Boletim Mensal * Ano V * Abril de 2008 * N.º 60

           

 

FADO TAMBÉM É CULTURA  (18)

 

Alfredo Antunes

 

 
            Amigos. Fui longe... bastante longe. Mas, agora, vamos começar o caminho de volta. Vamos, hoje, tentar entender como se chegou, afinal, ao fado-música que atualmente é cantado concretamente: o Fado dos Sécs. XVIII e XIX.
            Não esqueçamos nunca que o Fado (no que tem de intrínseco) sempre se cantou em Portugal. Sempre o povo expressou, em canto triste, as suas crenças numa Sina ou num Destino a cumprir. Só que tal “canto” foi, ao longo dos séculos, tomando jeitos diferentes, como diferentes foram sendo os momentos históricos, e diferentes as formas de expressão musical. Eram os “cantos à disgracia”, como se dizia, na Idade Média.  Eram aquilo a que costumo eu chamar de “fados sem nome”; já que havia, nesses cantares, todos os ingredientes que caracterizam o legítimo Fado, embora sem o uso da palavra para os nomear. Outro filósofo da “Renascença Portuguesa”, Álvaro Ribeiro – seguindo a linha de pensamento que, pessoalmente, me norteia - via no Fado “a cristalização da essência de uma alma nacional”; e chegou a estabelecer as bases de “uma doutrina fadista” – algo semelhante ao que fizera Pascoaes, com relação à Saudade.
            A forma externa, e expressiva, do Fado, que hoje se escuta em qualquer bom “Retiro” de Lisboa, foi-se formando, pelo menos desde os finais de 1300, com elementos vindos do lundum (Congo africano), do fandango (Sevilha) e da modinha (Portugal) - que ficou conhecida como “modinha brasileira”, por um motivo que mais adiante mencionarei – ; além de um intrincado somatório de outros elementos  imponderáveis que cada época, cada psiquismo e cada cultura foram somando ao que, por esses tempos , se cantava.
            Comecemos pelo lundum. Tratava-se, originalmente, de uma dança trazida para Portugal pelos escravos negros do Congo, ali pelos finais de 1300. (Não esqueçamos que, mais de cem anos antes do Descobrimento do Brasil, já havia escravos negros e  lundum em Portugal). Esta dança desenvolvia-se em círculo, numa espécie de delírio frenético e sensual, rodeando um casal que ia dando umbigadas um no outro, ao ritmo dos batuques e dos gritos dos demais. Era, inicialmente, uma representação simbólica da fertilidade, simulando o próprio ato sexual, pela aproximação frontal dos corpos do homem e da mulher. (Ainda hoje, em Angola, esta dança é usada, em certas tribos, nos rituais de iniciação das noivas para o casamento. E também sobrevive em alguns pontos da Amazônia brasileira atual).
            Podemos imaginar o destempero moral que estas danças significaram para os europeus, nesses idos de 1400 e, posteriormente, para as populações das colônias portuguesas! O poeta Gregório de Matos (1636-1699) ao presenciá-la um dia, escreve: “O que sei é que em tais danças/ Satanás anda metido”.
            Por ter movimentos e meneios semelhantes, o lundum funde-se, em Lisboa, com o fandango ibérico, chegado sobretudo,  de Sevilha. Este fandango era outra dança que se processava também em círculos, e com meneios sensuais, segurando-se as mãos arqueadas por cima da cabeça, e marcando o ritmo com o estalar dos dedos ou por fortes  palmas, castanholas e sapateados. Mas tinha, esta dança, um elemento fundamentalmente novo em relação ao lundum - o canto. Este canto era uma espécie de lamento, levantado  pelo casal  que ocupava o centro do círculo. Era, repito, um cantar lamentoso, sempre acompanhado por exclamações rítmicas dos demais. (Ainda hoje, as danças flamencas e ciganas conservam muitos destes elementos, na Andaluzia espanhola).
            O lundum (que começou por ser apenas uma dança ritual), ao incorporar elementos do fandango, adotou também os chamados intermezzos - ou intervalos - cantados com o mesmo caráter langoroso do “canto hondo” árabe-andaluz, de hoje, mas sem abdicar da umbigada.
            E aqui começa uma incrível saga para o nosso Fado-Música. Saga que vai durar séculos a depurar-se. Muito gradualmente, esses intermezzos musicais, vão se desligando da dança lundum-fandango, até ganharem total autonomia, como canção. Mas isto, dizia eu, foi uma saga dolorosa e secular. Aparecem, sucessivamente, o “fado de umbigada”, o “fado batido”, o “fado de aparar”, o “fado bailado”, o “fado das esperas”etc.etc. Todos estes tipos de fado, estavam ainda totalmente mergulhados na dança. Dança que vai evoluindo, mas que manterá sempre o caráter de “diabólico folguedo” - a que se refere um documento oficial de censura, de 1735.
            Soma-se, depois, a modinha urbana portuguesa, a qual vem dar mais beleza e estrutura melódica aos intermezzos que se entoavam nas danças do lundum-fandango .E com a soma desta modinha, duas distintas sagas, ou dois novos caminhos, vai o Fado  seguir, daí em diante. (Esta “modinha” – bem portuguesa e bem lisboeta – passou, posteriormente, segundo Teófilo Braga, a chamar-se “modinha brasileira”. Isto porque, ao ser levada para lá pelos negociantes e colonos portugueses,  foi no Brasil que a mesma conservou a sua inteireza primitiva. Disso é testemunha o nosso dramaturgo do século 19, António José da Silva que, tendo deixado Portugal aos oito anos , “foi encontrar nessas modinhas, no Brasil, uma verdadeira recordação da sua infância, em Portugal”).
            Com a soma da nossa modinha à dança frenética, que dominava as camadas mais populares, amontoadas pelos bairros fadistas da velha Lisboa, o Fado, dizia eu, tomou dois rumos bem demarcados: o “fado batido” (continuação do Fado agregado à dança) e aquilo a que poderíamos chamar de “fado canção” (totalmente independente de dança, e já com acompanhamento obrigatório de guitarras, ou, até, lamentavelmente, de piano). É deste ramo que veio, até nós, o Fado que hoje se canta em Lisboa e no mundo. Não sem, no entanto, ter este Fado “limpo” ganhado alguns gestos, posturas e expressões externas, muito estilizadas embora, que remontam àquele Fado “batido” e “acanalhado” da outra linha, que veio andando, desde o Séc.XV até meados do Séc. XIX, com a morte da Severa. Veremos isto melhor na próxima crônica.            Por hoje, quero invocar um fado, que fui buscar no primeiríssimo disco que Amália Rodrigues gravou, em Portugal: “Por muito que se disser/ O fado não é canalha/ Não é fadista quem quer/ Só é fadista quem calha”. Amália sabia das coisas! É claro que ela se refere, aqui, ao Fado-canção e , não, ao Fado-dança. Até à próxima, Compadres