-
-
Amigos. Fui longe... bastante longe. Mas, agora,
vamos começar o caminho de volta. Vamos, hoje, tentar entender como se
chegou, afinal, ao fado-música que atualmente é cantado concretamente: o
Fado dos Sécs. XVIII e XIX.
-
Não esqueçamos nunca que o Fado (no que tem de
intrínseco) sempre se cantou em Portugal. Sempre o povo expressou, em canto
triste, as suas crenças numa Sina ou num Destino a cumprir. Só que tal
“canto” foi, ao longo dos séculos, tomando jeitos diferentes, como
diferentes foram sendo os momentos históricos, e diferentes as formas de
expressão musical. Eram os “cantos à disgracia”, como se dizia, na
Idade Média. Eram aquilo a que costumo eu chamar de “fados sem nome”; já
que havia, nesses cantares, todos os ingredientes que caracterizam o
legítimo Fado, embora sem o uso da palavra para os nomear. Outro filósofo da
“Renascença Portuguesa”, Álvaro Ribeiro – seguindo a linha de pensamento
que, pessoalmente, me norteia - via no Fado “a cristalização da essência
de uma alma nacional”; e chegou a estabelecer as bases de
“uma doutrina fadista” – algo semelhante ao que fizera Pascoaes,
com relação à Saudade.
-
A forma externa, e expressiva, do Fado,
que hoje se escuta em qualquer bom “Retiro” de Lisboa, foi-se formando, pelo
menos desde os finais de 1300, com elementos vindos do lundum (Congo
africano), do fandango (Sevilha) e da modinha (Portugal) - que
ficou conhecida como “modinha brasileira”, por um motivo que mais adiante
mencionarei – ; além de um intrincado somatório de outros elementos
imponderáveis que cada época, cada psiquismo e cada cultura foram somando ao
que, por esses tempos , se cantava.
-
Comecemos pelo lundum. Tratava-se,
originalmente, de uma dança trazida para Portugal pelos escravos negros do
Congo, ali pelos finais de 1300. (Não esqueçamos que, mais de cem anos antes
do Descobrimento do Brasil, já havia escravos negros e lundum em
Portugal). Esta dança desenvolvia-se em círculo, numa espécie de delírio
frenético e sensual, rodeando um casal que ia dando umbigadas um no outro,
ao ritmo dos batuques e dos gritos dos demais. Era, inicialmente, uma
representação simbólica da fertilidade, simulando o próprio ato sexual, pela
aproximação frontal dos corpos do homem e da mulher. (Ainda hoje, em Angola,
esta dança é usada, em certas tribos, nos rituais de iniciação das noivas
para o casamento. E também sobrevive em alguns pontos da Amazônia brasileira
atual).
-
Podemos imaginar o destempero moral que estas
danças significaram para os europeus, nesses idos de 1400 e, posteriormente,
para as populações das colônias portuguesas! O poeta Gregório de Matos
(1636-1699) ao presenciá-la um dia, escreve: “O que
sei é que em tais danças/ Satanás anda metido”.
-
Por ter movimentos e meneios semelhantes, o
lundum funde-se, em Lisboa, com o fandango ibérico, chegado
sobretudo, de Sevilha. Este fandango era outra dança que se
processava também em círculos, e com meneios sensuais, segurando-se as mãos
arqueadas por cima da cabeça, e marcando o ritmo com o estalar dos dedos ou
por fortes palmas, castanholas e sapateados. Mas tinha, esta dança, um
elemento fundamentalmente novo em relação ao lundum - o canto.
Este canto era uma espécie de lamento, levantado pelo casal que ocupava o
centro do círculo. Era, repito, um cantar lamentoso, sempre acompanhado por
exclamações rítmicas dos demais. (Ainda hoje, as danças flamencas e ciganas
conservam muitos destes elementos, na Andaluzia espanhola).
-
O lundum (que começou por ser apenas uma
dança ritual), ao incorporar elementos do fandango, adotou também os
chamados intermezzos - ou intervalos - cantados com o mesmo caráter
langoroso do “canto hondo” árabe-andaluz, de hoje, mas sem abdicar da
umbigada.
-
E aqui começa uma incrível saga para o nosso
Fado-Música. Saga que vai durar séculos a depurar-se. Muito gradualmente,
esses intermezzos musicais, vão se desligando da dança
lundum-fandango, até ganharem total autonomia, como canção. Mas isto,
dizia eu, foi uma saga dolorosa e secular. Aparecem, sucessivamente, o
“fado de umbigada”, o “fado batido”, o “fado de aparar”, o
“fado bailado”, o “fado das esperas”etc.etc. Todos estes tipos
de fado, estavam ainda totalmente mergulhados na dança. Dança que vai
evoluindo, mas que manterá sempre o caráter de “diabólico folguedo” -
a que se refere um documento oficial de censura, de 1735.
-
Soma-se, depois, a modinha urbana
portuguesa, a qual vem dar mais beleza e estrutura melódica aos
intermezzos que se entoavam nas danças do lundum-fandango .E com
a soma desta modinha, duas distintas sagas, ou dois novos
caminhos, vai o Fado seguir, daí em diante. (Esta “modinha” – bem
portuguesa e bem lisboeta – passou, posteriormente, segundo Teófilo Braga, a
chamar-se “modinha brasileira”. Isto porque, ao ser levada para lá
pelos negociantes e colonos portugueses, foi no Brasil que a mesma
conservou a sua inteireza primitiva. Disso é testemunha o nosso dramaturgo
do século 19, António José da Silva que, tendo deixado Portugal aos oito
anos , “foi encontrar nessas modinhas, no Brasil, uma verdadeira
recordação da sua infância, em Portugal”).
-
Com a soma da nossa modinha à dança
frenética, que dominava as camadas mais populares, amontoadas pelos
bairros fadistas da velha Lisboa, o Fado, dizia eu, tomou dois rumos bem
demarcados: o “fado batido” (continuação do Fado agregado à
dança) e aquilo a que poderíamos chamar de “fado canção”
(totalmente independente de dança, e já com acompanhamento obrigatório
de guitarras, ou, até, lamentavelmente, de piano). É deste ramo
que veio, até nós, o Fado que hoje se canta em Lisboa e no mundo. Não
sem, no entanto, ter este Fado “limpo” ganhado alguns gestos, posturas e
expressões externas, muito estilizadas embora, que remontam àquele Fado
“batido” e “acanalhado” da outra linha, que veio andando, desde o Séc.XV
até meados do Séc. XIX, com a morte da Severa. Veremos isto melhor na
próxima crônica. Por hoje, quero invocar um fado, que fui
buscar no primeiríssimo disco que Amália Rodrigues gravou, em Portugal:
“Por muito que se disser/ O fado não é canalha/ Não é fadista quem
quer/ Só é fadista quem calha”. Amália sabia das coisas! É claro que
ela se refere, aqui, ao Fado-canção e , não, ao Fado-dança. Até à
próxima, Compadres