustiçados e sofridos, jagunços perigosos e mulheres da
vida. Talvez para melhor conhecer a alma humana. Certa vez passou um
mês inteiro nas margens do rio Paranaíba pescando, caçando e
bebendo cachça ao lado do famoso sicário João Afonso e seus
comparsas, ouvido suas aventuras, anotando suas histórias e
narrativas de seus crimes, após o que voltou-se para o temido
aventureiro e exclamou:
--
Afonso, tu não és um criminoso, és um herói!
“Desse
colóquio nascia mais um livro: “O Índio Afonso”, tendo como
cenário o município de Catalão e que em repetidas edições levou
o nome de nossa cidade a todos os recantos do Brasil.
“Outro
livro notável do popular romancista, que teve como cenário o
Estado de Goiás, “O Ermitão de Muquém”. de temática
indianista como o anterior e cujo principal personagem, de nome Gonçalo,
é tido como o fundador da famosa Romaria de Muquém, no norte do
Goiás.
“É
em Bernardo Guimarães que se encontra o germe do regionalismo em
nossa literatura. Ponto de partida de uma modalidade literária que
evoluiria do simplismo bucólico até o seu atual e complicado
feitio, quando os problemas políticos e sociais tomaram conta dos
tempos regionais.”
Monteiro
Lobato, porém, que sopeava com desdenhativa ironia e humorismo a
paleta do Bernardo Guimarães, na qual só via tintas cediças e
terra-a-terra, assim dizia numa carta a Godofredo Rangel, em 1911:
“O
livro que você planeja sobre bandidos do sertão, capangas etc.,
também é necessário. O assunto foi tocado pelo velho Bernardo
Guimarães e outros – gente de pouco realismo – e romantismo em
dose maior que o quantum satis. O folião está virtualmente virgem.
Uma das vantagens do romancista brasileiro é poder lidar só com
virgindades. Nenhum tema nosso tem barriga suja. A literatura faz
pendant com a lavoura: ambas só lidam com matas virgens, terras
virgens. Tudo está por fazer. Aqui em São Paulo, quanto elemento
de primeira ordem à espera dos Balzacs e Zolas, pedreiros que
saibam assentar tijolos!” (“A Barca de Gleyre”, Companhia
Editora Nacional, 1944, página 213).
O
grande Lobato, inexcedível estilista, a pena mais original e
precisa de nossas letras, como crítico, porém, foi um
“pedreiro” muito hábil. Seus tijolos nem sempre eram colocados
em benefício do humorismo. Esquecia que, nos tempos do prosador de
Ouro Preto, cá neste nosso Pindorama ainda se vivia na era do sapé
e do pau-a-pique, do pau-a-pique
da literatura, sem tijolos. Parece-me que o admirável autor de
“Urupês” não leu “O Índio Afonso”. Pois aqui, quanto ao
cangaço, Bernardo foi um garanhão!
Afonso,
bandoleiro realmente existente, foi o precursor de Antônio Silvino,
de Lampião. Bernardo Guimarães foi, pois, o primeiro escritor
brasileiro a levar para o romance a figura de um autêntico
cangaceiro. Desde então, o assunto atinente a banditismo já não
é mais uma “donzela” para as letras – para não fugir à
comparação gaiata de Lobato.
Antes
da edição Garnier, que surgiu em 1873, “O Índio Afonso” foi
publicado no folhetim do jornal carioca “Reforma”, nos números
de 23 a 31 de janeiro de 1872.
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